Leitura de obras clássicas aquece período de quarentena

Fortalezenses contam experiências de imersão em histórias que venceram o tempo e sempre suscitam outros olhares

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: O hábito de ler integra a rotina do advogado João Filho; nesta quarentena, dentre outros livros, ele aprecia a obra-prima de Guimarães Rosa

Quantas histórias podemos dizer que nos atravessaram de modo implacável, transpondo a barreira do tempo e ficando conosco para sempre? No caso do advogado cearense João Filho, 31 anos, a resposta vem fácil: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis (1839-1908), é dessas narrativas cuja força nunca o deixou. “É um livro escrito há mais de 130 anos e que ainda retrata perfeitamente o brasileiro em todas as suas nuances culturais, narrado com crítica, humor e uma escrita admirável”, situa.

Não à toa, é para outro clássico da literatura brasileira que ele tem se voltado nestes tempos de quarentena, a fim de combater o novo coronavírus com sede de mergulho e saber histórico. Obra-prima de Guimarães Rosa (1908-1967), “Grande Sertão: Veredas” é apreciado pela primeira vez por João, que já adianta observar com simpatia a possibilidade de relê-lo. Muito desse desejo cresceu com a dinâmica de compartilhar a leitura do livro com outras pessoas, tornando comuns as questões que lhe perpassam quando do contato com o romance.

“Sempre tive vontade de ler essa obra, mas com medo de não conseguir concluir por conta de sua complexidade e volume. Então, uma forma que encontrei de me comprometer a lê-la foi convidando outras pessoas a fazer isso comigo. Já no segundo dia deste ano, lancei o desafio e muitas aderiram”, detalha.

“Hoje, não tenho o controle de quantas, de fato, estão lendo, até porque a proposta é que seja algo prazeroso e não um compromisso. Inclusive, assim que a quarentena se tornou uma realidade, provoquei a todos a aproveitarem o momento para adiantar a leitura”.

Essa espécie de rede em prol da dedicação a um título literário clássico – quer seja nacional, quer seja além-Brasil – pode ganhar muitos adeptos com este momento de recolhimento em casa. Especialmente porque várias editoras e empresas do setor do livro têm disponibilizado parte dos catálogos online gratuitamente, com expressiva quantidade de obras tradicionais, viabilizando aos que têm acesso à internet a possibilidade de descoberta ou releitura de grandiosos exemplares.

Farto alcance

A gigante norte-americana Amazon, por exemplo, liberou ao público 50 mil livros para download gratuito. Dentre eles, “Os Sertões”, de Euclides da Cunha (1866-1909), narrativa que conta a saga da Guerra de Canudos, no interior da Bahia, a partir da ótica do autor. À época, ele foi enviado ao conflito como correspondente do jornal O Estado de São Paulo e, desde a publicação, tem ganhado notoriedade pela profundidade com a qual costurou os caminhos do embate.

Legenda: João Filho acredita que este momento traz a lição definitiva de que a arte não é supérflua

Por sua vez, a Companhia das Letras liberou no site 10 livros, entre autores contemporâneos, da literatura adulta e infantil. Também constam clássicos, a exemplo de “Viagem ao centro da terra”, de Júlio Verne, e “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato.

Além disso, nas redes sociais e no blog da editora, é possível acompanhar o projeto “Diários do Isolamento”, em que autores convidados escrevem sobre experiências da quarentena e tecem análises a respeito das repercussões da pandemia. A primeira edição traz reflexões de Jessé Andarilho, e a cearense Jarid Arraes, natural de Juazeiro do Norte, é uma das próximas a colaborar.

Outras casas editoriais, como L&PM Editores (com autores como Virginia Woolf, Sêneca, H. P. Lovecraft, entre outros, no catálogo), Martin Claret (Eça de Queiroz e Alexandre Dumas Filho), Sesi-SP (com 16 títulos gratuitamente disponíveis, dentre eles Jack London, Lima Barreto e Machado de Assis) e Harper Collins (que, além de ter liberado sete títulos para download gratuito na Amazon, ainda promove lives no Instagram com entrevistas envolvendo autores nacionais e tradutores de escritores clássicos) ajudam a endossar o panorama, que tem um tempo limitado de permanência.

As crianças também saem ganhando dentro dessa dinâmica. A Maurício de Sousa Produções está disponibilizando 188 HQs clássicas de “A Turma da Mônica” para leitura gratuita. Basta baixar fazer o download do aplicativo Banca da Mônica, disponível em iOS e Android, e acessar o conteúdo, disponível até o dia 25 de abril. O pacote intitulado “Gibis Históricos” reúne algumas das mais marcantes edições lançadas desde a década de 1950 até hoje. Entre os destaques, está a edição número 1 da revista Mônica, datada de 1970.

Legenda: A professora Charlene Ximenes, dentre outras obras, está relendo "O Pequeno Príncipe"

Oportunidade

Diante da generosa oferta de e-books disponibilizados, Charlene Ximenes Arcanjo, 30 anos – professora de História do Ensino Fundamental e Médio, mestranda em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará e administradora do perfil @livrosdacha, no Instagram – aproveitou para voltar-se a emblemáticos títulos, por muitos esquecidos nas estantes de casa ou das livrarias. 

Com o leitor Kindle em mãos, está relendo obras como “O pequeno príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry; e “Daqui estou vendo o amor”, de Carlos Drummond de Andrade, além de livro de Manoel de Barros e Ana Martins Marques. Também estreia a leitura de “Grande Sertão: Veredas”.

“Como diz Ítalo Calvino em ‘Por que ler os clássicos?’: ‘Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: ‘Estou relendo…’ e nunca ‘Estou lendo…’.’ Confesso que essas releituras sempre me parecem novas, é sempre um mergulhar completamente diferente do feito pela primeira vez”, afirma. 

“Acredito que o clássico engana o leitor, sobretudo porque parece que os debates por eles trazidos são incessantes. É um livro que nunca acaba e que permite constantemente que novas discussões sejam feitas em tempos históricos distintos. A gente pensa que o conhece, pensa que já ouviu muito sobre ele, entretanto, quanto mais eles são lidos, mais imprevisíveis nos parecem”.

Desta feita, ela vê como fundamental a iniciativa das editoras de impulsionar os leitores que estão em casa a imergir em obras tradicionais, sendo esta também uma maneira, a seu ver, de garantir que alguns livros esquecidos no mercado editorial nos últimos tempos sejam relembrados. 

“O bacana é que mesmo havendo títulos que já se encontram em domínio público, como ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’, a edição oferecida pela Companhia das Letras possui um prefácio interessante escrito por Hélio Guimarães, além de cronologia do autor e indicação de leituras, o que nos mostra a importância de uma edição bem traduzida e elaborada, mesmo de obras que já possuem tantas”.

Legenda: Passear pelas estantes de livrarias e bibliotecas comunitárias é desejo de Charlene Ximenes quando tudo passar

Consciência

E quanto tudo isso passar, para onde vai o desejo de entrega aos clássicos e à literatura em si? João Filho, do começo deste texto, voltará a frequentar os clubes de leitura e livrarias. Ele – que também administra um perfil literário no Instagram, @brasileituras – ainda espera algo maior:

“Acredito que este momento nos traga a lição definitiva de que a arte não é supérflua, mas essencial à vida humana e sem a qual não suportaríamos ficar confinados em nossas casas por muito tempo”.

Já Charlene Ximenes afirma que não será romântica ao acreditar que estamos todos lendo muito porque há tempo livre. Ela considera ser evidente que as angústias e incertezas que o isolamento social nos trouxe impedem que as leituras fluam como gostaríamos.

“São nesses momentos que percebemos que ter tempo livre não significa necessariamente ter tempo produtivo. Entretanto, se voltar-se para a literatura é uma forma de garantir certa fuga e consolo, então que nos encontremos e nos percamos nessa dialética leitora”, ressalta.

E completa: “Ao término de tudo, espero que a gente possa consumir literatura de modo mais consciente, comprando de livrarias menores, de editoras independentes, retornando ao hábito de passear por entre as estantes das livrarias, mas também por entre as estantes das bibliotecas. Ao mesmo tempo, os e-books são extremamente importantes porque permitem que a gente os carregue para todos os cantos, e talvez esse momento mostre para muitas pessoas quão interessantes eles podem ser”.

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