Por que o Natal não se abrasileirou?

Foto: Agência Brasil

Assim como as festas juninas e o Carnaval, as festas natalinas foram trazidas pelos portugueses e europeus para as terras que iriam se tornar o Brasil. Todas essas festas são o resultado do processo de colonização cultural, do colonialismo cristão, empreendido pela metrópole portuguesa. No entanto, podemos dizer que tanto as festas juninas, quanto o Carnaval adquiriram, com o passar do tempo, características, elementos, aspectos que podemos nomear de brasileiros. Essas festas, se comparamos com o modo que são festejadas ainda hoje, no próprio Portugal, se tornaram muito diferentes, se tornaram manifestações culturais muito distintas, muito singulares. Podemos dizer que elas foram abrasileiradas e passaram a ter identidade próprias.

Para citar dois exemplos: Santo Antônio, que é um santo português e é um dos três santos comemorados em junho, é o padroeiro da cidade de Lisboa e merece a realização de festejos bastante animados em todo território português, assim como acontece aqui no Brasil, só que a forma dos festejos é totalmente diferente. Em primeiro lugar, a parte religiosa da festa tem uma centralidade que foi completamente perdida no Brasil. Os santos de junho são muito mais objetos de comemorações profanas, entre nós, do que motivo de celebrações religiosas. A festa de Santo Antônio, em Lisboa, quando se trata de sua dimensão profana, está centrada no consumo de sardinhas assadas (para um povo da pesca como os portugueses isso é totalmente explicável) e do consumo de vinho quente, o chamado quentão, que, no Brasil, aparece nas festas juninas do Centro-sul, notadamente do Rio de Janeiro, onde a vinda da Corte portuguesa para a cidade e a constante migração de pessoas vindas daquele país preservou esse costume.

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As festas juninas celebradas com comidas de milho, com a dança do forró, são uma criação brasileira e, sobretudo, nordestina. Outro exemplo: o carnaval que, ainda hoje, é uma atração turística da cidade de Veneza, na Itália, é completamente distinto do nosso, é um carnaval de salões, onde predomina os bailes de máscaras e, evidentemente, as músicas que o acompanha não é o samba, o frevo ou o axé.

No entanto, as festas natalinas não passaram por esse processo de abrasileiramento, elas são as festas em que nossa cultura colonizada mais se manifesta, em que nosso desejo de ser do hemisfério norte ou de ser europeu aparece de forma desconcertante.

Em pleno verão no hemisfério sul, as festas natalinas enchem nossas cidades e nossas casas comerciais de referências ao inverno, neves caem e esvoaçam por todos os lugares. Na noite de Natal, as crianças ficam esperando um bom velhinho que vem esquiando de trenó (ninguém sabe como ele vai conseguir essa proeza se aqui não há neve), conduzido por três pares de renas (animais que morreriam de calor se aparecessem no sertão nordestino) e que se esgueira por chaminés, que inexistem nas casas brasileiras, a não ser que seja nas chaminés das churrasqueiras de laje, no Rio de Janeiro, ou de varanda, no Rio Grande do Sul.

Os profissionais que, todo ano, assumem a inglória tarefa de encarnar o Papai Noel, têm que se vestirem para enfrentar o inverno em locais cuja temperatura pode chegar a 45 graus. O fora de lugar não para por aí. Em muitos shopping centers, podemos dar de cara com enormes ursos, com uma fauna que nada tem que ver com a fauna brasileira. Mesmo as comidas e bebidas natalinas envolvem itens pouco relacionados com a nossa culinária e com nossos hábitos alimentares. Além do famoso chester, que esse ano foi alçado pela inteligência bolsonarista à marca de produto, temos avelãs, figos, panetones, pinhão, champanhe, frutas cristalizadas, e outros itens que, em sua maioria, são importados e, portanto, custam muito caro, estando distante da realidade da maior parte da nossa população.

Creio que esse distanciamento das festas natalinas da maior parte da população brasileira é, justamente, o que explica o porquê dessa festa não ter se abrasileirado. Antes de mais nada podemos nos perguntar, o que é ser abrasileirado, quem foram os agentes sociais do abrasileiramento de costumes, hábitos, linguagens, festas? Ser abrasileirado significa ser deseuropeizado, descolonizado, significa que uma manifestação cultural, uma matéria e forma de expressão trazidas pelo colonizador ganhou feição própria ao ser modificados no ambiente da colônia ou mesmo na sociedade nacional após a independência. Quem poderiam ser os agentes dessa deseuropeização, dessa ruptura com os ditames culturais trazidos pelos portugueses e os europeus, de uma maneira geral? Me parece evidente que a resposta para essa pergunta seria os não-europeus, aqueles agentes do processo de formação social e cultural do Brasil que portavam outros traços culturais, outras tradições, outras formas de ver e entender o mundo.

Creio que foram os africanos escravizados, as populações indígenas e todos aqueles mestiços que já nasceram no Brasil que foram os agentes do abrasileiramento das manifestações culturais e cultuais trazidas pelos brancos. Gilberto Freyre, em seu livro Casa-Grande &Senzala, defende, justamente, a ideia de que a língua portuguesa foi abrasileirada, tornou-se uma língua distinta, inclusive em sua prosódia, na maneira de ser falada, de ser emitida, para além da riqueza vocabular que adquiriu, das inúmeras palavras advindas das línguas africanas e indígenas que passou a fazer parte dela, a partir da presença dos negros e das negras no interior das casas-grandes, no cotidiano dos engenhos e dos sobrados coloniais. Como ele diz, os africanos teriam adocicado e arredondado a língua portuguesa, teria lhe retirado as arestas, uma certa rudeza na forma, que caracterizaria a forma portuguesa de pronunciar a língua. De uma língua rombuda, cheia de esquinas, de quebras, o português teria se tornado uma língua roliça, deslizando na boca como uma bala de açúcar (talvez por isso o Brasil seja um país de banguelas).

O que quero levantar como hipótese nesse artigo é que o Natal não se abrasileirou porque foi a festa menos modificada pelas camadas populares, menos adotada e festejada pelos africanos, pelos indígenas e pelos seus descendentes mestiços. Creio que o primeiro motivo é de caráter econômico. As festas natalinas, tal como foram trazidas pelos portugueses e como eram festejadas pelos colonizadores implicava custos muito elevados para ser assumidos por famílias populares.

Adquirir ou encomendar a feitura de um presépio ou mesmo comprar e enfeitar uma árvore de Natal, notadamente mantê-la cheia de piscas-piscas, num esbanjamento de gastos de energia, nunca foi para o bico da maioria de nossas famílias mais pobres. Esses adereços do Natal implicam custos que não podem ser assumidos pela maioria de nossa população. Numa sociedade em que a maioria das pessoas passavam fome, como festejar o Natal, uma festa que implicava a feitura de uma ceia, a compra de produtos caros e que não era de consumo corrente de ninguém, podendo sequer agradar o paladar de populações que não estavam acostumadas a consumi-los.

No Brasil, as épocas de festa, como as populações costumam chamar, tudo o que a maioria almejava era ter o que comer, o que servir, incluindo, no máximo, como excepcional o arroz e a carne, muitas vezes recebida de presente dos patrões, que exercitando o espírito natalino deixavam seus empregados e agregados usufruírem das partes menos nobres das criações que matavam. O Natal sempre implicou gastos que a maioria da população nunca pode fazer. No máximo o que se buscava era ter uma roupa nova, um calçado novo para usar nas noites de festa, para se ir à festa de rua que ocorria e ocorre por essas datas.

Creio que as festas natalinas serviram para a demarcação de status e de diferenças sociais, inclusive, para reafirmar e reforçar linhas de divisões raciais, já que para muito descendentes de africanos e indígenas, as festas de Natal não possuíam significado do ponto de vista religioso, e as elites usaram e usam a europeizada festa de Natal para deixar claro a sua diferença em relação aos demais. Ao contrário de ser as festas de confraternização, como o senso comum faz acreditar, as festas de fim de ano serviram e servem para demarcar e reafirmar diferenças e hierarquias sociais. Isso se acentuou, ainda mais, a medida que a festa se tornou um grande evento voltado para o consumo, para a exibição de status e de capacidade de compra.

No Brasil, o Natal tornou-se o momento de se dar presentes (na Espanha, por exemplo, os presentes são dados no Dia de Reis, pois o hábito de dar presentes no Natal, vem do fato mítico da visita dos três reis magos a Jesus menino e as oferendas que para ele trouxeram), o que exclui uma boa parte da população de origem afro-indígena, aquela que podia abrasileirar os festejos, de sua execução. A maioria dos brasileiros, durante muito tempo, estava preocupada em ter o que comer, em não passar a noite de Natal sem ter o que colocar na boca. Comprar uma pareia de roupa nova e colocar alguma coisa na boca, mesmo que fosse uma malvada cachaça era tudo que a população brasileira podia almejar para as festas natalinas. Adquirir árvores de Natal, presépios, enfeitar casas com lâmpadas, fazer uma lauta ceia de Natal, comprar perus ou chesters, comprar champanhe e frutas exóticas, comprar presentes para toda a família, foi sempre possível para quem pertencia às classes mais abastadas.

Como sabemos, as nossas classes médias e altas, aquela gente que entre nós se consideram brancos, e muitos que se consideram europeus, foram os agentes da colonização, e são aqueles de mentalidade mais colonizada. O Natal tendeu a não só se europeizar, cada vez mais, como a se americanizar, a medida que foi, durante muito tempo e, em grande medida ainda é, uma festa de bacanas, uma festa só possível para as gentes de maior posse. Agentes preferencias do macaqueamento, da cópia do estrangeiro, da imitação do europeu e do americano para se sentirem distintos, civilizados e antenados, nossas gentes de posses, aqueles que efetivamente podem comemorar o Natal como um europeu ou um americano comemora, fizeram das festas natalinas essa caricatura ridícula de uma festa subtropical, passada em algum lugar da Escandinávia, numa sociedade de pais brancos e ricos que podem colocar sobre as botinas ou sapatinhos (num país onde, durante muito tempo, ter uma sandália Havaiana nova era uma conquista, que se exibia) as caixas de presentes pedidos pelas cartinhas de crianças a Papai Noel.

As camadas populares, o povão, não deixaram, evidentemente, de fazer o seu Natal de pobre, mas esse Natal pobrinho, da roupa nova, da conga recém comprada, do arroz com carne, do rela-bucho regado a cachaça, nunca teve o condão de modificar o modelo da festa, preservado com zelo pelas camadas dominantes, que viam no Natal um índice de distinção e uma oportunidade de exibição de sua diferença. Em contradição total com o próprio evento que celebra, o nascimento pobrinho de uma criança em fuga, num cocho de um estábulo, tendo por testemunhas animais e camponeses, o Natal se tornou um momento de marcação de distinções sociais e raciais no país, uma festa que não conseguiu ser apropriada pelos agentes do abrasileiramento: as populações mestiças, pretas e indígenas, que conseguiram fazer do Carnaval, essa festa por definição profana e mundana, a maior festa brasileira, aquela que é a própria imagem do país no exterior e que conseguiram abrasileirar as festas de junho, tornando-as mundanas e motivo de júbilo dos corpos e das carnes dançantes.

Nunca esqueço da narrativa de uma senhora negra, que um dia me contou com lágrimas nos olhos que, uma vez em sua infância, o Papai Noel passou por sua rua, para entregar alguns presentes encomendados por pais de crianças mais ricas. Ela vendo que ele levava o objeto de seu sonho de criança, bonecas ainda em sua embalagem, venceu a sua timidez, se aproximou do “bom velhinho” e pediu uma para si. Reagindo com certo constrangimento e irritação, diante da aproximação de uma chusma de meninos e meninas pobres, atraídos pelo tilintar do sino que o anunciava, do alto do automóvel em que estava, ele tentou agradá-las lhes jogando balas. Quando D. Socorro, era assim que ela se chamava, se aproximou e lhe pediu uma boneca, ele lhe ofereceu uma balinha, ao que ela respondeu: - Enfie sua balinha no .... É o que dá vontade de dizer diante de certas coisas que vemos acontecer e se fazer em nome do Natal. Até a música natalina é um tal de Jingle Bell. Que vontade que dá ter a coragem de D. Socorro!

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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