Pelas loas, Maracatus levam questão da mulher e a resistência do povo negro para avenida
Escrava Anastácia, Dandara Zumbi e a cearense Maria da Penha estão entre as homenageadas nas loas dos maracatus de Fortaleza. Além da representatividade feminina, o legado africano, cultural e religioso também figuram entre os enredos deste Carnaval
O som dos tambores pede para passar no Carnaval de rua de Fortaleza todos os anos. Com ele, o passo cadenciado do maracatu atravessa a avenida com suas cores, vestimentas e danças. A festa, que retrata os cortejos de coroação simbólica da nobreza africana escravizada, se faz nas imagens e na dança, mas principalmente nas palavras entoadas por ruas e avenidas.
As loas dos maracatus cearenses, tradicionalmente, reverenciam orixás e figuras emblemáticas da história e da cultura afro-brasileira. Neste ano, a herança resiste e se renova na Avenida Domingos Olímpio, no próximo sábado e domingo.
As religiões de matriz africana serão representadas por temas que falam de orixás como Iemanjá e Oxalá. Pelo maracatu Filhos de Oxóssi, o sincretismo religioso se expande em reverência a São Cosme e São Damião que, na umbanda, são tidos como os filhos gêmeos de Xangô e Iansã.
A ancestralidade africana iluminada pelo próprio teor do cortejo, ganha ainda mais homenagens quando grupos como Rei de Paus decidem falar dos nagôs, os jejes e os congos.
Outros grupos também reconhecem a história do povo negro brasileiro e assumem como temas a Revolta da Chibata e o afoxé Filhos de Gandhy, por exemplo.
Mulheres
Além de temas já tradicionalmente trabalhados na avenida, quatro grupos decidiram dar luz a figuras femininas e tratar de assuntos relacionados às mulheres. A decisão de sublinhar a violência sexual e doméstica demarcam o tom político que esses grupos pretendem estabelecer com os desfiles na avenida.
O Az de Ouro, o mais tradicional do maracatu cearense, com 82 anos de fundação, vai tratar sobre a escrava Anástacia - a negra curandeira que foi sentenciada a viver amordaçada com uma máscara de ferro por resistir à violência sexual.
"A presença da mulher negra dentro do maracatu é constante", une a presidente, Lucineide Magalhães, ao dizer que o grupo sentiu a necessidade de levar a luta feminina para o desfile. A decisão, segundo ela, tem causado ainda mais envolvimento dos brincantes por fortalecer a questão da representatividade.
Foi a recorrência de casos de violência contra mulher que fez o maracatu Kizomba apresentar a vida de Dandara Zumbi, liderança feminina do Quilombo dos Palmares.
"Não é só sobre a Dandara que vamos falar, é sobre todas as mulheres", indica Mártin Andrade, mestre do batuque do grupo. Ele afirma que a questão feminina vem sendo refletida dentro do maracatu e a escolha do tema foi fruto dessas discussões. "É um debate que a gente precisa fazer. Os negros escravizados foram presos e amordaçados, com as mulheres foi ainda pior pela violência sexual. A gente continua vivendo isso hoje, só o nome que mudou. A escravidão continua e as mulheres sofrem pelas mesmas questões", afirma.
O grupo Nação Fortaleza também vai levara para Domingos Olímpio uma liderança feminina, a partir da trajetória de Tereza de Benguela, maior líder do Quilombo do Quariterê, em Mato Grosso. A ideia do maracatu é discutir a presença das mulheres na resistência negra no País.
Já os Filhos de Iemanjá fazem homenagem à cearense Maria da Penha Silva, que deu nome à lei que criminaliza a violência doméstica. O tema também menciona a travesti Dandara dos Santos, brutalmente assassinada no Bom Jardim em fevereiro de 2017. "Iemanjá acolhe e protege a todos e a todas, mulheres e LGBTs", explica o grupo.
Palavra
O maracatu tem a dizer e essa mensagem é sintetizada nas loas. A socióloga Danielle Maia, que pesquisa o maracatu cearense, considera que, mais do que uma música, as loas é um elemento identitário do maracatu.
"Ela é a sonoridade que vai te levar para outros lugares e temporalidades. As loas têm uma força muito grande para dar voz aquilo que cada grupo quer mostrar", explica.
Mártin Andrade, do Kizomba, concorda e amplia a visão sobre a música que embala os passos e a mensagem do maracatu. "Para a gente, a loa é como um vento que leva a nossa mensagem para todo canto", expande.
Veja quais são os assuntos trabalhados pelo maracatu neste ano:
Religiosidade
Os costumes e a devoção das religiões de matriz africana já são tradicionalmente trabalhados pelo maracatu cearense. Neste ano, a temática é a mais recorrente na avenida Domingos Olímpio. Além do sincretismo religioso a partir de São Cosme e São Damião (na umbanda, filhos de Xangô e Iansã), que serão levados pelo Axé de Oxóssi, outros grupos também vão reverenciar orixás.
Como destaque, o Maracatu Solar faz uma ode à Iemanjá. Na loa, o grupo tenta mostrar que os próprios devotos podem ser uma oferenda à entidade. Com o tema "Comida de santo, banquete sagrado", o maracatu Vozes da África amplia a discussão sobre as oferendas. Ao longo das alas, o grupo apresenta o ritual utilizados nas religiões de matriz africana que oferecem alimentos aos orixás em forma de pedidos e agradecimento.
O grupo Nação Baobab saúda a África a partir de um "canto de louvor e fé". O tambor ganha visibilidade, para além dos batuques, como instrumento usado em manifestações religiosas africanas. Ao longo dos desfiles, outros grupos reverenciam orixás como Oxóssi, o rei das matas e dos alimentos, e Oxalá, o pai maior da umbanda.
Resgate histórico
A história afro-brasileira é um dos temas que costumeiramente são representados no maracatu, pela forte ligação da manifestação artística com a trajetória do povo negro no Brasil. Neste ano, a ancestralidade africana é retratada pelos sons e as danças do grupo Rei de Paus. Ao refletir sobre os povos do Ketu, os congos, os jejes e os nagôs, o maracatu trata também da influência da cultura africana no Brasil.
Já o Nação Iracema homenageia o afoxé dos Filhos de Gandhy, que completa 70 anos de existência, e apresenta ligações do grupo baiano com o maracatu cearense. Também em comemoração, o Nação Pici volta a retratar a Revolta da Chibata, tema trabalhado pelo grupo em 2009, quando entrou pela primeira vez na avenida.
A temática reverencia a luta de João Cândido, o Almirante Negro, que liderou o movimento contra as punições violentas na Marinha, em 1910.
Mulher
A questão feminina, em especial da mulher negra, passa a ser retratada como temática por quatro grupos de maracatu neste ano. Eles refletem sobre a violência contra a mulher e reconhecem a trajetória de figuras emblemáticas para a cultura afro-brasileira. Lideranças quilombolas são reverenciadas nas loas.
O grupo Az de Ouro retrata a escrava Anastácia, princesa de Bantu que lutou contra a violência sexual dos senhores, enquanto o Kizomba lança luz na trajetória de Dandara Zumbi, companheira de Zumbi e que dividiu com ele a liderança do Quilombo dos Palmares.
O Nação Fortaleza exalta a força e a resistência de Tereza de Benguela, a maior liderança do Quilombo do Quariterê, em Mato Grosso. O maracatu Filhos de Iemanjá traz uma homenagem a Maria da Penha, cearense que, a partir da própria luta, deu nome à lei que ampara mulheres vítimas de violência.
A agremiação também faz relação com a travesti Dandara dos Santos, que foi assassinada em 2017, no bairro Bom Jardim, vítima de transfobia.
Confira a programação dos desfiles de maracatu na Avenida Domingos Olímpio:
Sábado (02/03)
Apresentações do grupo de acesso por ordem de entrada na avenida, a partir das 18h30min.
Maracatu Solar - "Para minha mãe Iemanjá"
Nação Axé de Oxóssi - "Hoje é festa de Erê, vem comigo brincar"
Nação Palmares - "Oxóssi nas florestas do Brasil"
Rei Zumbi - "O casamento da rainha nas bênçãos de Oxalá"
Nação Fortaleza - "Tereza de Benguela, rainha do Quariterê"
Filhos de Iemanjá - "Iemanjá! Protegei e acolhei suas filhas, guerreiras da penha"
Nação Pindoba - "Mãos que curam"
Kizomba - "Dos Palmares de Dandara Zumbi"
Domingo (03/03)
Apresentações do grupo principal por ordem de entrada na avenida. Desfiles começam a partir das 17 horas, após desfile de dois blocos.
Nação Baobab - "No batuque do tambor, um canto de fé para louvar a mãe África"
Nação Pici - "João Cândido - A Revolta da Chibata"
Vozes da África - "Comida de santo, banquete sagrado"
Rei de Paus - "A Ancestralidade Africana - Povo do Ketu, Os Congos, Os Jejes e Os Nagôs"
Nação Iracema - "Afoxé Filhos de Gandhy e o maracatu do movimento - A força da negritude"
Az de Ouro - "Anastácia, resistência negra santificada"