Fé, pesquisa e internet: qual é o legado de Padre Cícero 90 anos após sua morte?

Sacerdote católico atrai milhões de visitantes por ano a Juazeiro do Norte e segue com processo de beatificação aberto

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Legenda: Horto do Padre Cícero é um dos principais destinos do turismo religioso no Nordeste
Foto: Kid Jr.

Um personagem polêmico do sertão gera fascínio entre muita gente, de devotos a pesquisadores. Padre Cícero Romão Batista ainda guarda enigmas 180 anos após seu nascimento e 90 anos após sua morte, tanto no Ceará quanto em outros Estados do Nordeste, mas deixou legados importantes na fé popular, na política, na educação e no meio ambiente, além de chegar à internet por meio da divulgação de influenciadores. 

Nascido em 24 de março de 1844, no Crato, o sacerdote viveu até 1934. Por complicações de saúde, em 20 de julho, faleceu em Juazeiro do Norte, cidade que ajudou a fundar e da qual foi o primeiro prefeito. 

Para Maria de Fátima Pinho, doutora em História Social, professora da Universidade Regional do Cariri (Urca) e pesquisadora da vida do “Padim Ciço”, o clamor popular pelo padre continua porque, ao longo dos seus mais de 60 anos de sacerdócio, “ele soube acolher o povo pobre”. 

“O Nordeste no século XIX era um lugar onde o braço do Estado não atingia. Não havia escolas públicas nem atendimento de saúde pública. O que havia era muito precário e para poucos. Tínhamos uma população mais de 90% analfabeta. Então, imagina um padre que faz parte de uma elite tratar sertanejos e sertanejas pobres como ‘meus amiguinhos e minhas amiguinhas’”, explica. 

Além de acolher negros e negras recém-libertos da escravidão - o Ceará foi o primeiro Estado a abolir esse sistema, em 1884 -, ele orientou a população mais carente a desenvolver as próprias lavouras e a se organizar em associações.

Essa forma de acolhimento do padre Cícero fez com que essa população pobre enxergasse nele um padrinho, uma luz, um profeta, portanto, um santo.
Maria de Fátima Pinho
Professora da Urca

Em agosto de 2022, o Vaticano tornou o sacerdote “servo de Deus”, primeiro título de um processo para torná-lo oficialmente santo. No ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também sancionou uma lei que inscreveu o nome do padre no Livro dos Herois e Heroínas da Pátria, documento que reconhece figuras que marcaram a história nacional. 

Legenda: Padim é considerado intercessor por muitos fieis
Foto: Kid Jr.

O ‘milagre de Juazeiro’

Os indícios de liderança de Cícero se mostraram desde cedo. Aos 28 anos, ele conquistou os moradores do povoado de Juazeiro, então distrito do Crato. O padre “de estatura baixa, pele branca, cabelos louros, olhos azuis e voz modulada”, como recorda seu memorial no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), decidiu fixar residência ali, em meio a um pequeno aglomerado de casas de taipa.

As pregações fervorosas, os conselhos e as visitas domiciliares que promovia o tornaram conhecido na região. A “fama” de Padre Cícero foi crescendo, assim como Juazeiro, mas o estopim para seu reconhecimento ocorreu em 1º de março de 1889: durante uma missa, a hóstia ministrada por ele se transformou em sangue na boca da religiosa Maria de Araújo.

A incapacidade de médicos e técnicos explicarem o fato contribuiu para fortalecer no povo a tese do “milagre de Juazeiro”. Contudo, a posição contrária do bispo Dom Joaquim José Vieira e da própria Santa Sé, em Roma, levou à suspensão definitiva do sacramento da Ordem de Cícero - o que gerou revolta entre a população. 

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Proibido de celebrar missas, ele enveredou na política e contribuiu para a emancipação política de Juazeiro do Norte, ocorrida em 22 de julho de 1911. Primeiro intendente (então cargo de prefeito) do novo município, ocupou o cargo por 12 anos. Em 1913, também acumulou a função de vice-presidente da província do Ceará. Tempos depois, em 1926, assumiu mandato de deputado federal.

Sob seu comando, Juazeiro do Norte se tornou uma cidade próspera: o sacerdote estimulou a expansão da agricultura, escolas, artesanato, associações comerciais e capelas, além de ter socorrido a população durante secas e epidemias. 

Legenda: Capela do Socorro, onde está enterrado o sacerdote, recebe milhares de visitas na data
Foto: Kid Jr.

A fama de “coronel”, contudo, não se justifica pela leitura de Fátima Pinho. Ele não tinha guardas particulares nem era mandatário de uma fazenda, por exemplo. Na verdade, essa construção se deu principalmente na imprensa da época a partir de rivalidades despertadas pela entrada do religioso na vida política. “O padre Cícero era um sujeito político, isso é preciso dizer. Ele assumiu um partido político, se filiou, foi eleito”, resume a pesquisadora. 

Independente das rixas, a morte do “Padim”, em 20 de julho de 1934, gerou comoção popular e levou milhares de fieis ao velório. Até hoje, uma grande multidão de romeiros de todo o Nordeste visita seu túmulo na Capela do Socorro, nessa mesma data, e no Dia de Finados, em 2 de novembro.

2,5 milhões 
de romeiros e visitantes vão anualmente à estátua em homenagem ao religioso, inaugurada em Juazeiro do Norte, em 1969.

Devoção na internet

Com o tempo, a religiosidade também se reinventa. Afilhada de batismo do “Padim”, a professora Gil Landim dedica um perfil de internet a ele. Em vídeos de humor no @humormeupadim, ela fala com uma estátua do padre pedindo conselhos e intercessões ou mesmo jogando conversa fora - não, sem antes, pedir-lhe “a bença”.

Segundo ela, o conceito da página surgiu há três anos, após um sonho com o sacerdote. Naquele momento, ela também havia descoberto uma doença rara no pâncreas que a deixava incapacitada, mas mesmo assim levou a ideia a cabo. No começo, a recepção de parte do público não foi positiva.

“As pessoas criticam, dizem que é falta de respeito com o santo, mas a gente se coloca como afilhado e cria um vínculo de confiança. Padre Cícero pra mim é muito mais do que um santo, é meu padrinho. A minha relação com ele sempre foi de pedir ajuda”, conta. 

Legenda: Professora Gil Landim faz humor na internet conversando com o padrinho de batismo
Foto: Acervo pessoal

Tempos depois, um diagnóstico médico chegou a suspeitar que Gil tinha câncer. Somente um exame poderia tirar a dúvida. A professora, mais uma vez, pediu auxílio a seu intercessor pessoal.

“Fiquei louca porque tenho dois filhos pequenos. Eu disse a ele: Padim, eu não fujo da cruz, mas se o senhor me der a oportunidade de criar meus filhos, eu agradeço. Se não tiver com câncer, eu nunca vou tirar seu nome do meu perfil e seus vídeos vão estar sempre presentes”, rezou.

Resultado: não tinha tumor. Hoje, com medicação, Gil se sente bem melhor. Ainda que mescle suas esquetes entre a vida docente e causos do interior, numa espécie de resgate cultural, ela cumpre a promessa e continua gravando as interações com padre Cícero.

“Minha lição aprendida com ele é ajudar o mais empobrecido, essa relação com o simples. Ele veio para uma terra que não tinha nada e construiu muita coisa. Não baixou a cabeça para o que não acreditava porque tinha dignidade e caráter”, acredita.

Processo de beatificação

Padre Cícero faleceu afastado da Igreja e sem o reconhecimento dos milagres atribuídos a ele, mas sua reconciliação com o Catolicismo ocorreu em 2015, quando o Vaticano decidiu perdoar as punições impostas a ele.

Já em agosto de 2022, foi autorizada a abertura do seu processo de beatificação. Neste ano, a Igreja espera concluir a fase de estudos locais. Depois, todos os documentos colhidos com relatos de milagres, graças e atos serão enviados para análise do Vaticano.

O padre Laércio de Lima, administrador da Casa-Museu Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, aponta que “a causa é de profunda esperança”. Segundo ele, ainda em vida, o próprio padre não teria pregado pressa nesse processo.  “No seu tempo oportuno, a minha Igreja fará da forma certa”, teria dito.

Legenda: Com beatificação, Padre Cícero deve ser venerado como outros santos da Igreja Católica
Foto: Wandemberg Belém

O religioso também percebe que a figura de Cícero já extrapolou o Nordeste. Atualmente, chegam a Juazeiro diversos visitantes do Sudeste, do Sul e até de outros países, especialmente após o decreto de servo de Deus e de divulgações na internet. 

Padre Cícero foi um homem de muita fé que semeou a esperança e a confiança em Deus. Ele tinha projetos missionários, mas Jesus pede que ele fique (em Juazeiro) para tomar conta deste povo. Era um homem de profunda espiritualidade, mas também de humanidade. Embora fosse bem valorizado, era humilde e olhava pelos mais simples.
Padre Laércio de Lima
Administrador da Casa-Museu

A professora Maria de Fátima Pinho, da Urca, também acredita que a Igreja deve canonizar Padre Cícero. Primeiro, “pela insistência” de milhares de sertanejos e sertanejas que nunca desistiram de ir a Juazeiro apesar da desaprovação do Catolicismo. Depois, pelo turismo religioso que o fato pode estimular.

“É muito importante hoje, para a Igreja Católica, tornar o Padre Cícero santo, apesar de todas as polêmicas e questões políticas em que ele foi envolvido. Ele era um homem de convicções fortes, que sustentava aquilo em que acreditava. Foi assim, por exemplo, quando o bispo pediu para ele negar o milagre. Ele disse que não podia negar porque ele presenciou e ele acreditava. E pagou com o preço da cassação das ordens sacerdotais”, finaliza.

Programação dos festejos

Os fieis celebram, neste sábado, o fim da programação da romaria de 90 anos de vida eterna do sacerdote, sob o tema “Servo de Deus Padre Cícero Romão, o missionário do Sertão”. A programação para este sábado (20) no Horto, em Juazeiro do Norte, inclui:

  • 7h - Terço mariano
  • 7h30 - Santa Missa
  • 8h30 - Apresentação cultural
  • 9h - Santa Missa
  • 10h30 - Santa Missa
  • 19h - Santa Missa pela causa de beatificação e canonização

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