Literatura erótica ganha força no Ceará ao propor novo olhar sobre corpo e prazer: ‘Ato político’

Sobretudo mulheres têm alavancado publicações no segmento, com livros envolvendo sexualidade, desejo feminino, orgasmo e masturbação

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: A poeta cearense Vitória Andrade: segundo ela, enxergar o obsceno vai para além do próprio corpo
Foto: Miguel Silva

Das sensações experimentadas pelo corpo, o desejo talvez seja a mais complexa. Cultuado por alguns e silenciado por outros – embora nunca coadjuvante – é uma das matérias-primas da literatura erótica, gênero com cada vez maior projeção no Brasil e no mundo. Em solo cearense, não faltam exemplos de como o segmento tem movimentado o panorama das letras e, por que não, discussões a nível social.

Vitória Andrade é um dos nomes integrantes desse time. Autora do livro “A Poesia Tem a Força de Um Útero” (Selo Editorial Mirada, 2021) – o qual dialoga com várias emoções que nos circundam e também com o gozo – a poeta observa que a literatura erótica é, sobretudo, se encarar a partir da palavra e do desejo. “Se reconhecer como alguém que deseja, que entende o sentimento como ferramenta de existência/sobrevivência”, diz.

De acordo com ela, as peculiaridades desse gênero podem ser percebidas nas entrelinhas. É o mistério, o anseio em sentir e enxergar o outro como alguém que também anseia e sente, o que dá asas à imaginação literária de cunho erótico. Nesse sentido, a intensa movimentação a respeito do corpo, de si e da própria subversão é vista pela poeta como um ato revolucionário, principalmente porque boa parte das produções nessa seara é assinada por mulheres.

Legenda: Falar sobre erotismo num país onde se cultua a pornografia, o preconceito e a objetificação de corpos é, conforme Vitória, sinônimo de coragem
Foto: Felipe Diógenes

As poetas e escritoras Mika Andrade, Sara Síntique e Kah Dantas despontam como exemplos principais no Ceará, uma vez estarem há mais tempo no meio. Além delas, outras desenvolvem grandes projetos de literatura erótica, desconstruindo pensamentos retrógrados tanto no âmbito verbal como em outras linguagens artísticas. 

Mas, afinal, qual é o maior valor desse tipo de criação literária – sobretudo no que diz respeito ao campo do sexo e das sexualidades? O que está no bojo das produções que elegem o obsceno como elemento artístico, pessoal e social? Vitória Andrade é enfática: “Cada corpo é político, possui suas subjetividades. Enxergar o obsceno vai para além do próprio corpo em si. Se contorcer às amarras sociais e romper com paradigmas é primordial na literatura erótica”.

Não à toa, os incontáveis desafios nessa jornada. O machismo, o patriarcado e a misoginia de cada dia emergem como os mais acentuados. Falar sobre erotismo num país onde se cultua a pornografia, o preconceito e a objetificação de corpos é, conforme Vitória, sinônimo de coragem. “Por isso, quando se fala em literatura erótica, se fala acima de tudo em um ato de rebeldia. Contra o sistema, contra julgamentos, contra a voz que nos diz coisas terríveis”.

Tudo tem erotismo

Neste momento, Vitória está em processo de publicação do segundo livro, “Humaníssimo Gemido”, com poemas eróticos. Publicá-lo será um dos grandes acontecimentos da vida da poeta. Para ela, a obra significa uma mulher revelando a fome, fantasias sexuais, experiências e sedes – componentes que ganham maiores contornos hoje devido aos avanços sociais.

Legenda: Capa do livro publicado por Vitória Andrade no ano passado
Foto: Divulgação

O tabu em torno do assunto, contudo, ainda ronda o imaginário popular. Ainda que escritoras e escritores estejam mais abertos para discutir sobre o tema, é muito recorrente ouvir críticas e sofrer censura por parte do público. Segundo a cearense, a resistência vem principalmente por parte dos homens. “O machismo está entranhado, o patriarcado lucra com nossas inseguranças todos os dias”, percebe.

“O erótico se acende na minha vida a partir do momento em que minhas pálpebras despertam. É o movimento dos olhos, das mãos, de como movimentar o corpo. É o movimento da palavra e do poema. Tudo tem seu erotismo, suas peculiaridades que fazem um ser erótico e único. Desejo que mais mulheres sintam isso. Que mais mulheres escrevam sobre seus corpos, sobre os corpos que tocaram e que tocam com os olhos”.
Vitória Andrade
Poeta

Abraçada por outros tantos nomes locais – de Nina Rizzi a Argentina Castro, passando por Nádia Camuça e Naiana Íris – Vitória Andrade ainda deixa uma pista às mulheres que estão se aventurando na escrita de textos eróticos. Os melhores são imagéticos, apurando sentidos por meio do não-dito. “É quando as letras se transformam em sensações”.

Dizer com honestidade

Já citada nesta reportagem, a poeta Mika Andrade complementa a fala de Vitória ao afirmar que o bom texto – independentemente do gênero no qual se enquadra – é aquele trabalhado com honestidade. No caso dos que se dedicam ao erotismo, conter a verdade de quem os escreveu, ainda que seja num teor ficcional, é muito importante.

“A literatura erótica trabalha a exaltação do corpo e do desejo no âmbito sexual. A linguagem busca recursos em elementos naturais para trabalhar imagens que evoquem o erotismo”, pontua. Ela ainda faz uma distinção entre erotismo e pornografia, alvo de muitas discussões.

“Para algumes pesquisadores, o que distingue esses textos é que na pornografia o sexo é explícito, direto e obsceno. Para mim, o que diferencia é que, na minha escrita, busco autonomia para a mulher. Na pornografia, vejo que o sujeito feminino é objetificado, o sexo, o desejo e o corpo são comercializados”.
Mika Andrade
Poeta

De forma a remar contra essa corrente de violência e opressão, são elas mesmas, as mulheres, as responsáveis por imprimir força no ramo. Desde que começou a estudar as autoras cearenses, Mika percebe uma crescente publicação do gênero por parte delas.

Além das escritoras referenciadas por Vitória Andrade, ecoam na visão da poeta Ma Njanu, Sabrina Morais, Syna, Beatriz Caldas, Beatriz França e Susy Almeida. Algumas, inclusive, trazem obras-solo ao público de forma independente com bastante aceitação.

Legenda: Desde que começou a estudar as autoras cearenses, Mika percebe uma crescente publicação de textos eróticos por parte delas
Foto: Arquivo pessoal

“A possibilidade de subverter valores arcaicos, de destruir olhares preconceituosos sobre o sexo, é o maior valor da literatura erótica. Ele está intrínseco ao juízo de quem lê. Não posso determinar o essencial de cada obra, embora acredite que a literatura em si tem o poder de mudar valores e construir novos olhares”, reflete a cearense.

Historicamente, a carioca Gilka Machado (1893-1980) é tida como a poeta pioneira a publicar poesia erótica no Brasil. Negra, com apenas 14 anos de idade mostrou potencial na escrita e ganhou um concurso de poesia do jornal “A imprensa”, em 1907 – obtendo, de uma só vez, os três primeiros lugares. 

Em 1979, após a publicação de “Poesias Completas”, ela recebeu o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Logo, falar de poesia erótica brasileira e não mencionar Gilka Machado, além de um equívoco é também um apagamento. “Escrever poesia erótica e não ter Gilka como uma das referências amplia o racismo que muitas autoras negras sofrem diariamente”, considera Mika Andrade. “No caso, a obra em questão que deve ser uma referência para nós, leitores e leitoras, é ‘Cristais Partidos’”.

Legenda: A carioca Gilka Machado (1893-1980) é tida como a pioneira a publicar poesia erótica no Brasil
Foto: Divulgação

Sexualidade e autonomia 

O objetivo de Mika ao escrever literatura erótica é desfazer o imaginário masculino de posse sobre o corpo da mulher e torná-la sujeita de si. A primeira publicação dela nesse segmento foi a zine “Alguns Versos Pervertidos e Outros Indecorosos”, em 2015. Quatro anos depois, organizou a primeira antologia erótica de poetas cearenses, “O Olho de Lilith”, publicada pelo selo Ferina, da poeta e cordelista Jarid Arraes. 

Ano passado, publicou “Devoção - poemas reunidos”, coletânea com a própria produção de poesia erótica, de forma independente. A necessidade de escrever sobre o corpo e os anseios nele inscritos surgiu da inquietação com questões envolvendo sexualidade, autonomia da mulher, desejo feminino, orgasmo e masturbação. Para ela, são assuntos tabus quando escritos por elas e valorizados quando do ponto de vista masculino.

Legenda: Mika Andrade organizou a primeira antologia erótica de poetas cearenses, “O Olho de Lilith”
Foto: Divulgação

“Os desafios na produção, assim, são a falta de respeito por parte dos homens. As potencialidades estão na nossa voz, simplesmente. A representatividade – apesar dessa palavra estar um pouco banalizada – é de suma importância. Quando uma mulher publica um livro com poesia erótica e outras várias mulheres leem e se identificam, estamos construindo um novo olhar sobre nós mesmas, e principalmente, um olhar mais humano”.

Agora, a cearense tem trabalhado em um novo livro de poemas com teor erótico. Além disso, estuda e pesquisa poetas negras com textos nesse gênero para um projeto ainda secreto. O motivo pelo qual permanece nessa imersão é para analisar como e o quanto estamos evoluindo sobre a nossa humanidade nesse âmbito. 

Escrita erótica feita por homens

Embora em menor recorrência na contemporaneidade, homens também embarcam na escrita de textos eróticos. Paulistano residente em Goiânia e radicado no município de Sobral, interior do Ceará, Léo Prudêncio é autor de “O clitóris de Safo”. Na obra – recém-saída de uma campanha de financiamento coletivo – o poeta abraçou uma abordagem mais moderna, seguindo o estilo que caracteriza produções anteriores assinadas por ele, a exemplo da poesia visual, do verso curto e da ligação literária com a música.

“Embora essa temática já tenha aparecido em meus livros de forma tímida, essa é a primeira vez que dedico uma obra inteira ao tema. Tenho notado que a escrita obscena é uma forma política de debater tabus ainda em voga. Censura-se tudo, até a liberdade de amar quem quisermos. O amor é livre e incomoda justamente por ser assim”.

Por isso mesmo, a maior herança da literatura erótica é a liberdade. Nela, não se omite nada. Mas existem críticas sociais em produções obscenas, como quando Hilda Hilst (1930-2004) publicou “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, em 1992. Segundo Léo, a obra era uma crítica explícita ao mercado editorial e à propaganda direcionada ao público infantil, mas envolvida por linguagem pornográfica.

Legenda: Paulistano residente em Goiânia e radicado no município de Sobral, interior do Ceará, Léo Prudêncio é autor de “O clitóris de Safo”
Foto: Arquivo pessoal

Inclusive, feito Mika Andrade, ele também contribui no debate por diferenciar literatura erótica de pornográfica. “A literatura erótica é a escrita sobre o prazer de forma sublime e simbólica; já a literatura de caráter pornográfico, que muitos confundem com a outra, é imagética, livre e, de certa forma, mais explícita. Como diria Simone Weil, eros é o metaxu (caminho) para o amor. Em outras palavras, não se chega ao amor sem passar pelo desejo. O erótico é o desejo sublinhado na palavra poética”.

Também mestre em Literatura e Crítica Literária, Léo Prudêncio percebe um boom editorial no ramo desde que o best-seller “Cinquenta tons de cinza” (Intrínseca, 2011) foi publicado. Mas a produção erótica não é assim tão nova se olharmos a literatura de uma forma geral. Desde Safo, Homero e o Rei Salomão que se exalta o prazer no campo literário. 

No Ceará, segundo ele, José Alcides Pinto (1923-2008) foi o pioneiro nessa seara, com obras como “Relicário pornô”, “A divina relação do corpo” e “Entre o sexo, a loucura e a morte”. 

“Existe ainda resistência sobre isso. Talvez por conta da repressão religiosa, que é forte no país – além de estarmos num governo que é explicitamente contra a liberdade (sexual, artística ou intelectual). A forma para lutar é continuar escrevendo e colocando o tema com insistência no debate público. Publicar um livro erótico no Brasil de hoje é um ato político”.
Léo Prudêncio
Poeta e mestre em Literatura e Crítica Literária

Sem pudor, panos e filtros

Outro nome que desponta no panorama histórico é Cassandra Rios (1932-2002). A escritora paulistana – pseudônimo de Odette Pérez Ríos – foi um fenômeno literário durante a ditadura militar brasileira. Ela se tornou a primeira autora a vender um milhão de livros no País.

O tema das obras era quase sempre o amor lésbico, inserindo no debate público o homoerotismo. Tamanho sucesso incomodou os militares, que censuraram 36 livros assinados por Cassandra. Conforme Prudêncio, ela foi a autora mais censurada do Brasil por ser uma mulher escrevendo sobre a liberdade de amar quem quiser.

Legenda: Cassandra Rios se tornou a primeira autora a vender um milhão de livros no País; o tema das obras era quase sempre o amor lésbico
Foto: Vânia Toledo/Divulgação

“O bom texto erótico é feito sem pudor, sem panos e sem filtro. Possui também uma carga imagética e uma tendência à liberdade da exploração de linguagem. Todo bom texto, seja ele erótico ou não, é pautado na linguagem. Como referências, posso citar a tetralogia obscena de Hilda Hilst; os livros eróticos de Cassandra Rios; ‘Relicário Pornô’, de José Alcides Pinto; e ‘A vênus das peles’, de Sacher-Masoch”.

Embora não pretenda publicar mais livros eróticos – a experiência ficará restrita apenas a “O Clitóris de Safo” – Léo tem interesse em pesquisar mais sobre o assunto de forma acadêmica. Ultimamente, ele percebe que o tema tem sido mais debatido por mulheres devido ao silenciamento enfrentado por elas ao longo dos séculos.

“A escrita erótica feminina no Ceará tem surgido com mais força dos últimos anos pra cá. Posso estar errado, mas acho que depois da publicação de ‘O olho de Lilith’, coletânea com poemas eróticos escritos apenas por mulheres, esse tema foi ressurgindo em nosso Estado”. Que continue.

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