Cearense nota 10 na OAB teve aula na rede pública e desconto em mensalidade: 'deu até calo no dedo'

Marcos Vinícius Melo da Cunha foi incentivado pela família desde cedo a lutar pelos próprios sonhos

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(Atualizado às 09:02, em 10 de Outubro de 2022)
Legenda: Marcos Vinícius e as duas irmãs são da área do Direito por influência do pai, que não pode cursar para trabalhar
Foto: Arquivo pessoal

Conquistar nota 10 em um dos exames mais difíceis do país é um feito para poucos. Mas o cearense Marcos Vinícius Melo da Cunha, de 22 anos, foi aprovado com nota máxima no 35º Exame de Ordem Unificado da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), avaliação que permite o exercício profissional na área. O resultado saiu na última segunda-feira (3).

Ex-aluno da rede pública estadual e estudante de Direito em uma faculdade privada de Fortaleza (pela qual atualmente escreve o trabalho de conclusão de curso), Marcos prestou o Exame pela primeira vez nesta edição. O êxito foi ainda maior porque ele passou junto com a irmã do meio, Anna Beatriz. A mais velha, Samara, também atua na área.

Neste 8 de outubro, Dia do Nordestino, Marcos é exemplo dos bons resultados de uma região referência em práticas de alfabetização, inovações educacionais e projetos de impacto que transbordam da sala de aula.

Caçula da dona de casa Sílvia e do taxista Raimundo, o futuro advogado teve uma infância humilde no bairro Panamericano. Aos 9 anos, começou a ajudar o pai num comércio em casa depois que o táxi foi vendido. “Sem talento” para esportes e incentivado por Raimundo, decidiu focar nos estudos.

“Ele estudou pouco e teve que sair muito cedo de Itapipoca. Como muitos nordestinos, teve que ir para São Paulo para conseguir uma vida melhor. Desde novo, sempre foi muito rígido o estudo em casa. Ele dizia: ‘meu filho, não posso te dar lazer, mas o estudo sim’”. 

O comerciante conseguiu pagar escolas particulares para o filho “com muito esforço”, ainda que o menino tivesse bolsas por bom desempenho nas atividades escolares. Até recebia medalhas como aluno-destaque - mas sempre mantendo o apoio do trabalho em casa.

Até completar 17 anos, Marcos atendia clientes e carregava mercadorias. “Abdiquei de brincadeiras na infância e adolescência porque precisava ajudar. Nosso comércio era nossa única fonte de renda. Isso me fez entender o valor do dinheiro e do trabalho”, comenta.

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Com a crise econômica até 2017, seu Raimundo fechou o mercadinho e voltou a rodar Fortaleza no táxi. No mesmo período, Marcos cursou o 3º ano do Ensino Médio na Escola Adauto Bezerra, no bairro de Fátima. Um ano depois, em 2018, entrou numa faculdade particular de Direito por meio do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

A decisão pelo curso seguiu um desejo do pai e também do próprio instinto. “Sempre brilhei os olhos, principalmente depois que minha irmã entrou”, conta.

Já no início do curso, o rapaz começou a procurar estágios na área. Até de madrugada entrou na fila de uma agência agregadora de vagas. Deu certo: ainda no segundo semestre, conseguiu sua primeira oportunidade num escritório de Direito do Trabalho, área na qual trabalha atualmente e pretende seguir carreira.

Rotina complicada

Ali se iniciava uma rotina “muito difícil” que duraria oito meses. Para chegar ao trabalho no Centro, às 8h, precisava pegar um ônibus às 7h. Almoçava no escritório e saía às 13h, direto para a faculdade, onde estudava à tarde. À noite, tinha aulas de 19h às 22h40. Se o pai conseguisse buscá-lo, chegava cedo; se não, pisava em casa só às 23h30.

No 3º semestre, Marco conseguiu o segundo estágio na Defensoria Pública da União (DPU). Nessa fase de dois anos, estudava de manhã, trabalhava à tarde e tinha aulas à noite, não parava não. Veio a pandemia. Em 2021, nova oportunidade: a área jurídica da Caixa Econômica Federal, onde ficou mais quatro meses. Desde então, atua num escritório de advocacia no bairro Cocó.

Durante todo esse tempo, Marcos vivenciou uma realidade diferente de colegas de faculdade com melhores condições econômicas: alguns ganharam carros dos pais; ele andava de ônibus. Porém, nada que o desvie de seus objetivos.

“Ainda me considero privilegiado porque meu pai me deu uma qualidade de vida melhor do que outras pessoas e o mais valoroso que é a possibilidade de estudar. Agora, estou correndo atrás do resto. Consegui me mudar para perto da faculdade e agora é mais tranquilo”, relata.

Legenda: Marcos participa de simulação de audiência na faculdade
Foto: Arquivo pessoal

Preparação para o Exame

Com os dias tão atarefados, incluindo a atual escrita da monografia do fim do curso, o estudante não conseguia definir horas específicas do dia para estudar para o Exame da Ordem. As oportunidades eram brechas, como uma hora após o almoço ou antes da aula na faculdade.

Foram três meses mais intensos, quando até os finais de semana eram comprometidos. “Tirava o sábado para fazer 100 questões, deu até calo no dedo do tanto de treinamento que fiz. Abdiquei até de ver minha namorada, mas sabia que, se focasse no hoje, iria colher os frutos no amanhã”, diz.

Marcos confessa que, em alguns momentos, até se sentiu “culpado” por estar em momentos de lazer. Porém, contou com o apoio da parceira Érika - cuja rotina também é complicada por cursar Medicina - e da própria família.

A irmã dele, Anna Beatriz, também estava se preparando para o Exame, mas os dois praticamente só trocaram incentivos porque as áreas da prova eram diferentes: ela, Direito Penal; ele, Direito do Trabalho.

Problema na nota final

A primeira fase do Exame ocorreu no início de julho. Nela, Marcos teve um aproveitamento de 75%, acertando 60 das 80 questões de “todo o conteúdo que aprendemos na faculdade”.

Já em agosto, ocorreu a chamada prova prático-profissional, que é discursiva. O resultado divulgado em setembro já era excelente para a provação: 9,4. No entanto, ao checar o gabarito oficial, o estudante viu algumas inconsistências.

“Eu tinha acertado tudo e, como não ia perder nada, usei meia hora pra fazer um recurso para a banca. Acabou que o que pensava deu certo: acertei tudo”, comemora.

Depois da aprovação

“Foi muito recompensador. Fiquei muito feliz, passou um filme na cabeça por tudo que tinha passado, do tanto que meu pai trabalhou para eu estar onde estou”, adiciona.

Para Raimundo, a felicidade foi dupla: tanto Marcos como Beatriz foram aprovados na mesma edição. “Ele chorou muito”, conta o filho.

Com formatura prevista para dezembro, Marcos ainda não definiu completamente quais são os planos para o futuro por considerar o Direito “muito amplo”.

Por ora, como existe possibilidade de continuar no escritório atual, quer seguir advogando. A longo prazo, pretendo montar um escritório próprio. Contudo, também não descarta a ideia de seguir a carreira de juiz.

Independente da decisão, ele diz que sempre se sentirá amparado porque nunca perdeu o norte: “minha família é minha base”.

Como funciona a prova da OAB?

A aprovação no Exame de Ordem Unificado é requisito para a inscrição nos quadros da OAB como advogado. Ele pode ser prestado por bacharel em direito, ainda que pendente a colação de grau, formado em instituição regularmente credenciada.

Aplicado três vezes ao ano, o exame tem duas fases. A primeira é composta por 80 questões de múltipla escolha; já a segunda, chamada de prova prático-profissional, é composta por 4 questões discursivas e mais uma peça processual.

Os futuros advogados devem fazer a inscrição escolhendo a área jurídica em que deseja desenvolver a peça. As disciplinas são: Direito Administrativo, Direito Civil, Direito Constitucional, Direito Empresarial, Direito Penal, Direito do Trabalho ou Direito Tributário.

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