20 anos de Estatuto: idosos reivindicam políticas que vão além da gratuidade e vagas preferenciais

Denúncias sobre negligência, maus tratos e desrespeito a direitos básicos mostram hiato entre a legislação e projetos reais de cuidado

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(Atualizado às 09:48, em 20 de Outubro de 2023)
Legenda: Envelhecimento acelerado é uma realidade que não ganhou força na pauta das gestões públicas, afirma especialistas
Foto: Fabiane de Paula

A população idosa do Ceará, hoje, lotaria 20 estádios Castelão. São cerca de 1,2 milhão de pessoas com mais de 60 anos, uma em cada sete que habitam o Estado. Até 2060, segundo projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), será uma em cada três, somando mais de 3 milhões e exigindo serviços que a sociedade e as gestões públicas ainda não estão preparadas para fornecer.

Para refletir sobre as diversas formas da velhice, o Diário do Nordeste publica a série Segundas Chances, que lembra os 20 anos do Estatuto da Pessoa Idosa, completos neste domingo, 1º de outubro, e seus impactos na população cearense. Nesta primeira reportagem, entram em pauta as vantagens e os desafios dessa legislação.

Em 2022, o antigo “Estatuto do Idoso”, sancionado em 2003, foi redesenhado como “Estatuto da Pessoa Idosa” para combater o preconceito do envelhecimento. Afinal, como alerta Vejuse Alencar, presidente da Associação Cearense Pró-Idosos (Acepi), “as necessidades da pessoa idosa são as mesmas de um cidadão que está vivo: alimentação, saúde, cultura, lazer e participação social”.

A lei deu visibilidade à causa e impulsionou a criação de organismos de proteção, como conselhos estaduais e municipais, “mas podemos falar mais de dificuldades do que de avanços”. Essa é a leitura do promotor de Justiça e secretário-executivo das Promotorias de Justiça atuantes na Defesa do Idoso e da Pessoa com Deficiência no Ceará,  Alexandre de Oliveira Alcântara.

“O envelhecimento foi colocado na pauta dos gestores, mas ainda de forma insuficiente ou muito pontual. Em 20 anos, muitas promessas não foram cumpridas”, observa o membro do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). 

No texto, o Estatuto dá aos idosos “preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas específicas”. Entre as principais já asseguradas, estão:

  • atendimento preferencial imediato, incluindo “super prioridade” a maiores de 80 anos
  • assentos identificados em transporte coletivo
  • gratuidade nos transportes coletivos públicos a maiores de 65 anos
  • reserva de 5% das vagas nos estacionamentos públicos e privados
  • descontos de pelo menos 50% em ingressos para eventos artísticos, culturais, esportivos e de lazer
  • benefício de um salário mínimo por mês para idosos de baixa renda
  • prioridade na aquisição de imóvel para moradia própria

Contudo, não são incomuns denúncias de desrespeito a esses dispositivos, segundo a advogada Fabiane Danni Araújo, presidente do Conselho Estadual dos Direitos do Idoso (Cedi). Acumulam-se relatos de desrespeito às filas e assentos preferenciais, à demora no atendimento médico, ao desnível de calçadas e à falta de equipamentos de convivência social, na Capital e no interior do Estado.

Para a representante, essas omissões evidenciam uma cultura de não valorização da pessoa idosa, que menospreza “a construção dessa pessoa dentro da sociedade”. “O envelhecimento precisa de uma política de cuidados permanentes e integrais, como é feito com crianças e adolescentes. O idoso também é bastante vulnerável e não tem a mesma atenção”, percebe. 

Violências e falhas no sistema

A vulnerabilidade se revela nas alterações do funcionamento do corpo e no declínio cognitivo natural, com efeitos na locomoção, na força e na memória. Com essas perdas, os idosos se tornam suscetíveis a uma série de violências, sejam de natureza psicológica, física, financeira ou patrimonial.

Dados do Disque 100, disponíveis no Painel da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), mostram que 31% das 7.053 denúncias de violação de direitos no Ceará, no primeiro semestre de 2023, se referem a idosos. Ao todo, foram 2.200 contatos, a maioria por negligência e maus tratos.

Conforme o levantamento, 93% das violações ocorreram dentro das próprias residências, embora o Estatuto descreva como “obrigação da família” - ao lado da comunidade, da sociedade e do poder público - assegurar à pessoa idosa a efetivação do direito à vida.

O cenário obscuro precisa ser avaliado com cautela, segundo o promotor Alexandre Alcântara, já que muitas famílias são “afogadas” pelas demandas dos idosos. “Temos um discurso que criminaliza as famílias, mas que família é essa? Como vive? O desafio é o Estado dar suporte às famílias para que elas tenham condição de fornecer esses cuidados”.

Legenda: Negligência atinge pessoas idosas sem cuidados básicos de saúde, higiene, alimentação e moradia
Foto: Fabiane de Paula

Um dos fenômenos desse processo é a terceirização dos cuidados para Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs), destinadas ao acolhimento residencial com atenção integral à saúde. Em Fortaleza, nas contas do promotor, o número cresceu de 13, em 2017, para mais de 40, atualmente. Segundo o MPCE, em todo o Ceará, há mais de 80 entidades em 21 municípios.

Vejuse Alencar, da Acepi, observa esse cenário com preocupação. Para ela, a institucionalização de uma pessoa idosa só é positiva quando é uma escolha da própria afetada, ao perceber que a residência coletiva vai garantir o atendimento às suas necessidades. Porém, na prática, muitas delas são “forçadas”.

“Quase sempre é a única opção porque a pessoa não pode mais estar com a família nem ficar sozinha. Não estamos desenvolvendo políticas públicas de caráter preventivo: o idoso fica limitado, com dificuldade de caminhar, sem resolver as coisas dele. Estamos avançando para a necessidade de Ilpis pela falta dessa prevenção”, adverte.

Atualmente, o Ceará possui apenas uma ILPI pública, mantida pelo Estado em Fortaleza. Outra está em construção em Brejo Santo, no Cariri, com 80% das obras já concluídas, segundo a Superintendência de Obras Públicas (SOP). A previsão é que a obra seja finalizada até o fim do ano.

Para o promotor Alexandre Alcântara, o Brasil inteiro está atrasado na criação de uma rede de assistência à pessoa idosa, que deve ser formada por centros de convivência, centros-dia, atendimento domiciliar e apoio aos cuidadores.

Em nota, a Secretaria dos Direitos Humanos do Ceará (Sedih) informou que está implementando um Centro de Referência em Envelhecimento Ativo e Saudável em Fortaleza. Ele deve ser local de combate à violação de direitos e onde pessoas idosas possam passar o dia, com atendimento especializado. Não foi informado prazo para a construção. 

Legenda: Crescimento na quantidade de abrigos para idosos chama atenção para falta de políticas de prevenção e apoio a cuidadores familiares
Foto: Fabiane de Paula

Autonomia acima de tudo 

As demandas familiares relacionadas aos idosos também têm chegado cada vez mais aos tribunais, explica Joyceane Bezerra de Menezes, doutora em Direito e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor).

Uma delas é a curatela, instituto jurídico pelo qual um curador autorizado por um juiz passa a cuidar dos interesses da pessoa idosa, quando esta perde a capacidade de tomar decisões por conta própria.

Começam a aparecer conflitos de interesse entre os filhos e o interesse da pessoa idosa, muitas vezes subjugado por questões patrimoniais. Esse cuidado tem que se desenvolver de acordo com o melhor interesse do idoso, e isso envolve respeito à sua autonomia, integridade física, necessidades materiais e de saúde.
Joyceane Bezerra de Menezes
Doutora em Direito

A especialista ressalta que, geralmente, a definição dos cuidados na velhice não é discutida com antecedência, levando a conflitos “em momentos cruciais”. Por isso, tem-se cada vez mais utilizado a Tomada de Decisão Apoiada, mecanismo para indicar oficialmente auxiliares de confiança, e declarações prévias descrevendo como a pessoa quer que certos assuntos sejam resolvidos caso ela perca a cognição.

O que querem os idosos?

O cearense David Duarte, 64, natural de Ibaretama, no Sertão Central, defende medidas urgentes para que os idosos “tenham um final de vida mais digno”. Para ele, não basta o apoio familiar, mas políticas públicas estruturadas de saúde, previdência e lazer.

“Nós sofremos muito com questões de saúde. Quem é aposentado e recebe um salário mínimo só consegue comprar seus medicamentos, dificilmente pode pagar um plano de saúde. Pra isso precisamos de renda, mas o idoso é esquecido”, lamenta.

As cobranças não são diferentes para a bancária aposentada Aíla Araripe, 73, em Fortaleza. Celeridade e bom tratamento na rede de saúde, adequação de calçadas e ladeiras e áreas públicas de convivência - a exemplo do Abrigo Central na Praça do Ferreira, nas décadas de 1950 e 1960, onde o pai dela costumava encontrar amigos  - são pontos de atenção.

“Quanto mais grupos você tiver, melhor. Os filhos não têm tempo, os netos estão na idade de estudar. Eles não sabem como é ser velho, mas a gente não pode só se sentir isolado e lamentar”, desabafa. 

Fabiane Danni, presidente do Cedi, incentiva o protagonismo dos idosos e sua presença em diversas instâncias, como fóruns e conselhos, “para que cada vez mais sejam menos vulneráveis, levem suas reivindicações e busquem efetivar seus próprios direitos”.

Legenda: Experiência de vida e conhecimentos da população idosa passam por cultura de desvalorização
Foto: Fabiane de Paula

Ao mesmo tempo, a representante acredita que as gestões municipais devem acelerar o debate sobre o envelhecimento, já que inexistem políticas de cuidado permanente, e tirar o Estatuto do papel. “Será que mudar a lei resolve? Se já existe o Estatuto e ninguém faz nada, não adianta. Precisamos buscar os direitos que já estão postos”, recomenda.

Segundo a Sedih, além do Conselho Estadual, 151 municípios têm conselhos ativos no Ceará. Como forma de incentivar o estabelecimento de políticas voltadas a essa população, a Secretaria também gerencia o selo “Município Cearense Promotor da Política da Pessoa Idosa”, já concedido a 35 cidades que possuem boas práticas nesse sentido.

A professora Joyceane Bezerra de Menezes é enfática: em 30 anos, o Brasil se tornará um país de idosos, e o preparo precisa ser agora. “O envelhecimento é uma realidade. Ser saudável requer reservas financeiras, mas boa parte da população não tem essas condições. Quando a pessoa não tem renda suficiente, o que há são políticas públicas que sabemos que são deficitárias para o quantitativo de idosos que teremos”.

Como ajudar os idosos a ter seus direitos garantidos

Denúncias de violação ou demandas sobre os direitos da pessoa idosa no Ceará podem ser encaminhadas a órgãos diversos:

  • Disque 100
  • Delegacia de Proteção ao Idoso e Pessoa com Deficiência (DPIPD): (85) 3101-2496 ou dpipd@policiacivil.ce.gov.br
  • Núcleo de Defesa do Idoso e da Pessoa com Deficiência de Fortaleza (Nupid/MPCE): (85) 3226-5886 e (85) 98956-5840 ou sepid@mpce.mp.br
  • Núcleo do Idoso da Defensoria Pública: (85) 99208-7193 ou nucleo.idoso@defensoria.ce.def.br 
  • Ouvidoria Geral do Estado: Central 155 ou ouvidoria.geral@cge.ce.gov.br 
  • Conselho Estadual dos Direitos do Idoso: 85 98949 8313 ou cediceara@gmail.com 
  • Comissão dos Direitos da Pessoa Idosa da OAB-CE: (85) 3216-1600

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