Violências, rapto e apropriação de crianças e adolescentes na Ditadura seguem sem reparação no País
A necessidade de reparação às violações aos direitos humanos ocorridas no Regime Militar é tema do livro que o advogado Hélio Leitão, conselheiro federal da OAB, lança nesta quinta-feira (17)
Embora tenha sido a principal ação já realizada no País para a busca da verdade, da memória e da justiça com relação aos crimes cometidos durante o Regime Militar (de 1964 a 1985), a Comissão Nacional da Verdade (CNV) não conseguiu aprofundar as investigações e nem garantir a devida reparação de danos.
Especificamente, casos de violências, rapto e apropriação de crianças e os adolescentes que vieram à tona na CNV foram apenas brevemente mencionados no Relatório Final da comissão.
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"Ela [a Comissão Nacional da Verdade] apenas tangenciou o tema das crianças e adolescentes vítimas da ditadura", diz o doutor em Direito Constitucional Hélio Leitão. Segundo ele, além de sofrerem as consequências dos abusos cometidos contra seus pais, muitos foram vítimas diretas do regime de exceção.
"Nós temos casos de crianças que foram torturadas, que viram seus pais sendo torturados, que foram torturadas presença dos seus pais", relata. O jurista entende que o Brasil "nunca vai conseguir superar esse momento histórico se a verdade não vier à tona e efetivamente nós não tivermos a responsabilização pelos crimes da ditadura".
Livro propõe parâmetros para políticas públicas de reparação
A necessidade de reparação de danos dessas jovens vítimas foi o tema da tese de doutorado do advogado, que já foi presidente da OAB Ceará e atualmente é Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
O trabalho foi transformado no livro “Crianças e adolescentes vítimas da ditadura - Reparação dos danos à luz dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, que será lançado nesta quinta-feira (17).
Na obra, o autor propõe parâmetros para a formulação e execução de políticas públicas que possibilitem a reparação de violações aos direitos humanos ocorridas entre 1964 e 1985 no Brasil.
O propósito do livro “é manter acesa a chama do debate, a chama de que o processo justransicional brasileiro continue, que haja um aprofundamento”, defende Leitão, que foi secretário de Justiça do Estado e presidiu a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB.
O evento de lançamento contará com a presença de José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça (2011-2016) e ex-advogado-geral da União (2016).
Decisões internacionais
Em sua pesquisa, Hélio Leitão se baseou em experiências internacionais e no direito internacional dos Direitos Humanos, em particular decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o Tribunal de São José da Costa Rica.
Duas dessas decisões da CIDH condenaram o Brasil. Os casos Gomes Lund – Guerrilha do Araguaia e Vladimir Herzog consideraram que a Lei da Anistia é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos e recomendaram o País a revisão dessa legislação, o que é defendido por pelo advogado, que também é professor universitário.
Crianças sequestradas
Os abusos cometidos nesse período da nossa História ainda não foram devidamente investigados. Contudo, ações individuais têm feito o papel que o Estado ainda não conseguiu realizar efetivamente na busca dessas reparações.
É o caso do jornalista Eduardo Reina, que conta no livro-reportagem "Cativeiro sem fim" sua descoberta de 19 casos de sequestro de filhos de opositores do regime militar, 11 deles ligados à Guerrilha do Araguaia.
O trabalho de Reina foi uma das fontes da pesquisa de Hélio Leitão. Segundo o advogado escreve em seu livro, "muitos dos filhos de presos políticos foram mantidos em cárcere ou nasceram em cativeiro, presenciando, desde tenra idade, ameaças, torturas e assassinatos".
Além disso, há crianças que "sequer conheceram os seus pais. Em determinados casos, foram fichados e banidos do território nacional por supostamente serem ‘perigosas à segurança nacional", revela.
Filha de guerrilheiro cearense apropriada
Uma das crianças tomadas pelo regime foi a filha do guerrilheiro cearense Antônio Teodoro de Castro, conhecido pelo codinome "Raul", executado em 1974, aos 25 anos, na Guerrilha do Araguaia (1972-1975).
Lia Cecília da Silva Martins sabia que era adotada desde os 10 anos, mas foi o acaso que deu pistas sobre sua origem, quando um amigo em Belém, onde ela vivia, leu uma reportagem da Folha de São Paulo com Maria Mercês Castro, irmã de Teodoro. O jovem então teria notado a semelhança com a tia e “me ligou por achar parecido com a minha história”, contou Lia em matéria publicada em 2010 pelo Diário do Nordeste.
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Depois disso, foi feito o contato e exames de DNA mostraram mais de 90% de compatibilidade com as irmãs do Guerrilheiro. A mãe seria uma parceira de Teodoro na guerrilha, ou uma moradora da região do Araguaia, atualmente no estado do Tocantins.
Casos como este motivaram Hélio Leitão a concluir sua tese que se tornou livro. “Eu acho que nós, os democratas deste País, temos a obrigação de lutar, porque essa memória não veio à tona na sua inteireza”, diz.
Segundo ele, “os crimes da ditadura estão encobertos ainda sob um manto de vergonha. A Comissão Nacional da Verdade levantou a ponta do véu. Eu tenho muito nítida essa compreensão”, finaliza.
Mais informações
O livro “Crianças e adolescentes vítimas da ditadura - Reparação dos danos à luz dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, de Hélio Leitão, será lançado nesta quinta-feira (17), às 19h, no auditório da OAB-CE (Avenida Washington Soares, 800 – Guararapes).