Liniker: quando a diva é uma travesti preta
Na coluna anterior, tratamos da importância da arte e da cultura no enfrentamento das violências de cunho LGBTIfóbico. Como uma incontestável representação pré-anunciada desse debate, Fortaleza foi agraciada, logo depois, com a realização do Festival Elos no último domingo (23), que trouxe de forma significativa em sua programação a potência de artistas LGBTI+ cearenses e nacionais da qual já falamos. O Elos nos faz retomar esse assunto hoje, para que fique registrado um movimento importante: podemos estar vivendo – pela arte – o anúncio de um futuro possível para corpos dissidentes.
Primeiro, tomemos nota da maravilhosa Mulher Barbada, cantora drag queen cearense que deu o nome e o sobrenome com o show “Bárbara”, abrindo o show da Liniker na Praia de Iracema. A persona que ganha vida através do ator Rodrigo Ferreira já é figura consagrada na cena cultural pela sua performance no teatro e à frente do Bloco Mambembe, mas, certamente, o show no Festival Elos foi uma excelente oportunidade para que o público conhecesse mais vertentes da sua voz e o trabalho autoral do seu álbum solo, que segue desvelando uma arte pop made in Ceará.
Dito isso, precisamos falar sobre o show mais disputado daquela noite, a apresentação da cantora Liniker, de apenas 29 anos de idade, canceriana nascida no interior de São Paulo. A voz de Liniker já ecoa entre nós desde 2015, quando se lançou junto à banda Os Caramelows. Em 2022, a compositora de “Baby 95” ganhou o Grammy Latino na categoria Melhor Álbum de Música Brasileira, inaugurando um marco importante para a sua carreira e para toda a comunidade de travestis e transexuais, sendo a primeira artista trans a ser agraciada com o prêmio.
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Mas veja como a vida é um negócio interessante: mesmo com todo o reconhecimento já conquistado, foi em 2024 o grande boom na carreira de Liniker, a partir do recém-lançado álbum “Caju”. Com apenas 24 horas de divulgação, por exemplo, Caju já tinha alcançado a marca de 6 milhões de reproduções, seguindo agora em turnê de sucesso ímpar para uma artista nacional da sua geração, esgotando ingressos em poucos minutos por onde passa. A “febre Caju” é fruto do perceptível amadurecimento de Liniker como pessoa, compositora e intérprete, fazendo com que o seu trabalho fure gradualmente bolhas pouco antes transpostas e a projete como uma uma das grandes divas da música popular brasileira atualmente.
É curioso perceber que, no país que mais mata pessoas LGBTI+, Liniker foi ao gosto popular por sua capacidade singular de falar sobre os afetos da intimidade, obviamente, sob a ótica de uma existência marcada pelo estigma, pelo anseio do amor correspondente que é negado aos seus pares. E foi assim, nesse mar contraditório, que Fortaleza abraçou uma artista trans como headliner do Festival Elos e Liniker fez bonito: lotou o aterro da Praia de Iracema e fez cerca de 50 mil pessoas cantarem em um só coro (outras vezes as emudeceu) ao seu bel prazer.
Fiquei pensando como seria importante que as travestis que frequentam a Beira Mar, a poucos metros dali, também pudessem um dia ser celebradas, abraçadas como a Liniker. A estrada ainda é longa e o chão é duro, mas uma de nós materializou o futuro e nos permitiu saber como é, fomos testemunhas.
Sigo com a ideia de que a arte e a cultura LGBTI+ nos ajudam a ressignificar a vida, a manter viva nossas potências e a construirmos relações mais democráticas com a cidade. Quando a diva da vez é uma travesti preta, como disse a própria Liniker, “eu me encho de esperança de algo novo que aconteça”.
Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.