Batalhas de rima de Fortaleza projetam artistas no rap nacional
Com a cena de batalhas de rima aquecida na última década, o Ceará tem sido responsável por projetar novos talentos na cena do rap nacional. Nos últimos anos, o freestyle de nomes como Leviano, Mandacaru, MCharles e Tonhão MC se tornou conhecido em batalhas de todo o País, a exemplo das gigantes Batalha da Aldeia, em São Paulo (SP), e do Duelo de MCs Nacional, em Belo Horizonte (MG).
Apesar da produção antiga e significativa na cultura hip-hop, o alcance do Ceará no circuito brasileiro de batalhas é uma conquista recente. Por anos, os cearenses estiveram fora desse radar, o que mudou com a inclusão do Estado no Duelo de MCs Nacional, seguida pela vitória do primeiro MC cearense na batalha – MCharles, campeão em 2019.
Em 2025, um outro nome local pode alcançar o título: Snart, de 21 anos, destaque nas batalhas da Capital e vencedor dos campeonatos Estadual e Regional. Ele irá representar o Ceará, em dezembro, no Duelo Nacional.
Esta é a segunda parte de uma reportagem especial do Verso sobre a importância das batalhas de rima para a cena cultural de Fortaleza. A primeira parte – que trata do impacto do rap na juventude e no enfrentamento da violência urbana – foi publicada nesta quarta-feira (12), no Diário do Nordeste.
Para Erivan Produtos do Morro, rapper, produtor e apresentador da Batalha do Dragão, a chegada de MCs ao maior duelo do País amplia o espaço do Estado no mapa do rap e estimula outros jovens a se dedicarem ao gênero musical.
Junto às batalhas, o artista vê nas redes sociais um caminho possível para que a carreira de jovens MCs sejam alavancadas, mesmo longe do eixo Rio-SP-MG. Além das páginas pessoais dos rappers, perfis das batalhas e contas de fãs reúnem, do YouTube ao TikTok, dezenas de cortes de embates que ocorrem em diferentes pontos do País – e com a cena de Fortaleza não é diferente.
As redes, para além do aumento de seguidores e fãs, tornam-se um meio para que os artistas se conectem a marcas e produtores culturais. Muitos deles, além de artistas, começam a atuar como influenciadores.
Os vídeos mais famosos são os que reúnem os melhores momentos de cada batalha. “Se dá bem o dono da conta, porque o vídeo pode viralizar e ele pode ficar famoso; se dá bem a pessoa que tá assistindo como público, porque ela gosta de ver; e se dá bem o novo MC que tá querendo rimar, porque ele tá vendo como o cara rima”, explica Erivan.
“Querendo ou não, [as redes] ajudam, e a gente consegue saber onde as coisas estão chegando. Os caras de fora do estado consomem nossas coisas e os caras daqui consomem as coisas de fora”, completa.
Na cena cearense, a "fama" nas redes, impulsionada pelo bom resultado nos duelos, também tem impulsionado as novas gerações de rappers, que sonham em chegar ao patamar de artistas conhecidos nacionalmente, afirma Erivan.
“Isso fez só aumentar a vontade da galera de levar isso pra frente, porque é difícil quando você não vê ninguém próximo a você”, pontua. “Antes, os MCs se espalhavam nos caras de fora, mas quando eles veem os MCs daqui ganhando, eles também se veem nessa situação. 'Se o MCharles ganhou, eu posso também'. 'Se o Tonhão tá lá, eu posso também'. É uma visibilidade incrível. E cara que ganha o Duelo Nacional hoje, por exemplo, se souber aproveitar, vira famoso, vira um superstar”.
Ceará campeão nas maiores batalhas
Um dos principais nomes do rap do Nordeste, MCharles, 28 – que fora das batalhas atende por Charles Soares –, nasceu e cresceu em Juazeiro do Norte e reflete a capilaridade da cena do rap cearense, que se estende por várias cidades do interior do Estado.
Além de rimar em eventos conhecidos do Cariri, como a Batalha da Estação e a Batalha do Cangaço, que ajudou a criar, ele também costuma participar de batalhas na Capital – mas circula com frequência pelas maiores batalhas do País, tendo vencido, inclusive, as quatro maiores batalhas brasileiras, conhecidas como “big four” – além do Duelo Nacional (MG), o artista venceu a Batalha da Aldeia (SP), a Batalha do Tanque (RJ) e a Batalha do Museu (DF).
Apesar do sucesso, MCharles destaca os obstáculos da vida de artista independente, principalmente para quem tem como foco as batalhas de rima e está longe das capitais. “Mesmo não tendo apoio e patrocinadores, seguimos firme em nossos objetivos e sonhos, em busca de mais respeito e quem sabe um futuro melhor”, destaca.
Em Juazeiro do Norte, Fortaleza ou em batalhas de outros estados e regiões, a missão de Charles é a mesma: fazer rap com propósito, o único possível. “O rap salva vidas. Nos ajuda a expressar coisas através de rimas e lutar por direitos por meio da poesia”, aponta. “E além da gente, tem outras pessoas que conseguimos ajudar através da música ou das batalhas. É o que chamamos de combustível para continuar”, conclui.
Fortalezense na maior disputa do País
No fim deste mês, na capital mineira, um novo talento da terra promete brilhar no Nacional. Conhecido pelo nome artístico Snart, o MC e assistente de telemarketing Cauã Ribeiro de Lima tem sido reconhecido como um dos destaques na nova geração.
Vencedor dos campeonatos Estadual e Regional deste ano, Snart sempre gostou de cantar, e aos 12 anos começou a se interessar pelo rap, ao descobrir as batalhas de rima. Aos 13, começou a rimar na escola, e alguns anos depois começou a frequentar duelos como a Batalha da Origem e a Batalha da PN.
Hoje, o MC é presença assídua na Cururu Skate e Rap, na Parangaba – considerada a maior do Estado –, e na Batalha da Semi, no Rodolfo Teófilo. A participação frequente nas batalhas foi ponto definitivo para o bom resultado nas competições e a chegada ao Nacional, que parecia um sonho distante.
“A importância de vencer o Estadual é a maior de todas para um MC. É como ganhar um bilhete premiado, no qual esse bilhete te abre portas pro que parece ser impossível”, comenta. A expectativa agora, conta Snart, é dar o melhor no maior duelo do País e “mostrar pro eixo que no Nordeste existe rap” e que “o rap cearense é uma fonte de talentos”.
As batalhas de rimas conseguem ocupar o tempo de jovens da favela, que poderiam estar fazendo algo de errado, mas preferem estar em uma praça se expressando. As batalhas de rima salvam vidas.”
Cena local ainda é majoritariamente masculina
Ainda que o público das batalhas seja cada vez mais diverso, com mulheres e pessoas LGBTQIAP+ participando ativamente da cultura hip-hop, a presença feminina nos duelos de Fortaleza ainda é considerada tímida por produtores e MCs. Assim como em relação a outras cidades do País, essa realidade não significa que não existem mulheres cantando e produzindo rap, mas que o acesso aos espaços de destaque ainda é extremamente desigual.
Nas batalhas, os nomes que despontam atualmente pela rima afiada e presença constante nas batalhas são os de Yara Ferreira, a Star MC, de 22 anos, e de Raíssa Maria, a MC Agni, de 19 anos.
Iniciada no rap ainda adolescente, Star começou a rimar na Batalha da PN, no Presidente Kennedy, e hoje participa com frequência da Cururu Skate e Rap, na Parangaba, considerada a maior batalha do Estado, onde obteve reconhecimento como MC na Capital.
“O rap me salvou”, comenta a jovem, que tem se dedicado à música em tempo integral. “Transformou minha vida, tem sido a força que me mantém de pé. Me salva da depressão e me ajuda a ver sentido na vida”, completa.
Apesar dos avanços, Star comenta que ainda é difícil ver mulheres rimando nas batalhas da Cidade. “A cena ainda é muito machista e misógina, nós ainda encontramos muita dificuldade em nos sentirmos confortáveis nesse meio. Estamos avançando lentamente, mas consigo ver progresso quando olho para a plateia e vejo mais mulheres presentes, apesar de ser um processo lento e doloroso, estamos progredindo”, aponta.
A falta de representatividade na cena, conta, se tornou um motivo para não desistir do rap e se dedicar cada vez mais a rimas afiadas e competições em toda a Capital. Além disso, iniciativas em outros locais do Estado mostram alternativas para que Fortaleza avance.
“Pra mim uma motivação incrível para continuar veio de Sobral, que hoje é a primeira e única do Ceará a realizar uma batalha apenas com mulheres, a batalha Mina Rima”, conta. Foi lá, inclusive, que Star conquistou uma vaga para disputar o Estadual de MCs.
Se apresentando em batalhas de rima e “onde chamarem”, Agni MC divide o tempo entre o trabalho como operadora de telemarketing e a arte. Inserida na cultura hip-hop desde a infância, quando participava de apresentações culturais no Curió, bairro onde cresceu, começou a rimar na adolescência, em ônibus da Cidade, “para conseguir uma grana”.
“Eu não tinha vontade [de participar de batalhas] porque não me sentia representada, tem poucas mulheres aqui na cena”, conta. Há dois anos, no entanto, foi a uma batalha em que uma MC de fora – Sofia MC, de São Paulo – se apresentou e percebeu, com o apoio dos amigos e do namorado, que também é rapper, que tinha a “marra” necessária para rimar daquele jeito.
“Eu tive que ter uma mulher ali que me inspirasse, né? A gente não se identifica com todo mundo e, é claro que eu admirava muito os manos que eram meus amigos e estavam ali rimando e sempre me chamando para rimar também, mas a gente não percebe o quanto uma representatividade importa”, comenta.
Atualmente, Agni tem tido dificuldade de participar ativamente nas batalhas, já que trabalha no período noturno, horário em que os duelos costumam acontecer. Sempre que possível, se inscreve em batalhas diurnas ou aos domingos, e segue acompanhando com orgulho o crescimento da cena.
“O rap não é um bagulho muito valorizado, principalmente batalha de rima. Mas com a galera, com o movimento, a união mesmo, eles fazem acontecer”, comenta.
“A visibilidade tá aumentando, e se Deus quiser a gente vai crescer cada vez mais. Porque a gente sabe que Fortaleza, e o Nordeste em si, não é um canto que tem muita visibilidade assim, da mídia, mas a gente tá fazendo a nossa própria visibilidade. A gente tá fazendo o movimento e tá crescendo”, aponta.
“Mesmo que tenha pouca representatividade feminina aqui em Fortaleza, a gente faz por onde, a gente dá nossos pulos. E vai chamando cada vez mais, né? Porque é isso, a gente pensa que não, mas faz muita diferença ter representatividade, a mulher olhar e ver outra mulher fazendo o que ela poderia fazer também.”
Para Star MC, é preciso que, além do incentivo público e apoio às batalhas, existam medidas para reduzir a desigualdade de gênero nos duelos, visando estimular novas gerações de artistas. “Realizar oficinas de rimas apenas para mulheres, rodas de conversas antes das batalhas, o incentivo nas redes sociais com campanhas feitas pelas batalhas mesmo”, elenca.
“É importante a participação para empoderar e incentivar mulheres que gostam de estar presente na cultura. É a quebra de barreira em um espaço tradicionalmente dominado por homens. É mais um espaço que é nosso por direito, para que nossas vozes sejam ouvidas”, conclui.
Desigualdade de gênero vai além das batalhas
Nacionalmente, o rap brasileiro vive um raro momento em que muitas mulheres rappers estão em destaque ao mesmo tempo – a maioria delas em atuação no Sudeste, a exemplo de Ajuliacosta, Ebony, MC Luanna e Tasha & Tracie, para citar exemplos que lançaram novos trabalhos recentemente e figuram com frequência em grandes eventos.
No entanto, a cena do rap ainda é tida como pouco receptiva a trabalhos de mulheres, não só em batalhas, mas por parte do público, por outros artistas, em estúdios e no backstage. É o que aponta a rapper cearense Dame de Maria Gois, a Má Dame, que há pouco mais de uma década frequenta e se apresenta em eventos de rap no Ceará.
Cria de saraus do Antônio Bezerra e do Jangurussu, ela também frequentou batalhas de rima por muitos anos, apesar de não se considerar uma “MC de batalha”, e conta que a falta de representatividade nas batalhas ecoa um problema que vai além dos duelos de MCs. Para ela, o número de mulheres que rimam e produzem batalhas tem aumentado, mas está longe do satisfatório.
“O rap, em sua maioria, todos os cargos, desde a pessoa que faz a produção, desde o produtor que faz a mixagem, a masterização, passando pelos organizadores de batalha de rima, pelos MCs de batalha, é majoritariamente masculino”, pontua.
“A dificuldade que a gente sempre teve junto a essa quantidade toda é o machismo, é a misoginia. Muitas vezes ocorrem silenciamentos de nossos discursos, de nossas vozes, de nossas rimas pelos próprios participantes de tais movimentos, porque é um reflexo do mundo, é um reflexo da nossa sociedade. O rap é o resultado da rua”, completa.
Para Má Dame, esse monopólio masculino é o maior desafio que rappers mulheres têm enfrentado para se sentir à vontade para adentrar no mundo das batalhas e na indústria musical. No entanto, existe um caminho possível, ao mesmo tempo simples e complexo: o diálogo.
“Acho que a principal via para que a gente possa ter esse estímulo para mulheres participarem das batalhas da cena do rap é o diálogo entre nós, primeiramente. Nos organizarmos, dialogarmos sobre a importância das mulheres dentro do rap, dialogarmos sobre violência de gênero, para que seja compreendido que o espaço, o acesso é dificultado para mulheres por ser uma cena majoritariamente masculina. Muitas das vezes não é direta, não é um ‘não, você não pode’. É ir levando ali no cansaço”, explica.
Esse debate, no entanto, não pode se restringir a artistas e produtores: deve também ganhar eco junto ao poder público, para que políticas específicas alcancem as artistas em suas demandas.
“Devíamos pontuar a importância, talvez de editais, voltados para o protagonismo feminino no rap”, destaca. “Seja um edital de mulheres no rap, de produção feminina, porque há essa necessidade de uma possibilidade para que as mulheres tenham seus trabalhos vistos, que elas possam trabalhar com a arte que elas produzem”, completa.
Apesar dos desafios, Má Dame destaca a importância do rap para a juventude, de modo geral, seja ouvida e ganhe protagonismo através da música. “Batalhas tiram jovens de movimentos ruins da rua como o crime, o tráfico, o abuso de drogas, de substâncias ilícitas”, ressalta. “A batalha tem esse poder de reeducar, de conseguir salvar, muitas vezes, os artistas envolvidos, assim como o rap em si”, conclui.
Acompanhe os artistas:
- Agni: @agni.mc
- Erivan Produtos do Morro: @erivanprodutosdomorro
- MCharles: @mcharlesoficial
- Má Dame: @somadamemermo
- Snart: @snartt7
- Star: @starmc_085