Transferência da Cultura para o Ministério do Turismo preocupa especialistas

Gestão Bolsonaro reforça o desmonte da área prometido durante a campanha eleitoral e estabelece novo ataque à classe artística brasileira. Para pesquisadores, mudança entre as pastas desrespeita o caráter plural da cultura brasileira

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Legenda: Secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, e o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, durante reunião realizada na última quarta-feira (13)
Foto: Roberto Castro/MTur

Em 2018, alguns dias antes do primeiro turno das eleições, o Diário do Nordeste analisou os planos de governo dos candidatos à presidente. O objetivo era investigar as propostas destinadas à cultura por cada concorrente. Comparar os documentos registrados na Justiça Eleitoral iluminava as intenções dos políticos para os próximos quatro anos na área. Dos 13 nomes envolvidos, apenas nove discutiram minimamente o tema ou apresentaram alguma perspectiva sobre o assunto. Desse conjunto, somente cinco políticos falavam de demandas específicas para o setor. 

Eleito no segundo turno, Jair Bolsonaro era um dos quatro postulantes sem qualquer demanda formulada. Com 81 páginas, o programa intitulado “Projeto Fênix” não estabelecia apreciações em torno de políticas culturais para o Brasil. As intenções da nova gestão foram sentidas logo no primeiro mês de governo. Artistas, produtores e trabalhadores receberam a notícia da extinção do Ministério da Cultura (MinC)

Tornou-se Secretaria Especial da Cultura submetida ao Ministério da Cidadania. Em agosto, o secretário especial da Cultura, Henrique Pires, deixou o cargo por não admitir “filtros” direcionados pelo governo. A demissão ocorreu após suspensão de um edital de projetos LGBT para TVs públicas criticado por Bolsonaro. 

5 de novembro marcou o Dia Nacional da Cultura Brasileira. Dois dias depois da data comemorativa, um decreto transferiu a Secretaria Especial de Cultura para o Ministério do Turismo, comandada por Marcelo Álvaro Antônio. A interferência acompanhou a nomeação de outro secretário de Cultura. Sai Ricardo Braga (apenas dois meses no cargo) foi nomeado o dramaturgo Roberto Alvim

Diretor do Centro de Artes Cênicas da Fundação Nacional de Artes (Funarte), além de convocar “artistas conservadores” a criarem “uma máquina de guerra cultural”, o escolhido se notabilizou na mídia após agredir verbal e publicamente a atriz Fernanda Montenegro, de 90 anos. Ele terá “porteira fechada”, anunciou Bolsonaro no melhor estilo do cotidiano rural. A expressão afirma Alvim com moral e liberto para organizar equipe e o modelo de gestão. “Tá na mão de um tal de Alvim. ‘Porteira fechada’ para ele, falou? A classes artística vai ficar feliz, aí. Lei Rouanet. Tem muita coisa boa vindo por aí”, afirmou o mandatário. 

Agora, sete importantes órgãos da área de cultura são do Turismo. Estão vinculados a Agência Nacional do Cinema (Ancine), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), a Fundação Biblioteca Nacional, a Fundação Casa de Rui Barbosa, a Fundação Cultural Palmares e a Fundação Nacional de Artes (Funarte). 

Em nota, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) criticou a decisão. A Comissão de Cultura e Arte da entidade argumenta que o decreto foi publicado de maneira “açodada e inesperada”, sem permitir o amplo debate com criadores de bens culturais e especialistas da indústria criativa. “Traz enorme desprestígio para o tratamento da área”, defende um trecho da publicação. 

Entre as atribuições relegadas ao comando de Marcelo Álvaro Antônio constam a política nacional de cultura, proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural, preservação da identidade cultural de comunidades quilombolas e regulação dos direitos autorais. O último item é questionado pela OAB. “É regra em muitos países que o Direito Autoral seja uma questão afeta à Cultura, e não ao Turismo”. 

Perspectivas

Para o professor e pesquisador dos Programas de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Fortaleza, Humberto Cunha, a mudança é incompatível com o desenho constitucional para as políticas culturais e vai contra o Art. 216-A da Constituição Federal, no qual se estrutura o Sistema Nacional de Cultura. Na análise do docente, alocar a cultura em um setor cujas preocupações são mercadológicas e não propriamente culturais é preocupante. É mais razoável, entende, existir um Ministério da Cultura com uma Secretaria de Turismo. “A cultura deve ser a geradora do turismo e não o contrário”, dialoga.

Humberto coordenou o VIII Encontro Internacional de Direitos, realizado em outubro na Universidade de Fortaleza. A iniciativa reuniu representantes de Itália, México, França, Bélgica e de todas as regiões do Brasil. O trabalho entregou respostas científicas para problemas reais lidados pelo direito voltado ao campo cultural. Os impactos desse novo modelo de gestão pretendido pelo governo federal são observados pelo cientista. 

“O turismo estandardizando e regendo a cultura é autodestrutivo, pois ele oferta o que todos ofertam; e numa situação como essa, os turistas optam por quem oferecer melhores vantagens financeiras, de infraestrutura e de segurança. Não há problema de se extrair das atividades culturais benefícios e desenvolvimento econômico, mas, como diz a Declaração sobre a Diversidade Cultural da UNESCO, elas devem ser vistas como são, protagonistas da cena cultural, e não como simples mercadoria ou entretenimento”.

Para ver macacos

O sociólogo, jornalista e dramaturgo Oswald Barroso possui meio século de estudos e observações do modo de ser do cearense. A bibliografia sob sua autoria informa dos costumes de romeiros às histórias populares, costurando toda uma literatura em prol da antropologia da arte. Em 2019, lançou “Ceará Mestiço”, “Máscaras: do Teatro Ritual ao Teatro Brincante”, “Aproximações” e “Risco Vermelho”, segundo volume de “As Desventuras de um Rei Desencaminhado”. 

No primeiros minutos do contato, o estudioso usa do humor para lidar com o tema. Ironiza a ideia de cultura ser atração turística. “Aquela coisa para ir ver os macacos” e alerta para o caráter transversal da cultura. Cita o exemplo da França, na qual o contato na década de 1990 descortinou um cenário diferente. Naquele País, todos os outros ministérios tinham que consultar e entrar em acordo com a cultura. 

“É complicado. Primeiro, se ela deixa de ter um ministério próprio, ela é rebaixada em sua importância. A cultura perpassa todos os ministérios, todos os outros temas de uma gestão governamental possuem relação com a cultura”, reflete o autor.

“O turismo deveria estar subordinado, não o contrário. Rebaixar a cultura a um apêndice de um ministério que trata de negócios turísticos. Como se a cultura fosse enfeite, algo dispensável. É como não fosse essencial. Sobrando dinheiro bota pra cultura, o resto, a migalha que sobra. Se não tiver, o primeiro a ser cortado é a cultura. Então é algo supérfluo. Só tem importância se gerar renda e dinheiro para outros setores. É uma visão do atrasado, do atrasado, do atrasado. É o fim do mundo”.

Em maio desse ano, Fabiano dos Santos Piúba participou em Brasília do seminário “Os impactos da extinção do Ministério da Cultura”. Secretário de Cultura do Ceará, historiador e doutor em educação, o gestor afirma que até agora nenhum tipo de contato por parte de Brasília foi estabelecido.

Piúba contextualiza o esvaziamento do MinC já no governo Michel Temer e destaca a mobilização, à época, do segmento cultural e artístico. “Com a atual extinção, a economia cultural ficou num limbo, num ‘não lugar’. O Ministério da Cidadania, mostrou que a cultura não tinha espaço de destaque”, argumenta.

O secretário alerta para futuros efeitos nos estados e municípios. “Uma coisa é a relação da cultura com o turismo, ou da cultura com a cidadania. Cultura é economia e riqueza. É diversidade e cidadania. Ela tem essa transversalidade e também centralidade na política. Ela melhora as outras políticas públicas. Tem o papel de qualificação da saúde, educação, turismo e até segurança. Sem cultura, educação é só ensino, assistência social é assistencialismo e segurança social é repressão”, finaliza Fabiano dos Santos Piúba. 

Entrevista com o professor e pesquisador Humberto Cunha

Verso: Por qual razão, seja em gestões municipais, estaduais e federais, a área da cultura é por vezes submetida no mesmo espectro da área do turismo? 

Humberto Cunha: Penso que há mais de uma razão; vou mencionar três. Uma delas é uma tentativa de diminuição de órgão administrativos, mais conhecido popularmente como “enxugamento da máquina”, de duvidosa utilidade no campo cultural. Uma segunda, é de aproximações por temáticas ou complementaridades, sendo a mais comum a educação com a cultura e algumas vezes também o turismo e os esportes. A outra razão, mais provável, pode ser a ausência de compreensão do papel singular das políticas culturais. Todavia, raramente se vê, ao menos em termos administrativos, o turismo com protagonismo sobre a cultura, pois isso representa uma inversão de valores, uma vez que é a cultura que deve ser a geradora do turismo e não o contrário.

V: Do ponto de vista do estudo científico no direito cultural, como o professor avalia a transferência da Secretaria de Cultura para o Ministério do Turismo?

HC: Acredito que é um movimento incompatível com o desenho constitucional para as políticas culturais, sobretudo quando se observa o Art. 216-A da Constituição Federal, no qual se estrutura o Sistema Nacional de Cultura, instrumento que estimula a criação de órgão administrativos para a cultura em todos os entes da federação, com o protagonismo e a coordenação do órgão federal, o Ministério, que perdeu esse status e, portanto, ficou secundarizado não somente em termos de hierarquia, mas sobretudo pela localização administrativa em um setor cujas preocupações são mercadológicas e não propriamente culturais.

V: Historicamente, a política de desenvolvimento do turismo foi mais voltada para área econômica. De que forma isso impacta numa pasta como a Cultura?

HC:Seria muito mais razoável existir um Ministério da Cultura, com uma Secretaria de Turismo, porque este fluxo permite a qualificação da atividade de recepção de visitantes para que conheçam nossos modos de criar, fazer e viver, nossas diferenças para com outros povos. O turismo estandardizando e regendo a cultura é autodestrutivo pois ele oferta o que todos ofertam; e numa situação como essa, os turistas optam por quem oferecer melhores vantagens financeiras, de infraestrutura e de segurança. Não há problema de se extrair das atividades culturais benefícios e desenvolvimento econômico, mas, como diz a Declaração sobre a Diversidade Cultural da UNESCO, elas devem ser vistas como são, protagonistas da cena cultural, e não como simples mercadoria ou entretenimento.

V: Agora, entre outras atribuições, serão responsabilidade do Ministério do Turismo: a "Proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural"; "Apoio ao Ministério da Agricultura para a preservação da identidade cultural de comunidades quilombolas", "Desenvolvimento de políticas de acessibilidade cultural e do setor de museus" e "Regulação dos direitos autorais". Diante dessa informação, é possível estabelecer alguma projeção para o futuro dessa transferência?

HC:Imagino e torço para que essa organização não seja duradoura, pois tem muitos elementos potencialmente geradores de inércias operacionais e de conflitos administrativos, seja pela falta de expertise do Ministério do Turismo em tantas matérias estranhas à sua seara, seja pelo desprestígio que se estabelece para com entidades até mesmo octogenárias no desenvolvimento dos seus misteres culturais.

V: Em outubro último, o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais realizou o VIII Encontro Internacional de Direitos Culturais. Como coordenador, qual a avaliação desta última edição? As recentes políticas públicas do governo federal foram debatidas durante o evento? Houve predominância de algum tema?

HC: Ainda em 2018 foi decidido que o tema do VIII Encontro Internacional de Direitos Culturais seria “institucionalidades culturais”, inspirados por trágicos eventos como a morte e a efêmera ressureição nominal do Ministério da Cultura, no governo Temer; o incêndio do Museu Nacional, a satanização da legislação de fomento à cultura; a censura a manifestações artísticas por parte de alguns segmentos da sociedade, etc. Como essa linha política continuou e foi aprofundada, e o evento foi realizado em outubro, as reflexões se projetaram para o que ocorreu até então.

Sabendo que ataques desse tipo à cultura costumam ser cíclicos e frequentes, quisemos conhecer como outros países lidam com eles para, eventualmente, aprendermos algo. Estiveram presentes representantes da Itália, do México, da França, da Bélgica e de todas as regiões do Brasil. Com eles, aprendemos que as crises da cultura são resolvidas com mais cultura; nesses países ao invés de extinguirem, criaram e fortaleceram seus ministérios e órgãos culturais e ampliaram e especificaram muito mais claramente os direitos culturais, preocupando-se, ademais com as garantias de liberdades e de fomento. A avaliação é a de que o evento cumpriu bem sua função de dar respostas científicas para problemas reais que enfrentamos no âmbito dos Direitos Culturais.
 

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