Livro ajuda crianças a lidar com medo do escuro; especialistas apontam dicas

Ao narrar os desafios de uma menina para dormir à noite, “Sono”, de Luciana Romão, suscita importantes reflexões sobre a temática; estudiosos cearenses aprofundam discussão

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Em “Sono”, uma garotinha tem medo de uma criatura que parece rondar o quarto na hora de dormir
Foto: Ilustração: Luciana Romão

A relevância de livros como “Sono”, de Luciana Romão, é justificada desde a temática que abraça, geralmente pouco ou quase nunca comentada: o sono infantil. Se, para muitas crianças, a hora de dormir cumpre bem o papel ao qual se destina, representando relaxamento e descanso, para outras o momento é um verdadeiro desafio. É quando afloram inseguranças e medos de toda ordem: do escuro, de ruídos, das figuras que permeiam a imaginação.

Na obra publicada pela Saíra Editorial ainda no ano passado, a protagonista vivencia exatamente esses pavores. Após a mãe apagar as luzes do quarto, a menina se percebe envolta pelo temor de uma criatura que parece rondar o ambiente. É como se a fera avançasse, gigantesca, sobre a miúda criança, tirando-lhe a paz. No entanto, com a vinda do sono, tudo o que era sombrio cai por terra e, pela manhã, o desejo de continuar na cama permanece.

Em entrevista ao Verso, Luciana – que não apenas escreve a história, mas também a ilustra – diz que, na infância, costumava escutar os “causos” de terror que os avós contavam, sobre assombrações, sacis, boitatás e lobisomens.

“Também gostava muito de contos de fada, especialmente aqueles com ares mais sombrios, como ‘João e Maria’. Essas referências certamente tiveram uma influência enorme na obra”, situa.

Segundo ela, o projeto para o livro nasceu em 2015, quando começou a fazer os primeiros esboços durante um curso no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. Até chegar à versão final, alterou algumas características das personagens, a paleta de cores e o próprio texto – que foi ficando mais conciso. “Tentei dar conta de criar uma narrativa que dependesse igualmente das imagens e das palavras para existir”, explica.

Ao mesmo tempo, confessa o quanto os dilemas da pequena protagonista da obra se assemelham aos dela quando em menor idade. O momento de apagar as luzes, fechar as portas e ficar sozinha, imersa no silêncio e na escuridão, eram uma grande agonia para a autora. “Mas era também um tempo importante de exercício da imaginação, de criar subterfúgios e brincadeiras mentais que me ajudavam a relaxar”.

Legenda: Segundo estudiosa, a infância é marcada por uma relação muito particular com a realidade, e é nesse momento que a imaginação ganha um lugar privilegiado no desenvolvimento
Foto: Ilustração de Luciana Romão

Por isso o retorno animador de leitoras e leitores Brasil afora. Conforme Luciana, eles acham a história divertida e repleta de camadas, resultado do intenso mergulho da artista pelas próprias recordações e vivências.

“Acredito que é o próprio ritmo narrativo, as cores mais escuras e toda essa atmosfera de suspense presente na história que podem encorajar bons debates na mediação de leitura com as crianças”, percebe.

Questões

Bruna Myrla Ribeiro Freire – psicóloga e pós-graduanda em Saúde Mental com experiência com o público infantil em contexto de hospitalização, institucionalização e atendimento clínico nas modalidades de Psicoterapia e Plantão Psicológico – aprofunda debates sobre as reflexões que “Sono” suscita. De acordo com ela, a infância é marcada por uma relação muito particular com a realidade, e é nesse momento que a imaginação ganha um lugar privilegiado no desenvolvimento.

“Muitos medos presentes nessa fase estão atrelados, justamente, ao desconhecido, àquilo que a criança não sabe ou não compreende, e que, consequentemente, é preenchido pela fantasia. Acolher, compreender e importar-se com as emoções vivenciadas pelas crianças é o primeiro passo para conseguir ajudá-las”, considera.

Para ela, um diálogo responsável e esclarecedor sobre essas questões, além de mudanças no ambiente, a fim de torná-lo mais confortável, e o estabelecimento de rituais que favoreçam um sono mais tranquilo, podem ser estratégias para tornar o momento de deitar leve e com maior qualidade.

Também é importante ter atenção se os pequenos apresentam um medo maior que o habitual na hora de dormir. Bruna elenca alguns passos para perceber essa característica: Qual a intensidade desse medo? Com que frequência isso ocorre? Como isso, de fato, tem atrapalhado a qualidade de vida, a rotina e as atividades dessa criança?

Legenda: Acolhimento, conforto e diálogo por parte dos pais podem otimizar o sono infantil
Foto: Ilustração de Luciana Romão

“É importante que os cuidadores tentem construir estratégias que transmitam segurança, conforto e acolhimento. Se, mesmo colocando-as em prática, a questão do sono continuar sendo uma dificuldade cotidiana, torna-se necessária a busca por um profissional de saúde que, atuando em rede, poderá auxiliar nesse processo”.

Outra questão que emerge no debate é sobre como a rotina da criança durante o dia pode impactar no momento do sono, impedindo-a de ter um descanso tranquilo. A psicóloga afirma que manter atividades mais estimulantes durante a noite, a exemplo do uso de celulares, tablets e TV, pode dificultar ainda mais o momento do repouso noturno, tendo em vista que inibe a produção do conhecido “hormônio do sono”, a melatonina. 

“Durante o dia, pausas e momentos livres são importantes para que a criança possa se divertir. Além disso, torna-se essencial a criação de um ritual para o sono, pois isso o colocará como parte da rotina. Assim, é fundamental priorizar atividades mais relaxantes, com menos movimento e em um ambiente propício para o descanso”, sublinha Bruna Myrla.

Medidas

Sob outro espectro, Veralice Meireles de Bruin – neurologista e professora associada da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) – considera que o isolamento social e a redução da mobilidade, em face da pandemia de Covid-19, podem estar influenciando no aumento da ansiedade e medo nas crianças. Assim, medidas comportamentais e psicológicas diversas são, em geral, suficientes para aliviar o pavor noturno nos pequenos.

“A literatura indica que crianças na fase pré-escolar (2 a 6 anos) têm mais problemas no sono, tais como despertares noturnos, redução da regularidade e da duração do repouso. Medo noturno e pesadelos, de uma certa forma, fazem parte do desenvolvimento. Se ocorrem com frequência, devem ser investigados e tratados”, destaca.

De acordo com ela, no momento ainda não há, no Ceará, uma pesquisa sobre o sono infantil; mas a pesquisadora, juntamente a uma equipe de profissionais, tem observado o sono em adolescentes. O uso abusivo e noturno de telefone celular potencialmente traz consequências adversas para o humor e o desempenho escolar, por exemplo.

Legenda: Conforme pesquisadora, uma boa noite de sono é fundamental para mecanismos básicos, como aprendizado e memória
Foto: Ilustração de Luciana Romão

“De forma a otimizar o sono, refeições saudáveis e em horários regulares são aconselháveis. Se necessário, uma redução da ingestão de líquidos antes de dormir pode ser útil se houver histórico de noctúria – transtorno que acomete pessoas que urinam bastante durante a noite. Despertar regularmente nos mesmos horários e exposição à luz natural também são maneiras eficientes de regular o sono na infância”, detalha Veralice.

“O sono é fundamental para mecanismos básicos como o aprendizado e a memória. Na infância, é essencial para o aumento estatural, entre outras funções. Por outro lado, a redução do tempo de descanso tem sido associada ao sobrepeso e à obesidade em várias idades”, completa. 

 

Sono
Luciana Romão

Saíra Editorial
2020, 40 páginas
R$ 23

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