Por que o Carnaval não faz parte da narrativa identitária nordestina?

Carnavalizar a identidade rural, machista, tradicionalista, hierárquica, excludente, folclórica nordestina é tudo que precisamos

Legenda: Carnaval em Olinda
Foto: Sumaia Villela/Agência Brasil

Mesmo contando com dois dos três carnavais mais tradicionais do país, o de Pernambuco e o da Bahia, que atraem turistas nacionais e estrangeiros e arrastam multidões pelas ruas das cidades de Recife, Olinda e Salvador - essa que é uma das manifestações culturais mais importantes do próprio país, que constitui um dos símbolos da brasilidade em âmbito internacional -, as festas de Momo não fazem parte da narrativa que configura a identidade regional nordestina.

Quando nos referimos ao que se convencionou chamar de cultura nordestina, quando observamos o conjunto de imagens, o imaginário em torno do conceito Nordeste, as manifestações carnavalescas, tão diversas e tão criativas, na maioria dos estados da região, os símbolos, ícones, objetos e rituais ligados ao período momesco não estão relacionados com a identidade regional nordestina. Existem algumas razões para que isso aconteça e é sobre elas que tratarei nesse artigo.

Veja também

A identidade regional nordestina foi elaborada no início do século XX, entre as décadas de vinte e trinta, quando havia um enorme preconceito da maioria das elites intelectuais e sociais em relação ao carnaval. Câmara Cascudo, por exemplo, que se tornaria um dos maiores estudiosos da cultura popular no Brasil, não gostava nem do carnaval, nem do futebol, dois dos mais importantes rituais da cultura brasileira. Mário de Andrade achava o carnaval uma festa triste e não deixou de demonstrar todo seu desconforto quando vivenciou um carnaval nas ruas da cidade do Rio de Janeiro.

A identidade regional nordestina foi uma elaboração de uma elite política e intelectual que, em sua maioria, desprezava o carnaval, como uma festa bárbara, como um índice da degradação dos costumes trazidos pelo mundo moderno. Sendo uma manifestação cultural que ganhava popularidade, ao longo da primeira metade do século XX, o carnaval foi visto como um produto da modernidade que não tinha relação com a sociedade tradicional que servia de modelo para o que seria a verdadeira ordem social nordestina.

Tendo sido criado por intelectuais e artistas tradicionalistas, a ideia de Nordeste não comportava a incorporação de uma atividade cultural que não fazia parte do universo senhorial e escravista, já que foi, em grande medida, a nostalgia em relação a esse universo sociocultural em declínio que deu feições a região.

Quando José Lins do Rêgo incorpora o carnaval recifense a trama de seu romance Moleque Ricardo é para depreciá-lo como um símbolo da emergente vida urbana, da confusão de gentes e classes, da degradação moral trazida pela cidade em contraposição as hierarquias bem definidas e a moralidade da vida no engenho. À medida que a identidade nordestina foi fundada numa nostalgia da vida rural, são as manifestações culturais ligadas a vida no campo que serão tidas como aquelas que representam, que são típicas da região.

Embora tenhamos dois dos maiores carnavais do país, nunca vamos encontrar na imprensa da região a relação entre carnaval e nordestinidade, o que será feito de forma enfática quando das festas juninas, festas tidas como tipicamente rurais. Se o Nordeste é pensado como sendo um espaço rural, o verdadeiro Nordeste estando relacionado ao sertão, são as manifestações culturais, inclusive as práticas e eventos mais anacrônicos, como o cangaço, o coronelismo e o fanatismo religioso que serão associados a essa identidade regional.

O carnaval, por ser uma manifestação cultural predominantemente urbana - embora em Pernambuco tenhamos a fascinante manifestação dos maracatus rurais que, no entanto, vêm desfilar e brincar nas vilas e cidades -, foi excluído do rol de atividades culturais consideradas típicas da região.

Não se vai ouvir dizer que o carnaval é uma festa regional, até porque ela foi tomada como símbolo da identidade nacional, ela seria um ícone da brasilidade acontecendo no Nordeste e não um ícone da nordestinidade. Quando o escritor Jorge Amado, ainda no início de sua carreira, escreve o romance País do Carnaval, ele materializa dois gestos que serão muito comuns entre os intelectuais que serão responsáveis pela elaboração da ideia de Nordeste: ele associa o carnaval com a identidade nacional e não e com a identidade regional e sua visão do carnaval é depreciativa. Embora, em 1931, ano que publica seu romance de estreia, a Bahia esteja longe de se integrar ao Nordeste (o que só acontece oficialmente em 1969, embora desde a criação da SUDENE, no final dos anos cinquenta as elites baianas reivindiquem a nordestinidade quando as interessa), Jorge Amado não vai sequer pensar o carnaval como um elemento da identidade baiana, ele que era um amante da cultura popular e que logo se tornará um comunista, o que hoje está inegavelmente estabelecido.

O personagem principal do livro, o filho de um produtor de cacau - como o autor do livro -, chega ao país vindo de Paris, onde fora estudar direito e passa a se reunir com um grupo de intelectuais de Salvador, quando manifesta em suas opiniões um olhar de estranhamento, um olhar estrangeiro em relação ao seu próprio país. O carnaval é para Rigger, nome do personagem, a própria encarnação da desordem, da falta de modos, de educação e refinamento do povo brasileiro, um povo caracterizado pelo exagero e a informalidade. Consoante com a forma como os intelectuais de esquerda normalmente se posicionaram em relação a festa de Momo, para o personagem de Amado – uma espécie de alter ego – o carnaval representava a alienação do povo de seus próprios problemas. A rejeição é tanta ao país do carnaval que o personagem resolve retornar a Europa.

No livro de Amado já aparece como elemento que leva a depreciação do carnaval como manifestação cultural o fato dele ser uma festa majoritariamente popular. Embora, desde a realização do entrudo, no século XIX, houvesse a participação das elites, em lugares reservados, em clubes e associações, e inclusive através das chamadas grandes sociedades, inspiradas no carnaval de Veneza, na Itália, o carnaval sempre se mostrou uma festa de difícil controle e domesticação. Apesar de todos os esforços feitos pelas autoridades, que vão regulamentando, inclusive domesticando e cooptando as organizações populares de caráter carnavalesco, na primeira metade do século passado, o carnaval sempre representou um perigoso momento em que as camadas populares vinham as ruas.

No Recife, por exemplo, as massas populares iam a rua para “frever”, todo mundo queria cair na “fervura” do ritmo, sendo essa a origem da palavra frevo que vai nomear uma dança coreográfica e uma modalidade de gênero musical voltado para os folguedos momescos. Portanto, como a identidade regional nordestina foi uma elaboração das elites políticas e intelectuais, uma manifestação cultura popular, de caráter urbano, uma manifestação cultural recente, não poderia figurar no panteão das manifestações ditas regionais.

O curioso e revelador é que o Congresso Regionalista do Recife, ocorrido em 1926, um evento fundamental no processo de elaboração da ideia de Nordeste, ocorreu, justamente, durante o carnaval. Não porque seus realizadores valorizassem a festa, muito pelo contrário, realizar o Congresso durante o carnaval demonstra que para eles o carnaval era apenas um bom feriado, umas datas vagas nas agendas dos participantes para a realização de um evento paralelo, desconhecendo justamente a festa. Fica claro que a identidade regional nordestina é elaborada dando as costas para o carnaval, ela devia ser elaborada a revelia dele.

Se houvesse algum brincante entusiasta do carnaval entre os partícipes do evento regionalista não haveria de escolher essa época para assistir um conjunto de palestras e se refestelar de comidas ditas regionais no Seminário de Olinda. Não há nada mais anticarnavalesco do que um seminário.

O livro de Jorge Amado, assim como o Moleque Ricardo de José Lins do Rêgo, deixa entrever outro motivo para que o carnaval não figure como uma manifestação tipicamente regional: ela é uma festa popular e, principalmente, ela é uma festa de negros. O racismo que está na base da elaboração da própria figura do nordestino, calcado, fundamentalmente, na figura do sertanejo, por ele ser, pretensamente, fruto da mestiçagem de brancos e indígenas e não contar com sangue africano, contribui para a rejeição do carnaval como sendo uma festa representativa da nordestinidade. O carnaval, notadamente na cidade do Recife, onde a ideia de Nordeste foi mais trabalhada intelectual e politicamente, era uma festa majoritariamente negra, uma festa marcada pelas peripécias dos capoeiras, dos batedores negros que iam à frente das bandas e dos maracatus, armados com cassetetes e navalhas, para afrontar e enfrentar os batedores das agremiações rivais.

O carnaval era visto como uma quadra de violência e depravação moral, uma época em que a gentalha recém saída das senzalas tomavam as ruas, seminus, em sua sem-cerimônia, em suas extravagâncias e exibicionismos, atentando contra a moral e os bons costumes, fazendo estripulias e algazarras, sujando a todos com água, talco, urina, barro e outros materiais. O carnaval seria o reino dos malandros, dos rufiões, das mulheres perdidas, dos mascarados, a perpetrarem todo tipo de abuso e excesso. Numa sociedade racista como a nordestina jamais o carnaval, essa festa de pretos, poderia ser vista como uma atividade digna de simbolizar a identidade da região que nascia. Será também no carnaval nordestino que as tribos indígenas, invisibilizadas e perseguidas até a extinção, no dia a dia, voltavam a sair as ruas, voltavam a tocar seus apitos e maracás, os seus arcos e flechas e a portar seus cocares e vestimentas, mesmo que inspirados nos índios de faroeste americano.

O carnaval, a festa dos marginalizados, como as mulheres que eram vistas como públicas e os homossexuais, podendo manifestar publicamente seu desejo de se travestir e de fazer trejeitos do chamado sexo oposto, não pareceu, para os inventores do Nordeste, ser uma festa muito digna para figurar no panteão das manifestações populares ditas regionais.

O carnaval cumpriu e continua a cumprir, assim, um dos seus principais papeis, o de transgredir a ordem social, embora não deixe de reproduzi-la também, como demonstra a mercantilização e espetacularização de que vem sendo objeto. Mas o carnaval, no Nordeste, continua transgredindo o imaginário e a narrativa que conferem identidade para a região, pois é uma manifestação moderna, urbana, afro-indígena, afro-brasileira, questionadora de hierarquias e exclusões de classe, raça, gênero, faixa etária, capacidades, uma manifestação cultural que desconhece fronteiras e limites culturais, estéticos, éticos e políticos.

Carnavalizar a identidade rural, machista, tradicionalista, hierárquica, excludente, folclórica nordestina é tudo que precisamos. Evoé Nordeste!

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.