“É só mais uma livraria se despedindo de Fortaleza”

O luto simbólico me encaminhou ao tempo no qual as livrarias eram livrarias, não cafés, não espaços instagramáveis

Legenda: De alguma forma, essa despedida, o desaparecimento das livrarias, é minha própria história se apagando
Foto: Reprodução/ Instragram Lamarca

Uma livraria cede espaço para uma franquia internacional de cafeterias. Após alguns dias, a notícia: após 109 anos de história, a tal livraria que outrora teve alcance nacional, pede falência. Na mesma semana, em Fortaleza, uma pequena livraria, com personalidade marcante, anuncia o encerramento de suas atividades, com o anúncio, o recado: “isso é só mais uma livraria se despedindo em Fortaleza”.

A notícia desceu amarga, ainda não me acostumei com essas despedidas. O luto simbólico me encaminhou a memórias de livrarias. Quem tem mais de 30 anos, provavelmente, recorda que houve um tempo no qual as livrarias eram livrarias, não cafés, não espaços instagramáveis, não locais para rodas de conversas; eram, simplesmente, livrarias.

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Talvez isso tenha ficado marcado por ter ainda forte uma lembrança de minha adolescência: ia a uma livraria em uma famosa avenida, em bairro nobre da cidade, era enorme, com os mais diversos títulos. Eu não tinha dinheiro para comprar os livros que queria; então, a cada vez que ia, lia um pouquinho lá mesmo, em pequenas doses – na época parecia algo errado, tinha medo de me descobrirem, mas, com a vergonha e audácia própria dos adolescentes, pegava o livro que eu sabia que não compraria e se sentava no chão – as poltronas acolhedoras vieram anos depois - e continuava minha leitura.

Os anos foram passando. As estantes das livrarias perdiam espaços, ficaram mais apertadas; tinham, agora, que dividir espaço com cafeterias, que se tornavam um ponto de encontro, nem sempre com fins literários. Não desconfiava, mas ali, talvez, já houvesse indícios que só livros não atraiam mais o público. Depois testemunharia novos adendos, adornos, espaços mais amplos, “melhorias” que, também, tiravam o espaço dos livros.

As prateleiras, antes apinhadas, caóticas (a quantidade sempre era mais desejável que a organização), aos poucos apelavam mais para a estética: coleções, edições limitadas, coletâneas, “box” especiais se alastravam pelo mundo editorial. As prateleiras foram substituídas por mesas largas, sobre as quais ficavam os livros destacados e só víamos as antigas prateleiras nos cantos das paredes.

Surgiram novas estantes, giratórias, repletas de edições de bolso com má diagramação e traduções duvidosas que cativavam os leitores pelo baixo preço. Depois vieram as poltronas confortáveis, os espelhos, a arquitetura sólida e requintada, os espaços instagramáveis, mesas grandes para rodas de conversa, pequenos auditórios. Tudo isso, talvez, já nos dissesse: os livros já não bastavam.

“Os livros já não bastavam” – ao escrever isso me dou conta de como meu saudosismo enverga a narrativa para um lado. A tristeza de saber que, provavelmente, a geração de meu filho não saberá o que é sentar-se no chão de uma livraria me fere e, talvez, por isso, diga que os livros já não bastam. Talvez, por isso, queira acreditar que há uma crise geral na cultura e queira repetir que “as pessoas não leem mais”.

Entretanto, os livros me ensinaram certa dialética no pensar, me ensinaram que nossa visão costuma ser como a de um caleidoscópio. Ao mudar um pouco o ângulo, outra figura se forma. Giro um pouco o caleidoscópio: nos últimos anos, os “booktubers”, produtores de vídeos sobre livros, foram considerados um grande fenômeno – com centenas de milhares de seguidores; surgiram também os booksgrams, os booktokers – produtores de conteúdos literários no Instagram e TikTok; nunca houve tantos clubes de leitura; as feiras literárias, como a FLIP, ganham destaque em noticiários; autores brasileiros despontam em vendas, como Itamar Vieira Jr e Carla Madeira; no cenário cearense, vemos Stenio Gardel indicado a prêmio internacional e Socorro Acioli, que também possui suas obras traduzidas para outros idiomas, em breve, verá seu livro adaptado às telas de cinema.

Este olhar me faz engolir a seco. Talvez, não é que os livros não bastem, mas os livros físicos já não ocupam lugar de destaque - em um mundo digital, livros digitais parecem estar em casa. Em um país no qual os apartamentos estão cada vez menores, os livros digitais parecem uma solução para aqueles que não tem espaço para uma biblioteca particular. Em um país de impostos altíssimos para livros físicos, os livros digitais e suas cópias pirateadas, que desrespeitam os direitos autorais de tantos escritores, parecem uma solução.

Particularmente, isto me gera certo desconforto. Entretanto, dizer que “as pessoas não leem mais” ou pensar que há uma crise geral na leitura, talvez, por enquanto, diga mais do meu saudosismo do que de fatos.

Racionalmente, sei que não é só mais uma livraria se despedindo, é um modelo negócio que não se sustenta mais. Porém, simbolicamente, não é só mais uma livraria se despedindo, é minha própria história se apagando. Tento me consolar por saber que outras histórias, outros modos de ler, estão se consolidando, ainda que na esfera digital. Espero ter fôlego para vive-las, assim como vivi as várias fases das livrarias que hoje desaparecem da cidade, mas se eternizam em minhas memórias.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora