‘Ninguém é obrigado a amar ou odiar Marighella, mas é indispensável conhecê-lo’, diz biógrafo

Autor do livro que inspirou filme de Wagner Moura, Mário Magalhães participa de debate com neta do revolucionário nesta segunda-feira (29)

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Carlos Marighella: novos olhares sobre um dos mais importantes personagens da história política brasileira
Foto: Divulgação

Carlos Marighella (1911-1969) é o personagem do ano no Brasil – longe de qualquer exagero, embora à sombra de um consenso. A força do longa dirigido por Wagner Moura é a grande responsável por isso. Após severas interdições, e consequentes adiamentos, “Marighella” finalmente chegou às salas de cinema no começo deste mês, tornando-se rapidamente o filme nacional mais visto nos cinemas brasileiros em 2021.

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A produção é baseada no livro “Marighella - O guerrilheiro que incendiou o mundo”, adaptando apenas a terceira e última parte da obra – focada na luta armada empreendida pelo revolucionário. Autor da biografia publicada em 2012 pela Companhia das Letras, o escritor e jornalista Mário Magalhães é direto quanto ao resultado da película: “Estou exultante, felicíssimo com o belo filme que o Wagner Moura fez”, celebra.

Na esteira das várias discussões a respeito do personagem histórico na atualidade, ele participa de um debate virtual nesta segunda-feira (29), às 19h, promovido pelo Porto Iracema das Artes. Intitulada “Marighella, sem tempo de ter medo”, a conversa será dividida com a atriz e vereadora Maria Marighella, neta do político baiano. A intenção é multiplicar os olhares sobre a atuação daquele que foi considerado o inimigo número um do regime militar.

De acordo com Mário, a tentativa de silenciamento, bem como o projeto de esquecimento do guerrilheiro, iniciaram na década de 1930, quando Marighella começa a militância política. Esse movimento de apagamento histórico vai se manifestar durante todo o restante do século XX – inclusive nas duas ditaduras vivenciadas por ele, compreendendo o Estado Novo (1937-1945) e aquela instaurada em 1964, responsável pelo assassinato do político, em 1969.

“Diante disso, é possível dizer que essa tentativa de silenciamento e o projeto de esquecimento de Marighella foram derrotados. Ou seja: hoje, muito mais cidadãs e cidadãos conhecem, mesmo que parcialmente, a trajetória dele. E só conseguimos formar juízo de valor sobre um personagem histórico sabendo, de fato, as ideias que ele cultivou e as ações que ele empreendeu”, analisa o biógrafo.

Por sua vez, ao mesmo tempo que a vida do revolucionário se torna cada vez mais difundida, uma série de iniciativas procura falsificar a história do militante, segundo o jornalista. Essa realidade reitera a importância de um maior debruçamento sobre os grandes vultos de nossa História. “Ninguém é obrigado a amar nem a odiar o Marighella. Mas, para entendê-lo e julgá-lo, é indispensável conhecer quem ele foi”.

Escrever sobre Marighella

Dada a efervescência dos atos do protagonista, a biografia de Carlos Marighella depreendeu um esforço monumental por parte de Mário Magalhães. Os números não negam: foram nove anos reservados ao trabalho, sendo cinco anos e nove meses em regime de dedicação exclusiva. 256 pessoas entrevistadas, dezenas de milhares de páginas de documentos de 33 Arquivos, públicos e privados, de seis países. Uma bibliografia de 600 livros consultados.

O maior desafio, observa o escritor, foi combinar todos esses diversos e importantes elementos, sobretudo devido a alguns detalhes não menos relevantes.

“Por um lado, certa historiografia, certos círculos, regimes e classes, tentaram eliminar Marighella da memória nacional. Por outro, ele passou a vida adulta quase inteira tentando não deixar rastros do caminho que percorria, uma vez que vivia na clandestinidade. Não era paranóia. Os maiores temores dele eram ser preso, ser torturado, ser baleado e ser morto”, diz.

Legenda: Dada a efervescência dos atos do protagonista, a biografia de Carlos Marighella depreendeu um esforço monumental por parte de Mário Magalhães
Foto: Daniel Ramalho

Após o processo de apuração, estabelecer uma narrativa sedutora sem negligenciar aquela que é a cláusula pétrea do Jornalismo e da Literatura de Não-Ficção – não inventar nenhum fato – consistiu no outro fator instigante para Magalhães. Ele destaca que escreveu um romance de não-ficção, ou seja, utilizando todos os recursos e técnicas narrativas consagradas do gênero romance, mas sem criar nenhum fato ou situação.

“A criatividade na biografia jornalística e na literatura de não-ficção e, portanto, na arte, se manifesta em dois momentos: um na narrativa (como contar a história) e outro na apuração. A entrevista, por exemplo, pode ser uma arte. É essa fundamentalmente a história do livro”, resume. Já quanto ao tempo para desenvolver a obra, Mário sublinha que era possível escrevê-la de forma mais rápida, embora resultasse em algo muito distante de como ficou.

“Marighella - O guerrilheiro que incendiou o mundo” cobre do nascimento à morte do biografado, recuando ainda no tempo para contar a história da Revolta dos Malês – insurreição negra ocorrida em janeiro de 1835, em Salvador; e a imigração italiana, na virada do século XIX para o XX. Isso porque o guerrilheiro possuía ascendência africana por parte de mãe e italiana por parte de pai. 

“Wagner Moura fez um longa de ficção baseado em fatos reais, conforme eu os conto no livro, de modo que há liberdade na linguagem cinematográfica para tornar o filme mais ágil. Mas, no fundo, a interpretação é a mesma. Ou seja, tanto Wagner quanto eu consideramos Marighella um homem de formação sólida, inteligente, mas, sobretudo, um homem de ação”.
Mário Magalhães
Escritor e jornalista

Amor e ódio

Questionado se o modo como a trajetória do personagem chegou em 2012, ano da publicação da biografia, é diferente de como ela chega agora, com o lançamento do filme, Mário Magalhães chama atenção para o fato de que a parede da memória de Marighella foi construída há mais tempo.

Um dos pioneiros nessa seara, o escritor, professor e jornalista Emiliano José, publicou, em 1998, o livro “Carlos Marighella: O inimigo número um da ditadura militar” (Sol&Chuva), por exemplo. Já no segmento do audiovisual, trabalhos como o documentário “Marighella - Retrato falado de um guerrilheiro”, de Silvio Tendler, também oferecem vigorosos aspectos da caminhada íntima e militante do revolucionário.

Legenda: Capa da biografia de Carlos Marighella, escrita por Mário Magalhães e publicada em 2012
Foto: Divulgação

“Nesse processo, eu tenho a convicção de que nunca o Marighella provocou tanto amor e tanto ódio como hoje, num nível inclusive maior do que nos três anos que ele ganhou projeção mundial, em 1967, 1968 e 1969. Hoje, ele é inspiração para muito mais gente do que no passado, assim como um temor também. Isso tem a ver, claro, com o que ele pensou e com o que ele fez, mas diz respeito também ao Brasil de hoje. A memória do Marighella atormenta a extrema direita brasileira. E esse homem foi morto há 52 anos”, considera Mário.

O jornalista, inclusive, diz que a combinação da vida do político, do tempo dele e o elenco de figuras ao seu entorno fizeram do baiano um personagem espetacular, com um detalhe que, para Magalhães, é vital: Marighella era e continua sendo um maldito na História do Brasil. “As escolas não ensinam quem foi ele. Por sinal, não sou a favor que elas propagandeiem o Marighella, mas, como um personagem histórico, ele não pode ser eliminado da História”.

Legenda: “Hoje, no Brasil, a troca de ideias, a celebração do conhecimento, constituem réstias de esperança num país tão desesperançado", afirma Mário Magalhães
Foto: Daniel Ramalho

Não à toa, a satisfação de participar do debate promovido pelo Porto Iracema das Artes juntamente à Maria Marighella, com quem já dividiu tantos outros eventos semelhantes. No momento escrevendo a biografia de outro proeminente nome da história política brasileira, o jornalista Carlos Lacerda (1914-1977), Mário Magalhães sublinha que espaços de diálogo são um sinal de que o panorama pode melhorar. 

“Hoje, no Brasil, a troca de ideias, a celebração do conhecimento, constituem réstias de esperança num País tão desesperançado. Logo, não sei o que propriamente vou falar, mas participo para isso, para celebrar as ideias, a História, o conhecimento e a esperança que dias melhores virão”.

Serviço
Bate-papo “Marighella, sem tempo de ter medo”, com Mário Magalhães e Maria Marighella
Nesta segunda-feira (29), às 19h, no canal do YouTube do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Gratuito.

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