Instalação performática apresenta histórias da orla de Fortaleza contadas por mulheres

Trabalhos de 20 artistas poderão ser conferidos em "Mulheres do Mar" a partir desta terça-feira (24), no Farol da Juventude, recompondo paisagens a partir da perspectiva feminina

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Obra "Draga Sagrada" é uma das integrantes da instalação
Foto: Rachel Alencar

Foi durante um simples passeio com as primas pela Praia de Iracema, por volta dos 13 anos de idade, que Marie Auip teve outra dimensão do cotidiano desse lugar de Fortaleza. Era começo da noite e, à época, dois estrangeiros pararam para conversar com elas. A novidade do sotaque inglês logo chamou a atenção e promoveu o diálogo, interrompido bruscamente por um taxista que estava por ali. “Olha, vocês não podem falar com gringos porque, senão, eles vão pensar que vocês são outra coisa”, disse ele.

Décadas depois do acontecido, a expressão “outra coisa”, mencionada pelo homem, continua martelando na memória de Marie. Traz inquietação. “Por meio daquela fala, percebi a territorialidade do que é ser mulher na orla da Capital, na qual alguns corpos podem ser visibilizados e outros, não. Isso ocorre muito no espaço público”, situa a performer e pesquisadora cearense.

“Existem séculos de domesticação do corpo feminino, ação que o coloca como o local do privado. Resultado: a circulação dele pelas cidades obedece a uma lógica puramente patriarcal”, completa.

O incômodo com essa realidade fez com que a artista desejasse contar a história de outras mulheres e suas experiências no pedaço da urbe que interage com o oceano, buscando compreender como esses outros corpos femininos habitavam a orla.

Assim nascia o projeto “Mulheres do Mar”, cuja proposta, por meio de intensas trocas de relatos e fazeres, é abraçar uma perspectiva diferente da usual, recompondo paisagens a partir do olhar de mulheres. A partir desta terça-feira (24), podem ser conferidos os frutos desse esforço coletivo por meio de uma instalação performática homônima à iniciativa, em cartaz no Farol da Juventude até o dia 5 de dezembro.

Legenda: Imagem do vídeo "Algo de mar", de Rhaiza Oliveira
Foto: Divulgação

Realizado pelo Instituto Iracema, por meio do Centro Cultural Belchior, o trabalho integra parte das comemorações dos 10 anos de atuação do EmFoco Grupo em Fortaleza, contemplado pelo VIII Edital das Artes, da Secretaria da Cultura da cidade (Secultfor).

No centro da ação – com expografia desenvolvida por Marie Auip em parceria com Eduardo Bruno, fundador do EmFoco – estão vídeos, fotografias, textos e materialidades criados por 20 artistas, de diferentes contextos e especificidades. Todas participaram de residências ministradas em julho e outubro deste ano a partir da provocação “O que é ser mulher na orla de Fortaleza?”.

Redes

Também compõe a instalação a performance “Pescaria”, desenvolvida durante encontros com mais de 40 senhoras frequentadoras do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo do Idoso do Centro Comunitário Luiza Távora, no início de 2019 e 2020. O trabalho ocorrerá de 26 a 28 de novembro e de 3 a 5 de dezembro, sempre a partir das 15h30, na área entre o Mincharia e o Poço da Draga. 

A partir das conversas com mulheres que habitam a região do Grande Mucuripe há mais de 30 anos, os transeuntes poderão conferir Marie Auip escrevendo e costurando parte dessas memórias em uma rede de pesca. Além disso, haverá espaço para participação das mulheres presentes que queiram sentar e contar suas histórias.

“O próprio mito fundador de nossa cidade, “Iracema”, foi escrito por um homem e, de certa maneira, muito do que a gente conhece do que é ser mulher foi construído por meio de patrimônios e literaturas desenvolvidos por homens. Nesse projeto, o que a gente quer é contar a história de Fortaleza por meio da perspectiva feminina”, reitera Marie.

Ancorada por uma frase da filósofa, artista plástica, professora e escritora Marcia Tiburi – “O feminismo é o contrário da solidão” – a pesquisadora relata que o contato com as participantes promoveu acalorados debates e aprofundamentos, um vínculo que nem a pandemia de Covid-19 rompeu. Por meio da internet, encontros e até um ateliê criativo foram otimizados.

Legenda: Em "Pescaria", a performer Marie Aiup escreve e costura memórias de mulheres em uma rede de pesca
Foto: Divulgação

“O que dialogamos nessas semanas do ‘Mulheres do Mar’ transbordou o mar. Ele foi para dentro da cidade, tendo em vista que foram várias as questões trabalhadas – desde especulação imobiliária até como tratamos o oceano como uma mercadoria, entre outras”, destaca a estudiosa. Deste modo, a instalação performática representa um grande lugar de atravessamento sobre pautas políticas, sociais, ambientais e poéticas.

Distanciamento

Designer e empresária carioca, Jô de Paula reside há 15 anos em Fortaleza e, na instalação, apresentará o vídeo “Presença”, realizado a partir da técnica de stop-motion. A criação reflete as percepções dela frente à dinâmica do espaço da praia na Capital, algo bastante diferente do que costumava presenciar no Rio de Janeiro.

“Quis trabalhar com o preconceito que existe nesse ambiente e como são construídos os medos nele. No Rio, vemos pessoas com canga na areia, desconhecidos sentando perto, há essa mistura de todas as classes na praia. Quando cheguei aqui, fiquei bem impressionada com a presença das barracas, esse distanciamento da água. Logo passei a frequentar o aterro da Praia de Iracema, um lugar que, há oito anos, era de poucos turistas e mais de pessoas simples. E todo mundo ficava muito chocado porque eu ia para lá devido a uma suposta sujeira na água, que diziam que tinha, e pela violência do lugar. A proposta da instalação me fez pensar sobre isso”, descreve.

Legenda: Obra "Debaixo da Onda", da fotógrafa Marilia Camelo, trabalha técnicas de colagem
Foto: Marília Camelo

Ela comenta que é bastante necessária a iniciativa do “Mulheres do Mar” porque traz à luz não apenas narrativas, mas uma diversidade de questões que atravessam o feminino, refletindo, assim, sobre a condição das mulheres – tanto de um modo geral como considerando as particularidades desse trato. Panoramas que podem ser completamente diferentes a depender da cor, raça, classe social ou espaço em que elas estão inseridas.

“É muito importante termos trabalhos abraçando essa perspectiva porque ninguém melhor para falar sobre suas vivências do que você mesmo, especialmente considerando as pluralidades dentro desse recorte, em que se olha tanto para a mulher branca quanto para a negra, para a de classe média e a de periferia. Ter a possibilidade de protagonizarmos mais lugares que os homens sempre dominaram e ainda continuam dominando é super interessante”, conclui.


Serviço
Instalação performática “Mulheres do Mar”
Em cartaz de hoje (24) a 5 de dezembro no Farol da Juventude (localizado na Praia do Lido ou Dos Crushs, Praia de Iracema). De terça a sábado, de 8h às 18h; aos domingos, de 8h às 12h. Entrada franca.

> Confira o nome de todas as mulheres participantes da instalação

Ana Clara Mendes, Eli Matos, Francisca Rodrigues, Geórgia Amaro, Geralda Evangelista, Hannah Rodrigues, Jacy Caetano, Jess Maia, Jô de Paula, Lourdes Leocadio, Maria Valdênia, Marília Camelo, Marilia Pinheiro, Priscila Gomes, Rachel Alencar, Rhaiza Oliveira, Sabrina Moura, Tatiana Tavares, Tatiane Sousa e Virgínia Sousa

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