Por que é tão difícil virar a página?
Ao tomar decisões, considerar tanto a razão quanto a emoção pode ajudar a superar o receio e a incerteza, permitindo que novas oportunidades e vínculos surjam
Quem já não enfrentou dificuldades ao terminar um relacionamento complicado ou simplesmente desistir dele? Por que, para algumas pessoas, é tão difícil terminar um relacionamento que não se sente confortável? Por que demoramos tanto para virar a página já lida e fechar o livro? O que temos medo de descartar por não ter lido ou compreendido? Qual seria o pecado imperdoável que me faz ser eterno prisioneiro de um relacionamento? Quanto tempo precisa para se dar conta que está na hora de virar a página?
Essa dificuldade está profundamente enraizada em medos e inseguranças que podem ser difíceis de identificar e enfrentar. Um dos medos mais recorrentes é o da solidão, levando muitas pessoas a permanecerem em relacionamentos insatisfatórios por medo de não encontrar outra pessoa ou enfrentar a vida sozinho. Além da solidão, a culpa também desempenha um papel significativo. Deixar para trás alguém que foi importante pode gerar um sentimento de dívida emocional, como se estivéssemos traindo ou negando tudo o que foi vivido.
Quando há um sentimento de gratidão pelas experiências positivas que compartilhamos juntos, isso pode nos manter em um relacionamento que, há muito tempo, deixou de ser saudável. A gratidão pode ser uma ferramenta poderosa nesse processo, pois nos faz lembrar que, mesmo após o término do relacionamento, as lições aprendidas e os momentos de felicidade continuam fazendo parte da nossa identidade.
Outro aspecto importante nesse processo é a dificuldade em distinguir o presente e o passado. As nossas reações emocionais em um relacionamento atual são frequentemente influenciadas por vivências anteriores, especialmente aquelas relacionadas à infância. Por exemplo, aqueles que cresceram sem a presença paterna podem ter reações desproporcionais quando percebem um distanciamento emocional do parceiro/a atual. Esses comportamentos, muitas vezes inconscientes, podem ser difíceis de romper sem reflexão e autoanálise.
Até que ponto estamos confundindo o atual livro com o que já foi lido no passado? A página lida hoje me remete a algo que já vivi e tenho dificuldade para distinguir os personagens de ontem dos de hoje.
Considerando que minha reação está relacionada ao ontem e não ao hoje, a emoção suscitada é verdadeira, mas o cenário é diferente. O diálogo que preciso ter é do adulto de hoje com minha criança de ontem, e não necessariamente com meu companheiro/a de hoje. Outros descobrem que está prisioneira de uma infância ferida, abandonada e negligenciada e que tinha que virar essa página consigo mesma e não com o companheiro/a atual.
Como psicoterapeuta, testemunho que muitos desses equívocos resultam em separações dolorosas ou que não se completam. Um ditado chinês diz: “faz prova de sabedoria, quando acabar de ler um livro, fechá-lo”. Há os que relutam em trocar um livro por outro. Ficam lendo, relendo e relembrando as boas passagens das primeiras páginas, tentando justificar que hoje está ruim, mas ontem foi tão bom, como se isso ajudasse. Terminam por rasgar, inutilizar um livro que nos auxiliou no passado, mas que, no presente, só traz desgosto e sofrimento.
Reconhecer que o fim de um relacionamento não apaga as experiências positivas vividas é essencial para lidar com a virada de página de maneira saudável. Se essa relação foi baseada na reciprocidade, você aprendeu e ensinou, amou e foi amado/a, por ser amado/a, desenvolveu e auxiliou o outro a crescer. Não é verdade que apenas um ou outro terá prejuízos. Além disso, é fundamental aprender a distinguir as atitudes das pessoas de seus valores essenciais.
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Muitas vezes, nos sentimos presos a uma sensação de lealdade às pessoas, o que pode nos impedir de seguir nossos próprios valores e princípios. A verdadeira amizade e o amor autêntico não exigem concordância total, mas sim o respeito mútuo e a capacidade de crescer com as diferenças. Isso quer dizer que devemos nos sentir à vontade para nos posicionar contra atitudes que contrariam nossos valores, sem que isso seja interpretado como uma traição pessoal.
Como já dito, a gratidão deve estar presente em momentos de mudança de página. É ela que lhe dará a segurança necessária para reconhecer que houve momentos inesquecíveis que permanecerão vivos para sempre. Ajudará o outro a compreender que a mudança de rumo nunca apagará os frutos desta convivência. Agradecer pelos momentos de felicidade, cumplicidade e troca de afeto. É hora de procurarmos um novo livro para explorarmos novas paisagens, novos personagens e continuarmos a aprender. Só será possível se fecharmos o livro antigo e devolvermos à nossa biblioteca.
Nunca se sabe quando precisaremos retomar a leitura interrompida. Quando acreditamos que devemos permanecer fiéis às pessoas que foram relevantes em nossa trajetória, tornamo-nos refém delas e todo afastamento é interpretado como ingratidão e deslealdade. Precisamos ter consciência de que devemos ser leais aos princípios e não às pessoas.
Se a justiça é um valor para mim, quando um amigo ou familiar age injustamente, vou me pronunciar contra sua atitude. Demonstrarei minha indignação. Não estou abandonando meu amigo, mas sim lembrando que o que deve guiar minha existência são valores universais e não pessoas. É dito popularmente que: “Deus detesta o pecado, mas ama o pecador”.
Quando eu me oponho a uma atitude injusta, eu não estou sendo contra o amigo e sim contra sua atitude. Quando digo sim para mim, não estou sendo contra a outra pessoa. Estou apenas querendo ser coerente com meus valores. Ele pode, inclusive, me acusar de ser um falso amigo e de ser injusto consigo, não o apoiando em sua atitude. Responderei que sim, sou leal e coerente com os meus princípios e não com as pessoas. Quando ambos estão em sintonia, os aprecio e os admiro, mas, quando há divergências, permaneço do lado do valor desrespeitado.
Continuo desejando o seu bem e sendo seu amigo, no entanto, se você agir de forma injusta e agressiva contra outra pessoa, eu nunca vou te apoiar e permanecer calado. Eu me tornaria cúmplice e jamais me perdoaria. Quando banhamos a criança suja em uma bacia de água limpa, antes de jogar fora a bacia com a água suja, precisamos tirar a criança limpa.
Sendo assim, estou auxiliando o meu amigo a rever suas atitudes que violam valores universais. Eu não posso reduzi-lo ao seu comportamento inaceitável. Ele cometeu um equívoco e merece ser repreendido pelo que fez, e não pelo que é. Ele é muito mais que um erro.
Valores devem guiar nossos relacionamentos e a nossa existência. Sem eles, nos perdemos e perdemos o rumo da vida. Da mesma forma que meu amigo agiu erradamente, eu também agi no passado e agirei no futuro, pois somos humanos. Se alguém me avisar que errei, eu agradecerei.
A verdadeira amizade não se limita a sempre aplaudir o outro. Às vezes, precisamos alertar alguém para os riscos de um relacionamento que se baseia em emoções sem considerar valores que nos permitam conviver de forma saudável. Distinguir o pecador do pecado nos ajuda a ser sinceros e duros com aqueles que amamos. Devemos ser firmes, mas sem perdermos a ternura.
Tenho amigos com os quais discordo completamente de suas opiniões políticas. Mas chego a dizer para eles: continuo sendo seu amigo e gostando de você. Discordo de suas ideias, de sua maneira de pensar extremista, mas seu coração é sensível e generoso. Sou solidário e amigo do seu coração, apesar de discordar de algumas das suas opiniões.
Isso tem me ajudado neste momento de polarização, onde temos a tendência de romper a comunicação e os laços de amizade. As escolhas guiadas somente pelas emoções podem conduzir a ações impulsivas. Acho que será o nosso coração que nos ajudará a superar o ódio de uma lógica extremista que está nos afastando de nossa família e de nossos relacionamentos.
Não deixe suas mentes racionais, lógicas, tomarem decisões por conta própria, afastando-se daqueles que pensam de forma diferente de você. Decisões baseadas apenas na lógica podem ignorar aspectos emocionais. É importante ouvirmos o nosso coração, pois ele sempre nos surpreende quando tomamos decisões, viramos as páginas de livros que não conseguimos mais ler e aprendemos.
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A conexão entre a mente e o coração deve ser equilibrada para podermos tomar decisões mais acertadas e conscientes. Quando a cabeça tiver que decidir, consulte o seu coração e, quando o coração for agir, consulte a sua cabeça.
As cabeças, quando se encontram, se atacam, se disputam, causando sofrimento. Quando os corações se encontram, os muros caem, as pontes se estabelecem, as portas se abrem e nos aproximamos uns dos outros e de nós mesmos, tornando a vida mais alegre e saudável.
Ao tomar decisões, considerar tanto a razão quanto a emoção pode ajudar a superar o receio e a incerteza, permitindo que novas oportunidades e vínculos surjam. Isso nos permite encerrar um capítulo e explorar novos, com coragem e abertura, sabendo que a vida é um constante aprendizado e crescimento.
* Esse texto representa, exclusivamente, a opinião do autor.