Ronaldo Fraga leva do gibão de Espedito Seleiro à bata de Padre Cícero para SPFW

Modelo Suyane Moreira, de Juazeiro do Norte, vestiu as peças da coleção “Terra de Gigantes”

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@svm.com.br
Suyane Moreira
Legenda: Arabescos de Espedito Seleiro e bata de Padre Cícero são alguns dos símbolos da cultura caririense
Foto: Augusto Pessoa

Se o corpo é feito casa, aquele que Ronaldo Fraga decidiu vestir com a coleção “Terra de Gigantes”, na 51ª edição da São Paulo Fashion Week, abriga a imensa diversidade cultural e natural da Chapada do Araripe, no Sul do Ceará.

Outra vez de portas e janelas abertas para a quinta maior semana de moda do mundo, o Cariri reforça a lição do olhar para aquilo que verdadeiramente importa: o Brasil real que pulsa em nosso interior.

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E esse País é feito de gente como Espedito Seleiro, Antônio Luiz, Françuli, Dinha, Nena, Zulene Galdino, Mário Abraão, Zizi e a família Aniceto. Todos transformaram o próprio lar em museu vivo, e alguns detalhes dessa experiência podem ser observados nas peças do estilista mineiro, feitas em collab com os estudantes do Senac-Crato.

pássaros
Legenda: Peça com pássaros que podem ser vistos da casa do Seu Mário Abraão e Dona Zizi, no Sítio Pau Preto, em Potengi
Foto: Augusto pessoa

Ao som das canções do Pessoal do Ceará, como “Está escrito” e “Enquanto engoma a calça”, de Ednardo, o Fashion film transmitido no site da SPFW e projetado nos prédios da Avenida Paulista na noite desta quarta-feira (23), foi gravado na primeira semana de junho, quando Ronaldo e sua equipe vieram pessoalmente à região.

“Fazia tempo que eu não o via, ele ainda nem tinha a barba branca”, conta, entre risos, o mestre Espedito, sobre o reencontro com o mineiro. Em 2013, o artesão de Nova Olinda já havia inspirado parte da coleção “Carne seca”, desenvolvida pelo estilista.

“Dessa vez, eles pegaram os moldes do meu trabalho e trouxeram uma roupa feita de pano, com um desenho bem bonito na frente”, descreve o seleiro, não escondendo o desejo de que suas peças originais também fossem vestidas pela modelo. “Ela bem que podia usar um gibão ou um chapéu de couro, né?”, provoca.

Legenda: Coleção "Terra de Gigantes"
Foto: Fotos: Augusto Pessoa

Referências culturais

A cearense Suyane Moreira, de Juazeiro do Norte, foi a escolhida por Ronaldo para vestir as peças da coleção. Há quatro anos ela retornou à terra natal, mas admite só agora, com este trabalho, ter mergulhado com mais profundidade em referências que passavam despercebidas no cotidiano.

suyane com vestido de aviões
Legenda: O céu azul e com aviões do mestre Françuli no vestido de Suyane
Foto: Augusto Pessoa

Posso falar, sem receio nenhum, e sei que não vou ser criticada por isso: o que vivi com o pessoal do set de gravação esses dias, sinto que eu poderia ter vivido mais, ter dado mais importância. Por isso, hoje me sinto honrada em vestir essas roupas, dando a visibilidade que o Cariri merece”, introduz.
Suyane Moreira
Modelo

Confeccionada a partir de uma única base de tecido 100% linho, a coleção traz muitos bordados e poucas estampas. O azul do céu e os aviões de flandre e zinco do mestre Françuli, os arabescos em coração de Espedito Seleiro, a bata do Padre Cícero, os pássaros do sertão de Potengi, a fotopintura tão presente na sala de casa de quase todos os mestres, as cores do reisado e até o símbolo dos penitentes refletem um jeito de fazer moda que potencializa esse viver orgânico.

fotopintura
Legenda: A fotopintura marca presença na coleção "Terra de Gigantes"
Foto: Augusto Pessoa

“A forma como fui recebida por esses mestres, não tem explicação. Eles têm muito orgulho do que é deles, da cultura, dão importância demais e a gente também tem que fazer isso. Eu pude usufruir, beber dessa fonte, que tá aqui, é minha, é nossa, e o Brasil precisa ver e reconhecer”, conclui Suyane.

Ronaldo mostra que no Cariri viver é ser poesia

*Resenha do fashion film por Gabi Dourado

O vídeo inicia com Suyane pegando carona com Ronaldo rumo à Chapada do Araripe e seus encantos. Junto às canções populares, Ronaldo narra parte da história de algumas cidades do Cariri, como Juazeiro, e conta o processo criativo da coleção. No texto que falava sobre suas inspirações, Ronaldo mostra como transformou em roupa as heranças culturais dos Índios Kariri e a imensidão de conhecimentos dos Museus Orgânicos. 

Enquanto o mineiro citava suas referências, Suyane passeava pelo Cariri exibindo as criações, por vezes dançando nas calçadas feito Pacarrete. Em cena, muitos dos Mestres da Cultura, que não ficaram apenas como parte do estudo, mas se puseram à frente das câmeras iluminados pela luz que merecem ter. Enquanto a canção de Ednardo sublinhava que "primeiro se deve viver que é pra depois poetar", a beleza de Suyane vestida com as roupas de Ronaldo mostrava que no Cariri viver é ser poesia. 

Nas peças, o estilista destaca a representação do que foi o cinto de castidade, símbolo cruel da inquisição e do controle do corpo feminino. Quando se pensa o que moda tem a ver com cultura, com o tempo, é perceber como retratar simbologias que marcaram uma história em forma de peça de roupa podem trazer o reflexo de uma época e ser, então, vetor de transformação.  

A fé, como não poderia deixar de ser uma vez que ali estavam na terra de Padre Cícero, também foi retratada à moda do mineiro. Em uma das viradas de narrativas do vídeo, uma espécie de Santa Ceia foi montada à frente da Fundação Casa Grande, como para reverenciar aqueles que ali sentavam como os seres sagrados que são. No desbunde de bolos de milho, queijo e tapioca, os Mestres repartiram o pão e celebraram a própria existência. 

Mas o que isso tem a ver com roupa? No passeio de Suyane e Ronaldo por entre as cores, os cheiros, os saberes e as culturas do Cariri, era possível perceber que toda aquela riqueza é tão viva, tão latente, que se pode até sentir na palma da mão, até vestir. A nossa cultura se torna palpável e gibão vira vestido bem cintado, céu estrelado é estampa e o avião de flandre que ali corta vira aplique, os tons vivos do reisado ganham vestidos e macacões que contrastam com o verde das cachoeiras, as penas dos soldadinhos do araripe feito bordado, e os ex-votos como acessórios. A moda permite carregar a cultura na pele. 

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