Incerteza e solidariedade: Trabalhadores da cultura no Ceará falam do grave momento na pandemia

Nos relatos, a esperança foi alimentada pela união da classe. Diante da falta de perspectivas de uma reabertura definitiva do setor, os profissionais cobram a valorização da arte e dos artistas

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Mariana Brandão,  Senna Rathiofly e atriz Maria Vitória
Legenda: Cantores Mariana Brandão, Senna Rathiofly e atriz Maria Vitória: dias de união
Foto: Acervo pessoal/reprodução Facebook/ Cláudia Rodrigues

A melhor forma de compreender a situação dos artistas cearenses durante a pandemia é investigar vozes anônimas do setor. Por conta do contingente numeroso de trabalhadores envolvidos nessa cadeia produtiva, uma boa alternativa é ouvir aqueles que de alguma forma arregaçaram as mangas e não deixaram os amigos na mão.

Outra urgência é o depoimento de quem labuta nos bastidores. Operários que fazem o show acontecer e muitas vezes nem são lembrados. Desde o dia 16 de março, a incerteza assola essa turma. A Covid-19 cerrou as portas dos espaços públicos. Já estamos entrando na primeira semana de julho e Fortaleza testemunha um plano gradual de retomada econômica.

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A estratégia é dividida em quatro fases, cada uma com 14 dias. A primeira leva de funções liberadas ganhou corpo em 8 de junho. Uma consulta básica na estratégia montada pelo Governo aponta a programação de abertura de serviços e espaços identificados com a cena cultural.

Na Capital, as atividades que voltam incluem aluguel de equipamentos (na atual segunda fase), restaurantes em horário noturno e barracas de praia (terceira fase). Por sua vez, casas de festas, cinemas, clubes e espetáculos somente estão previstos na quarta fase.

Outro ponto sensível fica pela torcida dos trabalhadores da área para que novos casos da doença não explodam novamente. Tal cenário forçaria novos fechamentos e mais dor de cabeça. A situação mais comentada e repetida por estes profissionais sugere uma difícil constatação. "Fomos os primeiros a parar e seremos os últimos a voltar", defende a maioria.

Em 24 de junho, a campanha solidária do Sindimuce chegou a Quixadá
Legenda: Em 24 de junho, a campanha solidária do Sindimuce chegou a Quixadá
Foto: Reprodução/Facebook

Um papo rápido com Rubens Oliveira de Lima ilumina o momento. Aos 42 anos, o entrevistado mantinha uma agenda ativa no ramo artístico. Desempenhava as funções de técnico de som, roadie, produtor de palco, carregador de equipamento. O que fosse preciso para o melhor som passava por seus olhos. Shows, festivais, entre outras apresentações públicas de peso estão no currículo.

O auxílio emergencial pago pelo Governo Federal, aquele no valor de R$ 600 foi negado. A alternativa foi buscar dominar outras formas de atividade. Pelas próprias contas, Rubens acha que uma possível normalidade de sua área só em 2021. Enquanto isso, foi necessário correr atrás.

"Aprendi a me virar como servente de pedreiro. Hoje também faço lavagem a seco de bancos automotivos, pintura de residência, serviços gerais e faxina. Podem me chamar", afirma. Em dias tão complicados, o apoio veio dos colegas artistas. Rubens foi um dos trabalhadores ajudados com a distribuição de cestas básicas organizada pelo Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado do Ceará (Sindimuce).

Arlindo Costa Silveira
Legenda: Arlindo Costa Silveira trabalha como baterista desde muito jovem
Foto: Acervo pessoal

Outra testemunha da ação solidária foi Arlindo Costa Silveira, o Arlindo Batera. Começou a tocar aos 14 anos. O atual instante de dureza guarda semelhanças com o começo dessa jornada na música. "Nesse tempo eu carregava o som e tocava cinco horas direto de forró. No final era desmontar equipamento e botar em cima de carro. Andava em cima de caixas. Levava chuva. Muitos passam por isso. Ainda mais eu que sou de Russas", diz.

O último show foi no dia 19 de março. "De lá pra cá, mais nada. Sou autônomo. Nunca trabalhei de carteira assinada. Esse pessoal que tem o poder devia ter olhado melhor por nós", divide.

Rotina alterada

Cirio dos Santos Brasil nasceu e se criou debaixo de uma lona do circo. Aos 47 anos, o artista descreve que antes da quarentena a rotina era sobreviver com a bilheteria. Levar alegria para cidades do Estado e bairros periféricos da Capital era a maneira de se sustentar em pé. "Com a venda de ingressos tínhamos o que comer no outro dia", descreve.

A trupe familiar inclui um grupo de 14 pessoas, incluindo uma bebê de apenas um ano e quatro e meses de vida. Com o fim das apresentações, a precariedade ganhou corpo. "Para sermos vistos, tivemos que colocar vídeo na internet, pedindo ajuda", completa o profissional.

Os esforços para amenizar a fome destes operários contou com a força coletiva de inúmeros agentes da cultura no Ceará. Esse belo capítulo uniu da turma do teatro ao pessoal do humor. Rostos conhecidos no cenário, entre outros nomes ativos priorizaram a solidariedade.

Iniciativas como a Rede de Apoio aos Artistas conseguiram um feito generoso. Durante 50 dias de trabalho, 196 voluntários ajudaram trabalhadores de 73 bairros de Fortaleza e até municípios da Região Metropolitana. 155 cestas básicas foram entregues.

Outros grupos foram chegando. A Vaquinha LGBT - For Rainbow e a rede de apoio às comunidades circenses são exemplos. Diante de uma fase tão grave, restou a força da união. Com os primeiros dias da pandemia, iniciativas como o grupo Gabinete de Crise da Cultura acentuaram a necessidade do diálogo político. 

O gesto humanitário reuniu, entre outras representações, o Fórum de Produtores Culturais do Estado do Ceará, Rede de Empreendedores Culturais Fórum de Teatro do Ceará / Todo Teatro É Político, Associação dos Produtores Teatrais do Ceará (APTECE) e Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado do Ceará (Sindimuce).

Inclua também a  Associação dos Humoristas Cearenses (ASSOH), Sindicato dos Humoristas do Estado do Ceará,  Associação de Proprietários de Escolas de Circo do Ceará Associação (CircoLAR) e A Casa é Sua - Casa de Produção Associação Cultural Canoa. 

Valentia

Maria Vitória Alves de Freitas é atriz, bonequeira, diretora, dramaturga e educadora. Ela é uma das voluntárias à frente da Rede "Apoio aos Trabalhadores e Trabalhadoras da Cultura: Unidos Venceremos". Os desafios percebidos foram imensos. "Dói ver os casos. Teve gente que encontramos no chão, com fome. Mães com crianças doentes em casa", explica a entrevistada.

A Unidos Venceremos começou no dia 20 de março. Até 30 de maio, a ação apoiou 85 pessoas com remédios, contas atrasadas, gás de cozinha e outras necessidades. Foram distribuídas 543 Cestas básicas de pequeno e médio porte. Ao todo, 628 trabalhadores foram assistidos.

Maria Vitória DUPLICITÉ  Cláudia Rodrigues
Legenda: Atriz Maria Vitória no palco do Centro Cultural Banco do Nordeste com o espetáculo 'DUPLICITÉ": Cuidado com a classe artística é intenso
Foto: Cláudia Rodrigues

A já citada iniciativa do Sindicato dos Músicos não arredou pé e continua pedindo ajuda. "As cenas que vimos nesses dias são fortes", adianta Daniel Domingues, diretor da entidade.

"Vi trabalhador rasgando a cesta na hora em que ganhava. Tirando um pacote de bolacha pra dividir com o filho", descreve Daniel. "Tinha pessoas com mais de um dia sem comer. São cearenses, pessoas que fazem a nossa cultura se alimentando apenas de farinha e água", desabafa.

Futuro

A saída para boa parte foi tentar arriscar algum retorno financeiro com as "lives". Diferente de medalhões do mercado, o formato passou longe de configurar uma renda certa. É o caso dos cantores Mariana Brandão e Senna Rathiofly.

Mariana completou três décadas de atividade na noite musical do Ceará. Foram apresentações com voz e violão e shows com a banda Brasa Seis. "Consegui criar meus filhos com a música, trabalhando duro com muita responsabilidade e sempre preocupada em mostrar um bom repertório", afere.

Mariana Brandão com a banda Brasa Seis
Legenda: Mariana Brandão com a banda Brasa Seis
Foto: Acervo pessoal

Senna cantava pop rock e hoje manda ver nos gêneros do sertanejo e forró das antigas. Pelas contas lá se vão 12 anos de ofício. "Músico de barzinho ganha um valor irrisório", constata. "O artista é uma pessoa otimista. Temos a esperança de que vai melhorar. Mas, sabemos que vai ser devagar".

O formato eletrônico, totalmente novo a estes artistas, é um desafio. Rathiofly diz que a arrecadação foi bem abaixo do esperado. Mariana, por sua vez, destaca que a live não atendeu as expectativas.

"Fazemos com o intuito de conseguir um couvert solidário para nos ajudar. Só que não conseguimos quase nada. A live é pouco divulgada, apenas os nossos amigos tomam conhecimento, muitos não se interessam para assistir, é complicado", assume.

O circense Cirio dos Santos projeta o futuro com um alerta. "As pessoas precisam ser mais humanas. Olhar uns para os outros, dar valor à arte que cada um tem. Independentemente se é na lona, na rua ou teatro, o poder público precisa ter mais respeito. Vai melhorar", deseja o trabalhador.

Serviço:

Informações sobre como doar ou receber doações:
Rede Unidos Venceremos: Contato (85) 99651755
Sindicato dos Músicos do Ceará

Live Senna Rathiofly (https://www.youtube.com/channel/UCjrgLwpmjv8DQQhV_Hf4J4w/videos). Sexta-feira (17/07), às 18h30. Com participações especiais de Alexandre Cantor, Marcos Silva, Luciano Souza, Lenara Brenda, Luiz Carlos, Lael Rodrigues e Leandro Lima.
Contato:  (85) 98654-4424
Apoio: Agência 1469
OP 13
Conta: 28120-0 (José Airton de Sousa Gonçalves)

 

 

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