No Dia da Literatura Cearense, escritores(as) analisam as faces dessa arte no Estado hoje

Ligados(as) a diferentes fazeres no ramo literário - da escrita e edição ao estudo e circulação de livros e ideias - profissionais dimensionam expressões concretas da palavra no Ceará contemporâneo

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Alexandre de Almeida, Anna K Lima, Renato Pessoa, Ana Miranda, Talles Azigon, Íris Cavalcante e Cavalcante Júnior tecem impressões sobre o assunto

Rachel de Queiroz (1910-2003) é um ícone incontornável das letras alencarinas, sendo nossa autora de maior projeção no Brasil. Ela completaria 109 anos de idade neste dia 17, data em que também foi instituído o Dia da Literatura Cearense.

A efeméride nasceu por força da lei nº 13.411, de autoria do ex-deputado Adahil Barreto, publicada no Diário Oficial do Estado em 15 de dezembro de 2003. Desde a época, vem convocando o público a reverenciar a produção escrita de nossa terra, marcada por grandes nomes e obras.

Neste mais um ano de celebração, o Verso convidou distintos profissionais da palavra, cearenses e atuantes no ramo – contemplando as áreas de escrita, edição, estudo e circulação de livros e ideias – para responderem à seguinte pergunta: qual é a face da literatura cearense hoje? 

A intenção é criar um pequeno (e potente) mosaico de impressões sobre a temática, promovendo novos olhares para o setor. Abaixo, confira a visão de cada um:

Foto: Foto: Theo Van de Sande

Ana Miranda
Escritora

A literatura cearense está num momento extraordinário. Os escritores têm produzido textos com cada vez mais qualidade, falam da realidade de nossa terra e do país, acompanhando os tempos, sem perder uma característica universal. Vêm recebendo prêmios e indicações nos maiores concursos de língua portuguesa; e estão abrindo espaço nos catálogos das melhores editoras nacionais. Talentos surgem. Lutam, e conseguem editar seus livros. Há no Ceará pequenas editoras trabalhando com dificuldades, mas a qualidade de edição melhorou bastante. O que mais tem feito falta são os leitores. Precisamos valorizar nossa literatura. Os índices de leitura no Ceará são dos mais insatisfatórios. O Nordeste está em último lugar entre as regiões brasileiras na pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, o mais completo estudo sobre o comportamento do leitor brasileiro, promovida pelo Instituto Pró-Livro e realizada pelo Ibope Inteligência. Mas os índices de leitura de livros eletrônicos aumentaram no Nordeste. Na área da educação, o Ceará tem os melhores índices nacionais de leitura. O trabalho tem sido árduo, mas aparecem resultados. Vale registrar o fenômeno das periferias e das minorias que vêm produzindo uma literatura nova, ousada, rebelde, fascinante, e novas maneiras de mostrar o que se escreve, como os slams de poesia.

Foto: Foto: Iasmin Matos

Talles Azigon 
Poeta, produtor cultural, editor, mediador de leitura, contador de histórias e curador da próxima Bienal Internacional do Livro do Ceará

Do Templo da Poesia ao Slam da Quentura, das Bibliotecas Comunitárias (Livro Livre Curió, Biblioteca Viva Barroso, Casa Camboa, Biblioteca Comunitária da Okupação, Biblioteca Comunitária Papoco de Ideias, para citar só algumas poucas) ao Encontro de Leitores do Sertão Central, nos últimos anos a Literatura e a Leitura no Estado receberam oxigênio das vozes que chamam de Periferia, quando na verdade, fomos e somos o centro dos acontecimentos. O que há de mais criativo emana das nossas comunidades, distritos e "interiores", de nossos bairros, da nossa gente. A poesia que mofava em salas escuras, passou a circular em ônibus, praças, quintais. O livro, refém de uma restrita elite cearense, agora pula de mãos em mãos graças às Bibliotecas Comunitárias. Na Bienal Internacional do Livro de 2019, foram as Bibliotecas Comunitárias e o Eixo de Literatura Juventude Periferia que marcaram o maior evento do gênero no Ceará. Três grandes encontros de saraus reunindo jovens poetas e coletivos de arte e poesia foram realizados em periferias, somente no apoio mútuo e na autogestão. Tudo isso com pouco ajuda, às vezes nenhuma ajuda governamental ou municipal. Tudo feito por gente que acredita que não existe futuro para o Ceará sem a Literatura, o Livro, a Leitura e as Bibliotecas.

Foto: Foto: Viktor Braga

Anna K Lima
Escritora e publisher da Aliás Editora

Ao pensarmos a Aliás Editora (antes, ainda um selo editorial) fomos motivadas por uma espécie de raiva, inquietação, incômodo: onde estão os livros publicados pelas mulheres? Embasadas na pesquisa da Profa. Dra. Regina Dalcastagnè (UnB), que apresentou-nos uma imensa desigualdade entre os autores e as autoras publicadas nesse País, com as mulheres numa inerme amostragem de seus escritos. Pensando de forma local, como mediadoras de leituras, as integrantes da Aliás sempre inserem em suas formações a seguinte pergunta: digam pra gente o nome de uma escritora cearense. O incômodo gerado de sempre, quando lembrada e, apenas ela, a resposta sobre conhecerem Rachel de Queiroz, nossa representante na ABL e nos livros de literatura escolares.

Somos tantas! Somos múltiplas! Sabíamos de mulheres, nossas, contemporâneas escritoras com seus escritos engavetados e/ou sem divulgação. E quantas mais repletas de ideias na cabeça, com suas histórias e imaginações que ‘dariam um livro’?! Acreditamos ser primordial apostarmos nas singularidades das mulheres que escrevem de todas as formas: poesias, singularidades, receitas, contos, crônicas, cartas... A Literatura Cearense deve se lembrar sim, de Rachel, mas mais ainda faz-se necessário ouvir as vozes de Mika Andrade, Argentina Castro, Tércia Montenegro, Nina Rizzi, Lisiane Forte, Marília Lovatel, Valentina Danny, Lizi Menezes, Priscila Reinaldo, Ravena Monte, Raisa Christina, Kah Dantas, Sara Síntique, Vitória Régia, Ayla Andrade e tantas outras que precisamos acessar nessa Literatura infinita que é o escrever de si de tantas mulheres!

Foto: Foto: Natinho Rodrigues

Cavalcante Júnior
Pós-doutor em Comunicação e Produção Literária pela Universidade de Brasília (UnB), Ph.D em Leitura e Escrita pela Universidade de New Hampshire (EUA) e professor do Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará (UFC)

A literatura atualmente produzida no Ceará é plural em geografias, imagens e vozes. Do fantástico ao regional escrevem as escritoras e os escritores cearenses. Em português, mas também em espanhol, francês, inglês, hebraico e outros idiomas, os seus textos são lidos. A literatura cearense não é grande o bastante para incluir todos do Ceará que produzem literatura em Brasília, Fortaleza, Juazeiro do Norte, Recife, Rio de Janeiro ou alhures. Do Ceará elas e eles saem, viajam, ao mesmo tempo em que se deslocam os seus processos criativos: a escritora vai a Liège, na Bélgica, e sob o céu desensolarado daquele lugar faz a sua personagem retornar a Fortaleza para aqui viver o seu grande amor. O escritor, agora residente em Berkeley, nos Estados Unidos, descobre o tédio da cidade universitária aos domingos, surpreende-se com os corpos que lá não se tocam e presenteia os seus leitores com um novo conto. A literatura do cearense está em todos os lugares. Mas nem tudo é alegria no Ceará. Faltam políticas públicas de incentivo ao livro e ao escritor. Não temos revistas literárias. As editoras locais vivem à míngua, cobram para publicar novatos e veteranos. Os livros não saem do Ceará como saem os seus autores. São poucos os que adentraram o circuito nacional e essa lista precisa ser ampliada. Na terra onde “dizem que os cães veem coisas”, criatividade não falta, os cursos de escrita literária se multiplicam, os saraus e clubes de leitura são inúmeros, falta o incentivo à profissionalização do fazer literário.

Foto: Foto: Cinthia Palmeira

Alexandre de Almeida
Editor do Blog Alexandria e escritor

O Ceará, em si, é um misto de cultura e representatividade. Sua literatura atual, então, traz uma gama de cores que se acende à luz particular de nosso sol. Produzir conteúdo sobre o ramo na internet é por vezes desafiador. Não seria menos, vistos os inúmeros projetos e movimentos que temos feito e acompanhado, como pessoas da literatura. É perfeitamente possível dizer: hoje a literatura cearense se destaca, é presente e faz acontecer por onde passa. São diversos os gêneros, os textos, as percepções... Vejo o Ceará literário como um frondoso cajueiro que não tem época certa de fruto. Somos Bienal do Livro, festas literárias, clubes de leitura, festivais, feiras de cordel, contações de histórias e rodas de conversa que se espalham pelos galhos e alimentam muita gente. Porém, a fome é insaciável. Estar on-line falando sobre livros, autores, editoras e propagadores nos transforma numa bússola: enquanto apontamos para o norte, o sul, leste e oeste esperam pela nossa visita, pela nossa visão. Ainda há muito para desvendar; às vezes, os cajus maduros caem onde nem conseguimos ver ou alcançar. Quanto mais pudermos aproveitar os frutos dessa arte, da nossa arte, maiores serão as realizações.

Íris Cavalcante
Escritora e Especialista em Escrita Literária

As pessoas se unem é pela paixão. Basta apurar o olhar sobre a cena artística da cidade que vemos uma literatura orgânica em constante transformação, que denuncia as aflições de um tempo. Uma literatura que não é mais isolada, porque é a partir do encontro com o outro, que ela se realiza. São vozes plurais que se unem e tornam-se atos políticos, gritos contra as desigualdades sociais, preconceitos, invisibilidades e violências de toda a natureza. Vozes que ressoam nas produções multiautorais, nos saraus em bares, praças, universidades ou em qualquer espaço democrático, e legitimam a luta de um tempo.
Cada vez mais autores e autoras se apropriam de elementos literários que refletem a história de um povo, os quintais de nossas avós, as palavras, cheiros e texturas de nossa infância, os gritos e lamentos que vêm das ruas. Escrevem seus poemas, crônicas, contos e querem dialogar com a coletividade através dessa linguagem, que é movimento puro.
Quando esse texto encontra um leitor ou um ouvinte e ressoa dentro dele, podemos dizer que temos a nascente de uma nova literatura cearense. É bom sentir-se corpo disso tudo.

Renato Pessoa
Escritor e crítico literário

A literatura cearense é, hoje, intensamente plural. Podemos até dizer que há ‘literaturas’, ou seja, há uma profusão de gêneros literários e temáticos surgindo e formando-se nas diversas cidades do Estado. Nos últimos anos, com efeito, tem surgido uma geração de autores independentes (poetas, romancistas, cronistas, contistas, cordelistas) que forjam seus espaços com autopublicações, criação de editoras independentes, encontros literários, oficinas de escritas, blogs, saraus. É, de fato, uma profusão. São autores que não se limitam aos espaços tradicionais de publicação, como as grandes editoras ou as academias. 

Destaco alguns pontos centrais que fomentam a produção e divulgação da literatura produzida no Ceará hoje. 1. As periferias, organizando saraus e publicações independentes, tem marcado de modo potente a produção literária cearense contemporânea. Escritores e escritoras negras, pobres, dizendo os dizeres das periferias, insurgindo-se contra os espaços privilegiados, cultural e politicamente. 2. Criação e Organização de bibliotecas comunitárias e redes de distribuição gratuita de livros. 3. O surgimento de boas editoras independentes como a Lua Azul Edições e o Selo Aliás, um coletivo editorial formado por mulheres, que tem lançado livros artesanais, fanzines e participado ativamente da ‘formação’ da literatura cearense contemporânea. 4. A FLIACE – Festa Literária da Associação Cearense de Escritores, que já está em sua quarta edição, e traz uma programação literária e cultural riquíssima. A literatura cearense contemporânea faz-se de diversas vozes, sempre plurais, emergindo-se nos diversos pontos do estado, construída  sobretudo por escritores independentes. 

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