Entre os gestores públicos é praticamente unânime a crença na eficácia do planejamento urbano para resolver os problemas da cidade. Em complementação, na opinião dos estudiosos de políticas públicas, há uma outra quase certeza. Qual seja? Não existe planejamento efetivo sem participação social, sobretudo, daqueles setores mais atingidos pelos problemas e precariedades.
Os poderes municipais, executivo e legislativo, assim como o ministério público, participam ativamente na elaboração, debate e monitoramento dos planos e ações públicas. Este processo é legal e faz parte do jogo democrático. Porém, o que ainda não é de conhecimento generalizado são as ações e experiências desenvolvidas por movimentos sociais e coletivos urbanos. Cada vez mais organizados e criativos, esses ativismos estão aperfeiçoando sua organização política e se apropriando do conhecimento técnico-científico. São capazes não só de reconhecer seus problemas, mas de produzir tecnologias sociais e tocar soluções integrativas, inclusive formatando novos modelos de governança urbana de “baixo para cima”.
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Para amadurecer esta temática, convidei para uma entrevista, aqui reproduzida, Eduardo Machado, professor do curso de Licenciatura em Sociologia da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Além de exímio conhecedor da história do planejamento urbano de Fortaleza, o professor pesquisa e assessora movimentos sociais “periféricos” na nossa capital.
A partir daqui, acompanhe as perguntas feitas por mim e as respostas do professor Eduardo Machado.
Qual a importância da participação popular no desenvolvimento de estratégias de planejamento para grandes aglomerações urbanas?
Eduardo Machado: Os agentes populares já atuam de modo sistemático em parceria com universidades e com outros agentes técnicos, lidando com problemas urbanos graves e complexos, de modo cotidiano, direto e continuado. Desse modo, têm sido capazes de mobilizar expertises e de articular uma agenda político-técnica com práticas, estratégias e propostas inovadoras de enfrentamento – em curto, médio e longo prazo – de vulnerabilidades, desigualdades, segregações e precariedades urbanas.
Apesar da histórica exclusão desses segmentos das instâncias estatais de formação das decisões políticas, eles continuam lutando por direitos e por justiça socioespacial, e apontando caminhos viáveis para enfrentamento de problemas concretos que atingem milhões de pessoas. Nesse sentido, a participação popular no planejamento fortalece a capacidade estatal de enfrentamento efetivo de graves e complexas questões urbanas vivenciadas no país.
Frente às desigualdades sociais, estereotipação das periferias urbanas e organização dos movimentos sociais, quais experiências podemos listar como exitosas no planejamento urbano colaborativo?
Eduardo Machado: O fato a reconhecer é que os agentes populares também fazem planejamento urbano, revelando a constituição de sociedades civis técnica e politicamente potentes nas periferias urbanas. O caso da Rede de Desenvolvimento Local, Integrado e Sustentável do Grande Bom Jardim, criada em 2003 na área sudoeste de Fortaleza, é revelador. Agregando dezenas de entidades populares, movimentos sociais, organizações da sociedade civil e coletivos artísticos e juvenis, a Rede vem tendo atuação relevante, efetivando conquistas significativas relacionadas ao direito à moradia, à regularização fundiária, ao saneamento ambiental e à implantação e adequado funcionamento de equipamentos de saúde, assistência social, educação, cultura e meio ambiente, inclusive com experiências de gestão participativa. No período pandêmico, constituíram um Comitê Popular de enfrentamento à Covid-19, e, em quatro meses, esses agentes foram capazes de apoiar em torno de 30 mil pessoas com alimentação, álcool em gel, máscaras e outros insumos, além de informação em saúde.
Em Fortaleza, as últimas gestões municipais têm valorizado e executado as demandas geradas pelas redes ou grupos populares de planejamento urbano?
Eduardo Machado: É necessário analisar caso a caso. Não há uma política institucional efetiva, integrada, sistemática e continuada de participação democrática dos agentes populares, com a sua incorporação aos processos de planejamento e gestão, às instâncias, decisões e órgãos públicos municipais. O que revela um erro estratégico se se pretende atuar de forma planejada na cidade. Em alguns casos e situações há maior aproximação entre gestores e agentes populares, revelando-se uma sensibilidade de gestores e técnicos, com diálogo, acolhimento de pautas e atendimento de demandas. Nesse contexto, geralmente as demandas são parcialmente atendidas ou demoram bastante tempo para serem efetivadas. É o caso das Zonas Especiais de Interesse Social, que delimitam áreas prioritárias para regularização fundiária e para políticas urbanas na cidade. Apesar de aprovadas em 2009, somente após dez anos efetiva-se a regulamentação de uma parcela dessas ZEIS, com ações concretas e após muita mobilização popular.
Para o momento pós-pandemia, quais seriam os desafios para melhorar a condição de vida nos espaços mais empobrecidos das nossas cidades?
Eduardo Machado: O primeiro desafio envolve escutar os agentes que residem nesses espaços, valorizando suas demandas e proposições. As experiências do Comitê Popular no Grande Bom Jardim em Fortaleza e do Complexo de Favelas da Maré no Rio de Janeiro são reveladoras da potencialidade de constituição de redes de atuação conjunta e colaborativa. Um segundo desafio envolve articular ações imediatas/emergenciais a processos de médio e longo prazo, capazes de projetar e qualificar equipamentos, recursos humanos, infraestruturas, serviços, sistemas e políticas públicas locais. Um terceiro desafio envolve integrar territorialmente diferentes políticas públicas, articulando unidades básicas de saúde, estratégias e políticas de saúde da família, escolas e instituições de assistência social, para exemplificar. Um quarto desafio envolve a sistematização de integração de dados e informações, permitindo que fundamentem as ações concretas a serem efetivadas. Um exemplo prático da importância disso envolve, no período pandêmico, a articulação entre a vigilância epidemiológica, a vigilância popular em saúde e as unidades de atenção básica em saúde.
Do diálogo com Eduardo Machado, deduz-se que o planejamento urbano participativo não é uma mera utopia social e espacial. Vislumbram-se casos concretos e processos sendo aprimorados, super exitosos. Das favelas, dos movimentos populares, formam-se sujeitos sociais e arranjos sociopolíticos a apresentar alta capacidade de gerar saídas para problemas até então insolúveis como a disseminação da violência urbana, da miséria e do desemprego estrutural.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.