Livro reúne propostas para ‘desprogramar’ o cotidiano a partir da performance
Obra é derivada do projeto “Me ensina a criar”, realizado pelo artista cearense Eduardo Bruno e a mãe, Maria Valdênia
Observe o céu azul cheio de nuvens de algodão. Com sua imaginação, perceba o formato de animais, plantas, paisagens, personagens, pessoas e o que mais for apresentado a você pelas nuvens. Transcreva os desenhos para o papel. Pinte-os.
Aparentemente tão simples, essas ações são algumas das elencadas no livro “O que é performance? 31 programas performáticos para confundir a pergunta”, cujo objetivo é apresentar ideias com vistas a “desprogramar” o cotidiano.
A obra está disponível para compra tanto no perfil do instagram quanto no site do Festival Imaginários Urbanos, no valor de R$ 20. Futuramente, será entregue gratuitamente em bibliotecas públicas, ampliando o acesso ao material. Ele deriva do projeto “Me ensina a criar”, idealizado pelo artista, pesquisador, curador e professor Eduardo Bruno.
Contemplada no ano passado pela lei Aldir Blanc por meio do edital “Arte Livre”, da Secretaria da Cultura do Estado (Secult-CE), a iniciativa nasceu a partir da vontade do cearense de convidar a própria mãe, Maria Valdênia, a adentrar no universo artístico, não apenas enquanto público, mas no posto de agente de criação.
“Mais do que reflexões, com o livro queremos propor ações”, explica Eduardo. Segundo ele, o trabalho em brochura foi gestado após uma residência no segmento com Isadora Ravena, Renata Felinto e Sara Nina, e tem como foco elencar propostas que rompam com a sacralidade da arte, convidando toda a audiência a se experimentar enquanto artistas.
Nesse processo, também adquire relevância o recriar o entorno – repensando os próprios corpos, memórias e modos de ser e estar no mundo.
“A performance é um fazer artístico que entende o corpo e o pensamento como relação e não bifurcação. Sendo assim, a obra busca que ambos, na experiência do fazer, pense enquanto faz e faça enquanto pensa sobre as imposições, normatizações e naturalizações que são impostas sobre nós, mas que muitas vezes não nos contemplam e/ou nos violentam”, explica Eduardo Bruno.
Frutíferas trocas
Os programas performáticos foram pensados a duas cabeças e escritos a quatro mãos. Algumas ideias partiram de Eduardo, que mostrava para a mãe e ela complementava. Outras surgiram com Maria Valdênia e o artista complementava. Assim, todas as propostas no livro foram resultado dessa frutífera troca.
“Foi sendo muito instigante criar programas performáticos com a minha mãe. Já tive essas experiências com alunos, com meu marido e outras(os) parceiras(os) de criação. Mas com ela, por ser alguém que não era aluno e nem era uma parceria de criação que já entendia e tinha experiências anteriores em performance, coisas inesperadas surgiam”, conta Eduardo.
Esse intercâmbio familiar está na própria gênese do “Me ensina a criar”. Metodologicamente e com fins explicativos, o projeto foi dividido em três fases e trabalhos; contudo, para Eduardo Bruno e Maria Valdênia, protagonistas dessas ações, essa segmentação não ocorreu de modo tão linear.
“A prova é que, nos programas performáticos que apresentamos no livro, propomos ações com bordado, por exemplo. Sendo assim, todo o projeto é interligado e o leitor consegue ter acesso a essas informações logo no começo da obra”, explica o artista, comentando sobre uma das outras ações da iniciativa, uma experiência em lives intitulada “Me ensina a bordar”.
Uma outra é a criação em videoarte intitulada “Eu odeio Ballet”, em que, juntos, mãe e filho fazem aulas envolvendo esse estilo de dança, algo que Maria Valdênia gosta e sempre quis participar, mas nunca o fez devido às condições financeiras.
“Na parte do livro intitulada ‘Modo de usar’, apresentamos o projeto como forma de nortear o leitor de onde aquele material parte e quais as provocações que ele traz pelo simples fato de ser um projeto entre mãe e filho”, completa Eduardo.
Borrar as fronteiras
Se a performance é uma forma de criação em arte que borra as fronteiras tradicionais das ações nesse segmento – ao passo que também hibridiza o binário arte/vida – os programas idealizados possuem essas mesmas intenções.
Eles discutem temáticas importantes para a dupla à frente da proposta, a exemplo de velhice, causa LGBT, memória, cotidiano, corpo e política. Em tempos de pandemia do novo coronavírus, então, Eduardo percebe como ainda mais necessárias essas provocações.
“A pandemia é uma lupa sobre muitas desigualdades e imposições sociais que já vivenciamos: aumento da violência contra a mulher, crescimento do adoecimento desproporcional na população LGBT, desrespeito e abandono de idosos, desigualdade social e economia, vulnerabilização da população preta e periférica etc. Está aí, em dados constantemente apresentados em jornais, não é nenhuma novidade, mas está mais escancarado que nunca”, percebe o pesquisador.
Ele situa que, agora, dar ouvido aos agentes que há tempos vem nos alertando sobre a relevância de pensar sobre tais pontos talvez seja a única forma de sairmos desse contexto, ainda que já bastante abalados, e evitar outros agravamentos sociais que estão em curso.
“A arte pode ser um instrumento de alienação, assim como a educação também pode ser operada deste modo. Contudo, processos artísticos e emancipatórios, que sejam agentes de produção de conhecimento e difusão de movimentos de mudanças, são cada vez mais urgentes e possuem papel importante na tentativa de remodelarmos a possibilidade de vida nesse mundo”, dimensiona.
Logo, o fazer artístico, na visão do professor, é um armamento teórico e prático para mudarmos o curso de um projeto de sociedade que privilegia poucos e esmaga muitos.
“Não é sobre pensar a arte de modo romântico, mas como instrumentalização social, política e estética que tem muita potência em ativar vontades de mudança. Isso pode ser visto pelo medo que muitas vezes os poderosos têm com a arte. Eles sabem que, quando regida pelas potências emancipatórias, ela, assim como a educação, se torna força para o povo”, conclui Eduardo.
O que é performance? 31 programas performáticos para confundir a pergunta
Eduardo Bruno e Maria Valdênia
Coleção Imaginários
2021, 44 páginas
R$ 20