Quando iremos reagir contra a degradação constante da imagem do sertão e dos sertanejos nordestinos?

No Rancho Fundo: como sempre a trama se passa num passado longínquo, que é onde parece que o Nordeste sempre está estacionado

Escrito por
Durval Muniz de Albuquerque Jr producaodiario@svm.com.br
Foto: JOÃO COTTA/TV GLOBO/DIVULGAÇÃO

Desde o seu título, a próxima novela a ser exibida pela Rede Globo de Televisão, milita em desconhecimento, reprodução de clichês e estereótipos preconceituosos e desinformados, acerca do sertão e dos sertanejos nordestinos. No Rancho Fundo, embora vá ter como cenário fictício uma localidade do sertão paraibano, “as terras áridas do Cariri”, a localidade de Lasca Fogo (nome mais estereotipado impossível, remetendo ao que seria o clima quente e a ambiência social violenta), adota como título o mesmo de uma canção de Ary Barroso e Lamartine Babo, gravada pela primeira vez, em 1931, pela cantora gaúcha Elisa Coelho, embora muita gente deva conhecer a música pela gravação feita por Chitãozinho & Xororó, em 1989. O universo natural e social retratado pela canção nada tem que ver com o sertão nordestino, sequer é comum nessa área do país o uso da palavra rancho.

A palavra rancho é de uso comum no Rio Grande do Sul (não por coincidência é uma cantora gaúcha que faz o primeiro registro sonoro dessa canção), onde designa uma chácara ou fazenda, quase sempre dedicada ao lazer ou turismo. Ela também é de uso comum em Minas Gerais, onde nasceu Ary Barroso, e no Rio de Janeiro, onde nasceu Lamartine Babo, onde nomeia uma construção rural dedicada a guardar ferramentas e suprimentos.

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Quando é utilizada, no Nordeste, a palavra rancho remete a um local de pouso provisório de um grupo de pessoas em deslocamento, ao gesto de se arranchar, de fazer rancho, o que por extensão leva a se nomear, como sendo um rancho, uma construção precária, provisória, muitas vezes erguida para se colocar os pertences e se fazer a comida dos trabalhadores que estão reunidos para realizar uma tarefa ou trabalho (daí porque rancho pode ser a comida e fazer o rancho pode ser comer ou preparar a comida). Mas é, justamente, esse sentido de precariedade, de pobreza, de provisoriedade, que deve ter levado o autor da telenovela, o escritor paulista Mário Teixeira, a optar por esse título, além, claro, de facilitar a recepção de sua obra, nomeando-a com o título de uma canção que já conheceu inúmeras regravações, em diversos ritmos, por grandes nomes da música brasileira, tendo sido escolhida, pela própria Rede Globo, nos anos noventa, para figurar entre as trinta músicas brasileiras do século XX.

Também não se pode negligenciar o adjetivo “fundo” que qualifica o rancho em que a história da canção se passa. O rancho fundo, de Ary Barroso e Lamartine Babo, ficava bem pra lá do fim do mundo, e essa é a imagem clichê que se tem do sertão nordestino, ele é um verdadeiro cafundós do Judas, uma terra distante no tempo e no espaço. A localidade de Lasca Fogo, sendo sertaneja, deve ficar nos fundões do tempo e do espaço.

Como sempre o município de Cabaceiras, na Paraíba, e a localidade de Lajedo de Pai Matheus, vai servir de locação para materializar esse sertão atemporal, esse sertão que é infenso a história, que está sempre parado no tempo. A falta de imaginação do autor é tal, que vai retomar, inclusive, personagens de sua trama anterior, Mar do Sertão, fazendo dessa “nova”(?) novela uma espécie de seguimento e epílogo da anterior.

Como o que interessa a ele e a própria emissora é ter recepção fácil (tanto que a emissora antecipou a rodagem dessa novela e suspendeu a gravação de Lícia, por considerar uma trama que era elitista, não era popular, essa eterna imagem de que o povo quer consumir sempre o mesmo), é ter audiência, mesmo que às custas da repetição de lugares comuns que, aliás facilitam a recepção, já que se oferta o que se espera, vai se reproduzindo esse imaginário depreciativo e completamente anacrônico acerca da região.

Como sempre a trama se passa num passado longínquo, que é onde parece que o Nordeste sempre está estacionado. E, mais uma vez, a novela servirá para reinstaurar hierarquias preconceituosas entre os espaços do país: o Nordeste representando o atraso, o passado, o subdesenvolvimento, a barbárie; em contraposição às terras civilizadas do país.

Essas novelas fazem sucesso justamente por que servem para colocar o Nordeste e os nordestinos em seus lugares, de periferia, de menoridade, agora que essa região se atreve a ameaçar a hegemonia econômica, política e educacional do Centro-Sul. A insistência em tramas nordestinas, neste momento, pela Rede Globo, nada tem de inocente. A emissora está se aproveitando da polarização política do país, que também tem contornos regionais e territoriais, para recolocar o Nordeste no seu lugar, como motivo de riso e chacota, como motivo de tramas pretensamente de humor, para desqualificar a região e seus habitantes.

Também não consigo ver qual a relação pode existir entre No Rancho Fundo e a trama do romance A Capital Federal, de Arthur Azevedo, que, segundo as reportagens que li, seria a referência para a escrita da trama. Possivelmente será a base para a exploração de mais um lugar comum, muito presente na ficção brasileira, que é a dicotomia entre o sertão e a cidade, as brenhas do sertão, a incultura e a falta de civilidade sertaneja, e a civilização representada pela metrópole, no caso entre a localidade de Lasca Fogo e a metrópole Lapão da Beirada (esses nomes pretensamente sertanejos são de um mau gosto atroz).

O cartaz de divulgação da novela, que já mereceu a redação de textos críticos por outros intelectuais (categoria que o autor da novela não aprecia, por serem críticos e ganharem pouco), é muito significativo. A cor escolhida é o sépia, que remete para o envelhecido, o amarelado, pelo passar do tempo. Como a trama se passaria no século XIX (tanta coisa interessante acontecendo no Nordeste e ele confinado a viver no antanho), quando o recorte regional Nordeste sequer existia e sertão era uma categoria que ainda não havia sido capturada pelo regionalismo nordestino, havendo sertões em todos os lugares do país (e é a essa vida sertaneja, caipira, do interior das terras do Sul, que a canção No Rancho Fundo se refere), a cor sépia remete para esses tempos recuados, delidos pelo passar dos anos.

Mas, como observaram outros autores, a cor sépia dá também um aspecto de sujeira, de pobreza, de rusticidade as figuras humanas que aí aparecem, parece uma imagem saída das fotografias feitas dos retirantes da seca de 1877-1879. Essa imagem não deixa de ter conotações racistas, à medida que torna todas as figuras pardas, escurecidas, racialmente não brancas. A reprodução dessas imagens clichês acerca do sertão e dos sertanejos nordestinos, a repetição ad nauseum das mesmas temáticas, dos mesmos personagens (coronéis, cafetinas, padres, políticos corruptos, valentões machistas, mocinhas inocentes, românticas e casadoiras, engomadinhos citadinos, matadores, cangaceiros, beatas e beatos), significa a permanente degradação da imagem da região e de seus habitantes.

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É lamentável perceber a conivência dos atores e atrizes de origem nordestina, que por deslumbramento ou conveniência, por trabalharem na Rede Globo, silenciam diante desse ataque a suas próprias imagens, no mesmo instante em que encarnam e dão vida a essas caricaturas. Muitos que têm senso crítico e que sabem do significado de reporem essas imagens se calam, aceitam até falar um sotaque postiço e afetado, como se seus próprios modos de falar não fossem, suficientemente, nordestinos. Sei que necessitam do trabalho, isoladamente não teriam o condão de mudar isso, mas creio que se coletivamente exercessem a crítica interna a essa estereotipização, nem que fosse com o uso da ironia e do sarcasmo, creio que se poderia ir corroendo por dentro essa maquinaria de reprodução de preconceitos. Não menos chocante é ver autoridades nordestinas referendando, quando não financiando, esses constantes ataques a imagem da região e de seus moradores.

A governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra, uma dirigente de esquerda, não apenas recebeu com mesuras as atrizes e atores potiguares que atuaram em Mar do Sertão, o que é compreensível e aceitável (embora seja um indicio do complexo de inferioridade que nos constitui como nordestinos: se um governador de São Paulo fosse festejar os atores paulistas a cada vez que fazem uma novela, ele não faria outra coisa; seria a hora da governadora por o dedo nessa ferida, na desigualdade de oportunidades para os artistas nascidos no Nordeste, mas não o fez), mas rasgou elogios a uma novela cheia de estereótipos depreciativos, de lugares comuns despectivos em relação aos moradores de sua regiãi. Já vimos um governo do Piauí financiar uma novela que fazia uma caricatura desrespeitosa e de mau gosto dos piauienses e dos próprios nordestinos.

Creio que está passando da hora de coletivamente e institucionalmente nos contrapormos a essa degradação constante da imagem da região e de seus habitantes, pois essas práticas não são apenas desinformadas e ignorantes, elas são interesseiras economicamente e interessadas politicamente. Proponho que se faça um abaixo-assinado, acompanhado de um protesto endereçado a direção da Rede Globo de Televisão, lembrando que essa degradação permanente da imagem de um agrupamento humano pode ser juridicamente tipificada como crime. Não dá para continuarmos achando graça e nos divertindo com a nossa própria ridicularização, que continuemos servindo de pretexto para todas as farsas (seja como gênero literário, seja como atitude ética e política).

Está na hora da classe artística, dos intelectuais, de nossos representantes no mundo da política, da mídia regional, protestarem veementemente contra essas seguidas agressões a autoestima de quase um terço da população do país, contra esse permanente vilipendio de nossa autoimagem, contra esse trabalho permanente de subalternização e degradação racista e preconceituosa dos sertanejos nordestinos. Esse abuso, que rende muita grana a quem o patrocina, que tenta desqualificar, inclusive, o que região representa hoje de contestação ao status quo no país, deve ser tomado como o que é: uma prática contumaz de desrespeito a uma parcela da população do país. Chega de panos quentes e de cumplicidade interessada, a hora requer coragem de afrontar essa máquina de fazer imbecis que está levando o país para essa ladeira abaixo ética, estética e política.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.

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