“Não haverá solução para os grandes problemas da humanidade sem educação”, alerta Gilles Lipovetsky

Em entrevista exclusiva para o Verso, filósofo fala sobre a importância fundamental da educação

Escrito por Eulália Camurça , eulalia.camurca@verdesmares.com.br

Um pensador universal, um ensaísta do contemporâneo. A filosofia de Gilles Lipovetsky desnuda a vida em sua complexidade. Numa entrevista feita pela internet, ele destacou a importância fundamental da educação e compartilhou inquietações sobre o existir, o sonhar e o esperançar. Nesta quinta-feira (17), o pensador francês ministrará conferência no evento Mundo Unifor, em Fortaleza.

O senhor é um exímio tradutor do mundo contemporâneo. Como o senhor reedita e apura esse olhar atento a questões tão diversas?

L: Você me pergunta como eu trabalho. Estou atento aos novos fenômenos que aparecem em nosso mundo e, em seguida, eu tento teorizá-los. É, obviamente, a continuação de meus livros anteriores e tento ver o que no mundo torna possível confirmar minhas teorias ou, pelo contrário, o que quem vem perturbá-las. Um exemplo próximo de vocês, com o populismo, com o Bolsonaro etc. Isso é algo novo, o populismo. Nos Estados Unidos, temos Trump. Na Inglaterra, há Johnson, agora existe no Brasil Bolsonaro, então como pensar isso? É contraditório às minhas teorias anteriores ou ao modelo que propus, por exemplo, a sedução pode justificar esses novos fenômenos?

Falando especificamente de suas obras, no livro 'Felicidade paradoxal' o senhor analisa como o ser humano torna a felicidade inacessível. Em geral, o senhor acha que o ser humano é incapaz de ser feliz?

L: A sociedade da sedução não possibilita a felicidade, mas nos torna muito exigentes na questão da felicidade, porque a sedução sempre nos oferece modelos de felicidade, beleza, realização... e a realidade não corresponde. Então somos sempre um pouco em contradição com tudo o que sonhamos. A sociedade da sedução, ela faz sonhar. Ela faz sonhar com decotes, consumos, turismos, objetos e seu ideal é dar satisfação, mas na realidade concreta há desemprego, pobreza, terrorismo... A sedução é frequentemente quebrada pela realidade, então a sedução é um modelo terrível, porque promete felicidade, mas a felicidade nem sempre existe; é por isso que é difícil de viver.

Gostaríamos que falasse um pouco do seu livro, “'A Era do Vazio- ensaios sobre o individualismo contemporâneo”. Neste livro, o senhor explora questões hedonistas e nos perguntamos, seria a indiferença o grande mal da humanidade?

L: Não, o grande mal da humanidade, eu o encontraria nas desigualdades sociais, no déficit da educação, o que faz que nessas sociedades pareça que não temos mais soluções, então as pessoas vivem um pouco em desespero e principalmente em insegurança. Por exemplo, no Brasil, Bolsonaro foi eleito presidente em um contexto de grande insegurança, insegurança ... mas também violência. O Brasil tornou-se um país muito, muito violento e isso gerou na população um desejo de ordem, uma vontade de proteção, então existe hoje o problema em nossa sociedade de sedução, é a falta de proteção. As pessoas não se sentem protegidas, e é isso é muito sério, pois leva, imediatamente, a comportamentos muito perigosos. As pessoas querem ordem e, às vezes, dão poderes a demagogos, pessoas que não trazem soluções reais. Por isso, no livro “Era do vazio”, eu falei de fato, e falo sempre sobre esse individualismo.

“O individualismo não é uma maldição, não é um drama. O individualismo é uma chance para sociedades dinâmicas, mas devemos confiar em um individualismo mais inteligente”.

Um outro tipo de individualismo, é isso ?

L: Um individualismo que se casa com a educação. Não haverá solução para os grandes problemas da humanidade sem educação. Devemos formar os jovens, a inteligência para combater a poluição, o aquecimento global e ter uma economia dinâmica. A riqueza dos homens é a formação, a inovação, e não há inovação se não houver educação. Penso que diante da “Era do vazio” devemos trazer uma sociedade da educação. Esta é a chance para o futuro.

Um problema que preocupa no Brasil hoje é a disseminação de informações falsas, as “fake news”. Como o senhor analisa esta questão e a mentira como algo inerente ao ser humano?

As fake news como se conhece hoje são diferentes, elas proliferam por causa das redes sociais que podem espalhar notícias falsas em larga escala. As fake news são frequentemente transmitidas pelos políticos, sem realmente acreditarem no que dizem. Essa é a diferença entre notícias falsas e totalitarismo. O totalitarismo era propaganda, mas era muito difícil dizer que era verdade. Enquanto defensores populistas, eles dizem qualquer coisa. Coisas sem necessidade, sem nenhuma verificação ou preocupação com a verdade. Você vê que é por isso que estou voltando à questão que abordei antes. O único meio de interromper as notícias falsas é uma boa educação da população e as pessoas que acreditam em notícias falsas em geral são pouco graduadas. Eles não frequentaram muito a faculdade e bem, estão se divertindo de qualquer coisa que se diga, então é um novo regime de discurso. Aliás, não tem só notícias falsas no discurso populista, você também tem vulgaridade, insultos, violência de linguagem e é assustador porque intensifica o ódio na sociedade. A política, a política deve acalmar as nações e as notícias falsas intensificam as paixões e o ódio, o ódio na população. Por exemplo, Donald Trump chama os mexicanos de estupradores, ladrões e bandidos e isso gera ódio nos mexicanos e nos latinos. Na população americana, é assustador e, mesmo agora, na Inglaterra, que era um país muito pacífico, os discursos populistas, as notícias falsas criam o ódio, a violência no idioma, mas a violência na linguagem é muito perigosa.

Qual o próximo campo que o senhor desbravará ? O senhor já planejou o seu próximo livro?

L: Estou indo para Fortaleza, acredito que a partir de 16 de outubro. Sou convidado pela Universidade de Fortaleza, apresentarei meu novo livro e uma conferência. O tema da conferência é a sociedade da sedução, falando da economia, portanto do capitalismo e da mídia. O papel da mídia na sociedade da sedução e o papel da sedução no capitalismo contemporâneo. É um assunto considerável, enorme. Bom, tentarei apresentá-lo da melhor forma, aos alunos e professores, com a esperança de que eles tenham uma discussão, obviamente entre nós. Acredito que meu livro sobre sedução foi publicado no Brasil, por isso apresentarei meu novo livro.

Como cultivar o otimismo na sociedade?

L: É uma boa pergunta, porque é claro que existem muitos sinais preocupantes, mas não estou desesperado, não sou pessimista, não sou pessimista porque observo que as pessoas, indivíduos em nossa sociedade, esperam muito fazer coisas bonitas na vida e cuidar dos filhos, eles trabalham e não estamos em uma situação como se diz às vezes, não há mais valores. Eu acho que isso não é verdade, sempre há valores. O significado do bem e do mal não está morto. A indignação moral não está morta. As pessoas continuam a ter reações morais. A exigência de justiça está sempre lá, e também observo de qualquer maneira é a primeira razão, observo que há pessoas se sentem responsáveis. O senso de responsabilidade individual não está morto. Segunda razão para ser otimista. Ainda é uma situação mundial em que ciência, técnicas trazem coisas todos os dias e eu sou um otimista da razão. Eu acredito em inteligência. Eu acho que a inteligência humana pode encontrar soluções. Não há problemas sem soluções graças à inteligência humana. Não é a moralidade que salvará, não é a religião que pode salvar a humanidade, eu acredito na inteligência. Acredito na formação de opiniões e olho para as ferramentas que temos hoje, graças à ciência, para combater o aquecimento global e é isso que precisamos desenvolver. É a estupidez dos homens, dos políticos, mas também de certos responsáveis, que devem ser combatidos, mas a humanidade tem muitas possibilidades.

Eu acredito em inteligência. Eu acho que a inteligência humana pode encontrar soluções. Não há problemas sem soluções graças à inteligência humana.

Quais as saídas possíveis para os problemas contemporâneos?

L: Temos que trabalhar mais uma vez para manter a confiança na sociedade, para que não haja muita fratura nas empresas. Temos de combater desigualdades extremas. Há muita desigualdade. Um pouco de desigualdade não é o problema, é bom, mas a sociedade muito desigual se torna ruim. Temos que encontrar soluções inteligentes. Já existem líderes empresariais, businessman, que veem, que dizem que as empresas devem levar em consideração o bem-estar das pessoas e não apenas os interesses dos acionistas, proprietários. Nós devemos fazer uma revolução no capitalismo. Não acredito na destruição do capitalismo, mas acho que pode haver uma profunda reforma. Um capitalismo inteligente e não um capitalismo predatório, um capitalismo cínico que vê apenas o curto prazo. Esse é o veneno, é o que é horrível. A curto prazo, o dinheiro, o dinheiro, sem ver que há algo mais. Isso é uma aberração. Eu não condeno o capitalismo, eu condeno um capitalismo cego, um capitalismo obcecado por dinheiro, sempre mais dinheiro. Eu acredito que o capitalismo e um sistema flexível que pode ser transformado. Eu acho que temos que trabalhar nessa direção.

Finalmente, o senhor acha que a inteligência é o futuro do nosso futuro?

L: Sim, acho que a inteligência é o futuro do nosso mundo. Eu vou te dizer o porquê. Porque não há outras soluções. Não há outras. O resto, as outras soluções são soluções falsaspessoas sonharem, mas que não mudam a realidade concreta. Eu vou te dar um exemplo. Em meados do século que vem, em 2050, haverá 10 bilhões de seres humanos na Terra. 10 bilhões, superlotação. Como alimentar 10 bilhões de pessoas sem a inteligência dos homens ? Não é a igreja que dará comida, a igreja é muito boa, mas não pode reduzir a pobreza, não pode alimentar pessoas que ganham US $ 1 por dia. Devemos desenvolver riqueza, inventar soluções e a invenção é inteligência. Não há outras soluções. Agora estamos na era da inteligência artificial, novas tecnologias, tecnologia limpa. Devemos desenvolver isso e, acima de tudo, devemos investir novamente na escola, na escola para as crianças, para desenvolver as mentes.

Se você não investe na formação das crianças, na escola, estamos indo para o desastre. Escola, formação é essencial para o futuro da humanidade e isso é inteligência.

O senhor fala sobre a França, a Europa ou o mundo inteiro?

L: A Europa não é boa, a Europa é ruim, é ruim por várias razões, é claro. Também temos grandes problemas de insegurança. Insegurança do terrorismo, insegurança da imigração, insegurança social. Nós devemos corrigir isso. Eu acho que nós podemos fazer isso. Em particular, devolvendo a palavra, ouvindo mais as pessoas. Ouvindo os problemas do povo. A Europa é uma invenção magnífica, é a Europa da paz, é a Europa com um magnífico modo de vida de liberdade, de tolerância. Devemos trabalhar para que o projeto europeu seja mantido e talvez exportado para o exterior.

Reconheço que, no momento, temos muitas dificuldades. Dificuldades especialmente econômicas, mas é a história. Devemos continuar otimistas.

O ser humano pode encontrar Felicidade?

L: Escute, acho que o ser humano não consegue encontrar a felicidade total. Ele pode encontrar momentos de felicidade, pequenos momentos de felicidade. De vez em quando, somos felizes, mas não todos os dias. Eu acredito que são os comerciantes da felicidade que nos dizem que existem soluções para a felicidade. Não há soluções para a felicidade. Existem soluções individuais que mudam. Felicidade quando você tinha 15 anos não é a mesma que você esperava quando tinha cinquenta anos. A felicidade muda, e acredito que não devemos pensar que a felicidade pode ser o objetivo absoluto da vida, porque não se pode dominar a felicidade. Devemos nos dar outros objetivos além da felicidade. Devemos nos dar o objetivo de fazer coisas interessantes na vida. Devemos dar às crianças e aos jovens o gosto de fazer coisas emocionantes, que amam. A felicidade se verá, talvez ele venha, mas se você ainda quiser ser feliz, feliz, não será feliz. Você tem que viver fazendo as coisas, sendo criativo. Crie empresas, crie arte, a música. Fazer coisas apaixonantes na vida é o que devemos fazer e a felicidade progredirá, mas devemos parar de acreditar em todos aqueles que querem vender a solução absoluta da felicidade. Não há solução absoluta de felicidade. Existem soluções parciais e temporárias e isso já é muito.

SERVIÇO
Conferência de Gilles Lipovetsky no Mundo Unifor 2019
Quinta-feira (17), às 17h30, na Praça Central da Unifor.
Programação completa no site  

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