Grupos juninos do Ceará retomam ensaios, mas impactos sociais da pandemia afetam tradição

Em 2022, a previsão é que a realização dos festejos do Ceará Junino aconteçam no mês de agosto e setembro

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Ensaios presenciais da Junina Babaçu retornaram em janeiro e a estimativa é de que 100 pares participem da festa
Legenda: Ensaios presenciais da Junina Babaçu retornaram em janeiro e a estimativa é de que 100 pares participem da festa
Foto: Gilmar Silva

“Olha pro céu, meu amor. Vê como ele está lindo...”. Os versos imortalizados na voz de Luiz Gonzaga falam de uma especial noite de São João. No cotidiano de muitos cearenses, os festejos juninos representam um momento único de alegria, dança e cultura coletiva.  

Há dois anos, essa tradição repleta de cores deixou de ser vivida com a presença de público. A pandemia da Covid-19 atingiu toda a cadeia produtiva que atua direta e indiretamente com este evento. Para organizadores, grupos, brincantes, entre outros profissionais do setor, ficou a saudade.

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2022 chega com esperanças, mas a incerteza ainda paira. Festa tradicionalmente ligada aos meses de junho e julho, o ciclo junino leva meses de planejamento, ensaios e produção. No Ceará, os grupos retomaram os trabalhos. Entretanto, por conta do contexto pandêmico, o número de brincantes foi severamente reduzido. Editais públicos preveem festejos para os meses de agosto e setembro

Conversamos com quem respira a cultura diariamente. Organizadores e membros das quadrilhas explicam acerca da ausência da festa nesses dois anos, a diminuição de participantes e o desejo que o evento volte plenamente e com mais incentivo dos gestores públicos. 

Família nascida no São João 

Organizador e brincante, com 12 anos de atividade com a Junina Brisa do Sertão De Canindé, Robson Alves explica que 2022 ficará em branco. “Esse ano vou sair na ‘junina arquibancada’”, lamenta o entrevistado.  

O termo, “junina arquibancada”, remete a quem deixa de dançar e vai apenas assistir à festa. “Muitos brincantes perderam emprego, começaram estudo e não puderam dançar. Estou trabalhando fora da minha cidade, dificultou”, situa.

“Devido à falta de participantes, vai ficando enfraquecido. Muitos locais de ensaio fecharam. Quadrilha precisa do trabalho humano, precisa aglomerar. Ficamos um pouco na desvantagem de segurar o grupo”, completa Robson Alves.   

Lourdinha Alves e Robson Alves
Legenda: Lourdinha Alves e Robson Alves
Foto: Divulgação

A Junina Brisa do Sertão nasceu da iniciativa de jovens de Canindé. A missão era oferecer divertimento, cultura, lazer e atividades socioculturais. Além de expressão artística, a quadrilha significa para este cearense uma grande paixão em família. 

Foi na festa junina que ele conheceu a esposa Lurdinha Alves (também brincante). A filha do casal, Khiuany Nara (12), também já faz parte dessa tradição. Por ser algo tão forte no cotidiano, Robson Alves mantém a esperança que o afastamento seja apenas temporário.  "É começar do zero", conta

Mais incentivo  

Segundo o presidente da Federação do Movimento Junino do Interior do Ceará (MOJUNI), Vando Rodrigues, a pandemia aprofundou dois cenários distintos. Além da falta de brincantes, a retomada do ciclo junino carece de mais apoio por parte das inciativas públicas. 

“Hoje, podemos dizer que os festejos da cultura junina são o maior do País e geram recursos ao PIB. Temos uma linguagem latente, atuante em todos os estados e cidades brasileiras”, estipula o representante.  

Uma quadrilha, enumera, chega a contratar em torno de 45 profissionais diretamente e outros 100 indiretamente. A cadeia produtiva envolve músicos, segurança, transporte, costureiros, inúmeras frentes. Para Vando Rodrigues, diferente de outros estados, o Ceará protagoniza o maior festejo do País por conta dos 60 dias de atividades. 

Mesmo com a diminuição no número de brincantes, organizadores lutam para que os festejos juninos retomem seu espaço
Legenda: Mesmo com a diminuição no número de brincantes, organizadores lutam para que os festejos juninos retomem seu espaço
Foto: Gilmar Silva

“Esperamos que os municípios possam perceber a importância de se fazer cultura. A festa junina trabalha com várias interfaces, como o esporte, a economia e o social. É qualidade de vida para população e a cidade”. 

Reiniciar o trabalho também é a realidade de quem promove a cultura junina com as crianças. Em dois anos sem eventos, a faixa etária dos pequenos mudou. “Perdemos quase que 60% do nosso elenco”, aponta Fábio Lessa, do Instituto Cai Cai Balão.  

A Organização não governamental (ONG) realiza a quadrilha Junina Infantil Cai Cai Balão, o Pastoril Pirambu, Bloco Pirambulando, entre outras ações sociais no bairro Pirambu. Durante a pandemia, a entidade precisou redobrar sua linha de atuação naquela comunidade. 

Quadrilha Junina Infantil Cai Cai Balão durante apresentação no Teatro São José
Legenda: Quadrilha Junina Infantil Cai Cai Balão durante apresentação no Teatro São José
Foto: Flavio Bertagnoli Machado

“Foi complicado para crianças e famílias, para os músicos, artistas. Vivemos em uma comunidade vulnerável por questões de território e pobreza. Tivemos que voltar os nossos olhares para o social”, descreve o gestor.  

Energia guardada para festa 

 “Acredito, nós que amamos a cultura junina, já somos de resistência. Fazer cultura popular no nosso estado é difícil e os grupos enfrentam dificuldades. Mas, percebemos que, gradualmente, as coisas estão se normalizando”, conta o presidente da quadrilha Junina Babaçu, Tácio Monteiro. 

Nascida em 1989, no bairro Parque Santo Amaro, em Fortaleza, a Junina Babaçu retomou os trabalhos de ensaio em janeiro. A expectativa dos integrantes é de um reencontro histórico com o público. “Esses dois anos parados vamos jogar tudo na quadra”, avisa o presidente. 

Durante a pandemia, a Junina Brisa do Sertão (Canindé-CE) realizou eventos virtuais
Legenda: Durante a pandemia, a Junina Brisa do Sertão (Canindé-CE) realizou eventos virtuais
Foto: Divulgação

Natacha Carvalho é uma das brincantes da Junina Babaçu e se assume feliz pelo retorno do ciclo junino. “Para mim, é uma felicidade. Não sou muito de sair. Meu divertimento é o São João, desde os meus cinco anos”, conta a brincante. 

Da mãe e tias surgiu o contato com essa expressão popular. A família organizava uma quadrilha no bairro Vila União. Natacha começou a ser porta-bandeira e sempre competia nos arraías do colégio. “Até hoje eu danço, só parei na pandemia”, diz orgulhosa.

Legenda: Natacha Carvalho vivencia a tradição junina desde a infância, no bairro Vila União
Legenda: Para a brincante, além de tradição familiar, o ciclo junino pode ser uma ferramenta de mudança social pela arte
Foto: Acervo pessoal

Mesmo com as limitações de conciliar os horários de ensaio e vida profissional, a entrevistada reforça a importância de que mais pessoas conheçam essa tradição nordestina. Assim, é possível perceber a importância social desse evento.  

“As pessoas que vivem do São João são pessoas formadas, responsáveis, com vida bem estabilizada. Quem nunca viveu venha participar. Eu vejo como ajuda os jovens a tirar eles da vida difícil”, defende Natacha Carvalho. 

Festejos juninos em agosto e setembro 

A Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) aponta que os trabalhos para apresentação do Edital Ceará Junino devem ser concluídos na primeira quinzena de abril. Com isso, em 2022, os cearenses terão festas juninas fora de época. A previsão é que a realização dos festejos aconteça no mês de agosto e o Campeonato Estadual em setembro

 "O edital está sendo produzido com a perspectiva de que os festivais sejam apoiados com os recursos do Edital, bem como o campeonato estadual. A previsão é que a realização dos festejos ocorra no mês de agosto e o Campeonato Estadual em setembro", explicou a Secult em nota. 

A Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) também foi procurada. Questionada acerca da falta de diálogo com os grupos juninos de Fortaleza, a secretaria se justificou informando que “está em constante contato com as quadrilhas juninas da Capital, por meio das federações”.  

Sem previsão de prazos, a gestão de Elpídio Nogueira aponta que planeja lançar edital para o ciclo junino. “A Coordenação de Patrimônio Histórico Cultural (CPHC) da Secultfor elaborou o Edital de Festejos Juninos para o ano de 2022, cujo processo de execução está em andamento e, em breve, será publicado”, apontou em nota.