Na corda bamba da pandemia: Companhias de teatro do Ceará enfrentam desafios em manter as atividades

Movidos pela resistência e necessidade de reinvenção, grupos avaliam os passos em 2021 e traçam novas ações para o próximo ciclo

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Espetáculo “Há uma festa sem começo que não termina com o fim”, do Grupo Pavilhão da Magnólia: ritmo de retorno, embora ainda com incógnitas
Foto: Allan Diniz

Coxias vazias, palcos virtuais, sedes desabitadas e, então, o lento retorno da proximidade física com o público. Essencialmente presencial, o segmento das Artes Cênicas vivenciou, em mais um ano, essas diferentes modulações na condução de projetos. Num período cercado por desafios e oportunidades, grupos teatrais de Fortaleza situam as principais experiências no ramo – ao mesmo tempo que traçam os passos para o próximo ano. 

Às vésperas de completar duas décadas de atividades, a Cia Acontece conseguiu realizar montagens e temporadas de espetáculos interrompidos no ano anterior. A maior dificuldade, contudo, foi promover encontros online, em face da nula experiência do grupo nessa seara. 

Legenda: Apesar dos esforços, a Cia Acontece está entregando a sede neste mês; somente as despesas mensais variam entre R$3 mil e R$4 mil
Foto: Divulgação

“Desistimos desse tipo de encontro para esperar a liberação do presencial”, conta Almeida Júnior, diretor presidente da companhia. Nesse processo, eles montaram três apresentações de conclusão de turmas, referentes a diferentes projetos. Todas ocorreram no âmbito físico.

Apesar dos esforços, a companhia está entregando a sede neste mês, vendendo diversos materiais. Somente as despesas mensais variam entre R$3 mil e R$4 mil. “Agora, é tentar levantar grana para entregar até 31 de dezembro”, lamenta o artista.

“Infelizmente, só conseguimos R$50 mil para realizar a XV edição do Festival de Esquetes da Cia Acontece, do qual não podemos tirar dinheiro para manter o espaço – já que só podíamos usar a grana para execução do festival. Também conseguimos R$15 mil de subsídio da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), mas, quando pegamos esse valor, já devíamos mais de R$20 mil de aluguel atrasado, além de contas de luz, água, telefone e internet. Assim, esse dinheiro não foi suficiente”, completa.

Neste momento, a Cia aguarda outro subsídio da Secultfor, mas ainda com débitos de R$15 mil, o que definitivamente atesta: não há meios de manter a sede. Ainda assim, o diretor da Acontece avalia que a decisão foi a melhor que poderiam ter tomado – embora isso também resulte em fator negativo, devido à ausência de espaço para apresentações e formações. 

“Em 2022, completamos 20 anos e queremos continuar o curso de Teatroterapia. Pretendemos apostar nessa nova abordagem, aliada às terapias integrativas”, adianta Almeida. Também planejam estrear um novo espetáculo, além de seguir com as formações. 

Para isso, contudo, necessitam fechar parcerias com os espaços públicos. “Precisamos que o Estado realmente consiga chegar junto das companhias para que elas não fechem seus espaços, assim como nós”, defende o gestor.

Legenda: Em 2022, a Cia Acontece completa 20 anos e quer continuar o curso de Teatroterapia, aliado às terapias integrativas
Foto: Divulgação

Constante reestruturação

Ator e produtor do grupo Bagaceira de Teatro, Rogério Mesquita avalia que, desde o começo da pandemia, toda a classe artística precisou mesmo lidar com a precariedade. A capacidade de articulação nacional por parte dos grupos, porém, foi algo especial nesse cenário. “Isso serviu para minimizar os efeitos nefastos desse período e o descaso do governo Bolsonaro com a cultura. Vivemos o caos todo dia”, observa.

Ao falar da própria companhia, o artista afirma que eles começaram o ano executando os editais pelos quais foram selecionados pela Lei Aldir Blanc. Assim, conseguiram deixar o aluguel da sede, a Casa da Esquina, em dia. Ao mesmo tempo, o edital de fomento da Secretaria da Cultura do Estado possuía um valor com condições de manter algo fixo para cada integrante.“Isso é algo raro nos editais das Secretarias de Cultura”, sublinha Rogério.

“No início do ano, tínhamos esperança de que a pandemia fosse suavizar, o que não aconteceu. Tivemos de fazer o Palco Giratório do Sesc todo virtual, o que foi frustrante. Os espetáculos do repertório do Bagaceira necessitam de um intimismo, então estamos estudando o melhor momento para reencontrar o público”.
Rogério Mesquita
Ator e produtor do grupo Bagaceira de Teatro

A bem da verdade, o grupo demorou a reagir. Por serem um coletivo, custaram a se adaptar. A pandemia chegou no instante em que completaram duas décadas. Durante todo o ano, assim, resolveram não fazer um espetáculo virtual, mas mergulhar novamente em uma criação cinematográfica – após o premiado “Inferninho”, de Guto Parente e Pedro Diógenes

Legenda: Participação do Bagaceira de Teatro no projeto Palco Giratório, do Sesc, foi totalmente virtual
Foto: Divulgação

O Projeto Bagatela propôs um processo de pesquisa e manutenção tendo como base o intercâmbio entre Teatro e Cinema. “Fizemos um resgate e uma reflexão das obras audiovisuais do grupo. Assim, foi um caminho natural desenvolver uma nova criação audiovisual. Produzimos o curta ‘Desmontagem’, ainda inédito. Isso movimentou a todos, e acho que vamos nos dedicar cada vez mais nessa linguagem”, estima Rogério.

O artista adianta que, para 2022, não há nenhuma perspectiva no sentido de sustento da sede e dos próprios integrantes da companhia. Não à toa, a defesa pela necessidade de renovação e continuidade das políticas públicas. “Eu não sei se a Casa da Esquina vai conseguir ser mantida. Faremos uma reestruturação do espaço para tentar mantê-lo. E precisamos encontrar condições de desenvolver projetos, de ter algo fixo, já que até agora não temos nada à vista”.

Legenda: Bastidores do curta "Desmontagem", ainda inédito, uma das mais recentes criações do Bagaceira de Teatro
Foto: Divulgação

Criar outras formas

Realidade diferente permeia a atuação do Grupo Mirante de Teatro Unifor, vinculado à Universidade de Fortaleza. Por ser institucionalizado, conta com grande apoio da casa para prosseguir com atividades remotas e uma produção exclusivamente caseira. “Isso é um privilégio!”, pontua Hertenha Glauce, diretora da companhia.

Quando se iniciou o processo gradativo de abertura presencial, foi autorizado ao grupo a gravação dos projetos na Universidade com número reduzido de atores. O passo seguinte foi voltar com atividades in loco – contudo, onde ainda não houvesse contracenação. Dessa forma, eles retornaram com o Projeto Tarde Com Arte, desenvolvido e executado no Espaço Cultural Unifor, com contações de histórias sobre obras e artistas expostos por lá.

Legenda: Trabalhos com o espetáculo "Peter Pan", do grupo Mirante de Teatro Unifor, foram recomeçados em setembro deste ano; apresentação ocorrerá em janeiro de 2022
Foto: Ares Soares

“Em setembro, recebemos a autorização para recomeçar os trabalhos com o espetáculo ‘Peter Pan’, interrompidos em março de 2020. Assim, desde outubro estamos reensaiando para estrearmos em janeiro de 2022”. Essa efervescência fez com que Hertenha percebesse a grande produção do Mirante durante a pandemia, passando inclusive pelo audiovisual

A intensa movimentação não impediu o surgimento de dificuldades quando estiveram em cena presencialmente de novo. Faltou-lhes o calor e as emoções, mas sobrou criatividade para até mesmo salvar o grupo da solidão. “Pudemos nos reinventar, fazer diferente, repensar estratégias e execuções para nos mantermos firmes, atuantes e criativos”.

Os projetos, não sem motivo, pululam para 2022. Além de “Peter Pan”, há um desejo de remontagem de “Tarsila”, em março – integrando a programação do centenário da Semana de Arte Moderna; a temporada infantil em julho e, quem sabe, um novo espetáculo em outubro. 

Políticas inconstantes

O espírito de reinvenção igualmente pautou as ações do grupo Pavilhão da Magnólia. Este ano, inclusive, trouxe aos integrantes inúmeros desafios no que toca a pensar o teatro diante de um “retorno” às atividades, no qual não se sabia se largariam ou não a virtualidade. 

Eles começaram o ano com a pré-estreia do trabalho “Como devolver o braço do índio?” – paralisado, no entanto, devido à segunda onda de Covid-19. Na sequência, iniciaram um projeto de intercâmbio virtual com o Grupo Teatro do Concreto, de Brasília, que culminou na estreia presencial em setembro do espetáculo “Há uma festa sem começo que não termina com o fim”. Por fim, realizaram um projeto junto a escolas e projetos de formação no interior.

Legenda: Projeto de intercâmbio virtual com grupo de Brasília culminou no mais recente espetáculo do Pavilhão da Magnólia, “Há uma festa sem começo que não termina com o fim”
Foto: Allan Diniz

No que toca a recursos, o Pavilhão foi contemplado com algumas ações da lei Aldir Blanc a nível de estado e município, possibilitando-lhe uma sobrevida e a realização de algumas iniciativas. Garantiu também a manutenção da Casa Absurda, além de parcerias e festivais ao longo do ano de forma virtual e depois presencial.

“Independentemente da pandemia, é sempre um grande desafio manter um espaço aberto. A lei Aldir Blanc deu um fôlego em 2021, tivemos apoio de alguns parceiros. A volta das ações culturais na Casa Absurda também ajuda a manter tudo, mas ainda carecemos de uma política pública que possa garantir esses espaços alternativos de cultura. É desafiador para o grupo manter todos juntos e remunerados. Precisamos pensar em diversas frentes”, considera Nekson Albuquerque, ator e gestor da companhia.

Legenda: Prerrogativa do Pavilhão da Magnólia para 2022 é de continuar a fazer teatro juntos
Foto: Allan Diniz

Para o artista, falando-se das ações do Estado, há a realização de políticas importantes, porém sem a constância da qual o setor necessita. Por sua vez, segundo ele, a Prefeitura Municipal de Fortaleza mantém alguns projetos, a exemplo da Vila das Artes, mas ainda patina na gestão cultural no tocante a ações estruturantes, como o pleno funcionamento do teatro São José, o Festival de Teatro e o Edital das Artes.

“O que temos visto são apenas alguns eventos. O Pavilhão tem acessado alguns editais, se articula com parceiros e tem participado de festivais e eventos culturais. Isso nos mantém na ativa. O grande problema das políticas públicas é a inconstância, fazendo com que o setor não consiga força para, de fato, criar um mercado pulsante na nossa cidade”.
Nekson Albuquerque
Ator e gestor do grupo Pavilhão da Magnólia

A prerrogativa, portanto, é de continuar a fazer teatro juntos. “Temos alguns projetos e queremos fazer novas estreias, tanto para o público infantil quanto para os adultos. A Casa Absurda também trará uma série de ações e atividades. Esperamos que os equipamentos culturais voltem com programações regulares e que as secretarias possam colocar em prática algumas ações que são fundamentais para o fomento e a difusão do nosso teatro. No mais, trabalhar muito e que a eleição nos traga mais esperança e dias melhores”, conclui o ator.

O que dizem as secretarias

Em nota, a Secultfor destaca que, ao longo de 2021, a Escola Pública de Teatro da Vila das Artes manteve, com a devida adaptação para o formato remoto quando necessário, todas as atividades programadas. A retomada para o formato presencial se deu no mês de outubro.

Igualmente, a “Formação Continuada: Conexões Contemporâneas” concluiu a segunda turma. Já o processo seletivo para a consolidação da terceira turma foi realizado ao longo do segundo semestre. As aulas têm previsão de início em março de 2022.

Também em 2021, seguiram-se os cursos de curta duração; as atividades do curso “Percursos Livres de Teatro para Crianças e Adolescentes”; e, entre as atividades virtuais da Escola Pública de Teatro, ocorreram a III Jornada de Teatro e Educação e o I Encontro de Teatro de Bonecos “Com a palavra o Mestre”.

Para o ano de 2022, a secretaria adianta que ainda haverá disponibilidade do Teatro São José para os grupos de Teatro, Dança e Humor. A realização do Festival de Teatro de Fortaleza também ocorrerá no próximo ano. Além disso, a Secultfor esteve com edital aberto para credenciamento de artistas. A chamada pública realizou inscrições até 23 de dezembro.

Entre as categorias, as Artes Cênicas foram contempladas. O banco de artistas credenciados pelo edital terá validade de um ano, com possibilidade de ser prorrogado por mais seis meses. Os valores destinados poderão variar de R$800 a R$4 mil. “Os artistas e projetos selecionados irão participar da programação cultural da Secultfor e de seus equipamentos culturais em 2022”, conclui a pasta, referenciando este link para mais informações.

Formações e convocatórias

Por sua vez, a Secult-CE sublinha que a Lei Aldir Blanc destinou para o Ceará o montante de R$138 milhões – sendo R$71 mi destinados ao Estado e R$67 mi aos municípios. No que se refere aos editais e demais ações referentes ao inciso III da mesma lei, foram lançados em 2021, conforme a pasta, 12 instrumentos diversos de fomento, premiação e aquisições de bens culturais. Para as Artes Cênicas, foram selecionados um total de 73 projetos, o que soma um montante de R$3,9 milhões destinado a essa linguagem artística. 

Houve outras iniciativas: o edital das Escolas da Cultura destinou R$6,2 mi para 18 escolas, com projetos na área das Artes Cênicas; o Circula Ceará, que convocou 75 grupos/artistas do mesmo segmento; e o Edital Mecenas do Ceará, que captou um total de R$2,6 mi para 12 projetos culturais na área de Artes Cênicas (dança e teatro), entre outras.

“A Rede Pública de Equipamentos Culturais da Secult Ceará, em 2021, realizou e/ou recebeu 199 ações de artes cênicas, entre apresentações presenciais e online”, enumerou a pasta. “Destacamos também ações permanentes de formação em artes cênicas, como o Curso Princípios Básicos de Teatro”.

Em 2022, a Secretaria lançará o Edital de Incentivo às Artes, com um valor total de R$11 mi, dos quais serão destinados R$1.280.000 para cada uma das linguagens de Teatro e Dança. Para o primeiro bimestre do ano, uma nova convocatória será realizada para projetos de diversas linguagens artísticas, além do fomento de ações em espaços culturais da sociedade civil. Serão R$ 5,5 milhões para mais de 200 projetos no Ceará.

Outra ação é a Programação Integrada do Sistema Estadual de Teatros do Ceará, com o valor de R$1 mi, voltado para movimentar os espaços cênicos públicos e privados, além dos teatros da Rede Pública dos Equipamentos Culturais da Secult-CE.

Por fim, ainda está prevista a continuidade do programa Circula Ceará, que chegará a mais 11 cidades do interior do Estado, envolvendo as linguagens de Teatro, Dança e Circo. Também o prosseguimento do Edital Mecenas, lançado anualmente. 

Formações do Curso de Princípios Básicos de Teatro, os cursos e laboratórios da Escola Porto Iracema das Artes e do Centro Cultural do Bom Jardim continuarão em 2022.

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