Ponte Velha, interditada definitivamente, é tema de música de Ednardo sobre resistência
Lançada em 1976, a canção "Longarinas" homenageia a relação entre Fortaleza e a centenária ponte
"Uma a uma, coisas vão sumindo. Uma a uma, se desmilinguindo. Só eu e a ponte velha teimam resistindo". Os versos de "Longarinas", sucesso atemporal de Ednardo, citam um marco histórico da capital cearense. Erguida em 1906, a edificação referente ao primeiro Cais do Porto testemunha novo impasse.
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Cravada no coração da comunidade Poço da Draga, na Praia de Iracema, a ponte, também conhecida como Ponte Metálica será interditada definitivamente pela Prefeitura de Fortaleza. Segundo os planos divulgados pela gestão municipal, a previsão é transformar o lugar em "ruína histórica".
Composta para o disco "Berro" (1976), a canção levanta, entre outros temas, a relação entre cidade e a sobrevivência de sua memória. Se une a outros hinos da música brasileira onde o mar do Ceará é personagem, casos de "Mucuripe" (Belchior e Fagner), "Terral" e "Beira Mar" (estas também de Ednardo).
Sem qualquer tipo de reforma no correr das décadas, o local tornou-se símbolo dos moradores daquela região. Ponto de encontro com o pôr do sol, uma nova geração criou o costume de ocupar a Ponte Velha e realizar saltos no mar. "Faz muito tempo que eu não vejo o verde daquele mar quebrar. Nas longarinas da ponte velha que ainda não caiu", descreve o poeta cearense sobre saudade e luta contra o abandono.
Ponte Velha e poesia
A cantora, compositora e jornalista Mona Gadelha situa como a música é capaz, enquanto linguagem artística, de atuar na preservação da história de um lugar. O cancioneiro do Brasil, desde seus primórdios, tem sido uma expressão exuberante da memória, explica
"Nossa história está toda nas narrativas das canções. Olha, por exemplo, 'O Canto das Três Raças' (de Mauro Duarte e Paulo Pinheiro, eternizado por Clara Nunes): 'Esse canto que devia ser um canto de alegria/soa apenas como um soluçar de dor'. E o cancioneiro cearense também está repleto de exemplos que mostram essa relação história/lugar/canção, não só referenciando o Ceará, mas o país", adentra.
Em 2011, Mona assinou o disco "Praia Lírica, um tributo à canção cearense dos anos 70". Reunindo 12 clássicos cearenses, como “Paralelas” (Belchior), “Retrato marrom” (Rodger Rogério e Fausto Nilo) e “Flor da paisagem” (Robertinho do Recife e Fausto Nilo), o registro também traz leitura de "Longarinas".
Segundo Mona, no álbum "Berro", que nos apresenta "Longarinas", Ednardo faz uma verdadeira viagem lírica-memorialista-afetiva ao Ceará. Esta perspectiva conceitual é completada com a presença das pérolas "Artigo 26", "Passeio Público" e "Padaria Espiritual".
"São obras referenciais e esse interesse em cantar a cidade, com suas belezas, verdades e mazelas, segue firme no trabalho autoral das gerações que se seguiram ao Pessoal do Ceará, chegando até à contemporaneidade, especialmente no rock, rap e hip hop. A cidade é nossa casa, nossa história, é nosso corpo também, e quem está a atenta e sensível ao que acontece aqui expressa seus sentimentos nas canções", completa.
Entre pontes, muitas histórias
Entregue em 1906, o Porto de Fortaleza (Ponte Metálica) era o primeiro passo à instalação de um amplo porto nas proximidades do centro comercial de Fortaleza. Levou emigrantes para diversos pontos do País, trouxe produtos manufaturados das regiões mais industrializadas. Funcionou como escoadouro das riquezas, desembarcando passageiros e mercadorias.
Nos anos 1920, com a necessidade de ampliação, encampou-se a construção de uma nova ponte. É quando surge a Ponte dos Ingleses, localizada até hoje em frente ao Estoril. Quando a obra estava avançada, o projeto foi sustado. A ponte nunca foi utilizada como porto, mas ganhou espaço entre turistas e população ao longo dos anos.
Assim, a "Ponte Metálica", logo ao lado, ganhou também a denominação de "Ponte Velha". Em julho último, Mona Gadelha lançou o livro "Perfume Azul – Rock e transgressão em Fortaleza nos anos 70". A obra, de relevante resgate, é adaptada de dissertação defendida pela autora no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM-UFC).
Conectando memórias e sonoridades, diante da interdição da Ponte Velha, a poesia de “Longarinas” ganha ainda mais força. "Essa música (um maracatu, como 'Pavão Mysteriozo') já se eternizou. Iremos sempre recorrer a ela quando refletirmos sobre Fortaleza e sua relação com a memória, com as coisas engolidas ("O mar engolindo/lindo...era uma vez meu castelo entre mangueiras..."), descreve.
Assim, entre ruínas, um marco histórico da capital segue a eterna luta contra o mar. "É uma canção de protesto lírica, que termina com um movimento de retorno ("guarde aquela rede branca/que eu tô voltando agora"), um olhar romântico sobre uma Fortaleza que existe na nossa lembrança. E acredito que por tudo que diz, também é uma canção de resistência, finaliza Mona Gadelha.