'Eu não sabia que você gostava de mina do cabelo duro'
Depois de proferir ataques racistas à Ananda, cantora do grupo Melanina Carioca, a modelo e apresentadora Ana Paula Minerato perdeu o posto de musa da escola de samba Gaviões da Fiel
“Você está envolvida nesse negócio, sabe? Porque você botou minha avó para trabalhar, depois fez a mesma coisa com a minha mãe e agora é a minha vez. E você realmente pensou… você pensou que valia mais porque é uma mulher, uma mulher branca, por isso você imaginou que era intocável como um anjo.”
A ativista por direitos políticos e civis estadunidense, Fannie Lou Hamer, tece críticas em relação à prática de distinção entre as mulheres, em função da condição de cor e classe. Não há liberdade no movimento feminino enquanto houver entre as mulheres empenho e energia em reprimir ou desmoralizar outras. Ninguém é verdadeiramente livre, até que todas sejamos.
Nesses dias, um áudio de uma mulher viralizou nas redes sociais. A modelo e apresentadora Ana Paula Minerato profere ataques racistas direcionados a Ananda, cantora do grupo Melanina Carioca. A artista oficializou a denúncia junto aos órgãos de justiça. Ana Paula perdeu o posto de musa da escola de samba Gaviões da Fiel e foi desligada do cargo de apresentadora do programa de rádio Estação Band FM.
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A sociedade tende a encarar as mulheres negras dentro de padrões estabelecidos pela própria estrutura. Esse sistema de opressão é, usualmente, alicerçado no sentimento de submissão e domesticidade. As imagens de controle sobre o que é ser uma mulher negra orquestram uma série de violência e, geralmente, são pensadas e praticadas no intuito de naturalizar o sexismo, o racismo e a justiça social.
A intelectual Patricia Hill Collins elencou algumas dessas ideias aplicadas às mulheres: a servil e obediente que age em função dos cuidados das outras pessoas; as mulheres que se nutrem apenas por “mamar nas tetas do Estado”; as mulheres onde sua vida giram exclusivamente em função do trabalho e a representação de que as mulheres negras estão sempre sexualmente disponíveis.
Em curto espaço de tempo, os áudios de Ana Paula Minerato produziram uma imagem sobre o corpo, a motivação, o comportamento da vítima e, nesse momento, a apresentadora age numa posição de autoridade em que exerce o poder de definir a outra, retirando de Ananda a possibilidade de ela se entender enquanto sujeito de direito.
“A empregada [doméstica], a do cabelo duro. Você gosta de cabelo duro KT? Eu não sabia que você gostava de mina do cabelo duro. Por isso ali é neguinha né, alguém ali, o pai ou a mãe, veio da África, tá na cara”. “Não tem problema? Sério? Por que você tem tanto cuidado com ela?”.
Em apenas um diálogo, no processo violento de desumanização, Ana Paula definiu a artista como a mulher que ocupa apenas os lugares de subalternidade. A mulher que somente pode desenvolver trabalho doméstico ou a mulher que é explorada como objeto sexual e que, portanto, não haveria outras motivações para a sua companhia se a satisfação sexual não fosse a única intenção. Afinal de contas, “cuidado é uma dimensão do amor.” (Bell Hooks). Não à toa, Ana Paula reivindica para si o lugar do cuidado. Pareceu uma ofensa colocar uma mulher negra nesse espaço, como se para essa somente o desamor deveria ser “a ordem do dia”.
Língua cortada, dentes arrancados, chicoteadas, amputação das mãos, dos olhos e seios, queimaduras nas genitais, feridas, cicatrizes, contusões e ferimentos. Essas são algumas práticas de castigo e tortura que as sinhás pratica(va)m com as negras escravizadas. Desumanizar a mulher negra e compreendê-la como mercadoria é uma herança de um mundo deformado.
Trocando em miúdos, digo para as mulheres brancas: não há primavera sob a cinza alheia. Para mulheres negras que “comportam marés bravias”, encarem o espelho de frente e façam coro à voz de Nina Simone: “tenho o meu cabelo, tenho minha cabeça / Tenho meu cérebro, tenho minhas orelhas / Tenho meus olhos, tenho meu nariz / Tenho minha boca / Eu tenho a mim mesma.”
Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.