Festival de Dança promove intercâmbio entre canadenses e jovens da periferia de Fortaleza

Durante uma semana, o Festival de Dança Brasil Canadá uniu dançarinos estrangeiros e jovens da periferia de Fortaleza para interagirem por meio da dança. A expressão é vista como uma forma de superar a violência urbana

Escrito por Rômulo Costa , romulo.costa@verdesmares.com.br
Legenda: O coreógrafo Bizzy Owusu participou da apresentação no Festival de Dança Brasil Canadá
Foto: Foto: Fabiane de Paula

A língua não é a mesma, mas isso nem de longe foi uma barreira para a interação. Quando a palavra faltava, os passos - coreografados ou de improviso - serviam como uma ponte para o contato que se construiu na última semana entre jovens da periferia de Fortaleza e um grupo de dançarinos canadenses.

Durante cinco dias, os visitantes puderam conhecer projetos sociais que trabalham a proteção da violência por meio da arte em bairros das regiões do Bom Jardim, Jangurussu e Messejana. A dança serviu como um pretexto para dar vazão a um ensinamento: existem mais coincidências do que se acredita entre essas duas realidades.

O encontro foi promovido durante o Festival de Dança Brasil Canadá, que ocorreu entre as últimas segunda (29) e sexta-feira (3). O evento foi uma realização da ONG Visão Mundial, que auxilia projetos sociais em Fortaleza. Os integrantes trabalham com arte e educação na periferia, na tentativa de criar ferramentas de enfrentamento à violência urbana.

O assunto faz parte do contexto social dos jovens visitados. Isso ficou evidente durante uma roda de conversa que aconteceu na tarde da última quarta-feira (1º) com adolescentes da comunidade Parque Santa Maria assistidos pela Associação Santo Dias. Diante da pergunta de um dos dançarinos canadenses sobre a rotina do bairro, as respostas dos adolescentes trouxeram palavras muitas vezes repetidas durante o encontro. "Medo", "violência" e "dificuldade" estiveram no discurso. Mas apareceram também "arte", "força" e "esperança".

União de territórios

Aos 15 anos, Samila Ferreira falou sobre um sonho. Disse que queria o fim das brigas entre facções rivais para que jovens de outros territórios pudessem frequentar as aulas de dança que a Associação oferece. "A gente quer atrair mais jovens para cá", explica, enquanto tenta alcançar o futuro. Um futuro que é desafiante, ela sabe.

A dança é a esperança que a gente tem. É o nosso objeto de luta, é como a gente se expressa

Desde os seis anos dedicada a essa expressão artística, a jovem entende que a arte pode ser um instrumento de transformação. A prova, ela completa, é a própria trajetória, que é perpassada por perdas de amigos que se enviesaram e hoje se encontram distantes. "Quando a gente dança, não se envolve com isso. Pelo contrário, a gente luta contra isso. Mas quando não temos algo para ocupar a mente, é muito mais fácil chegar às pessoas que fazem o mal", completa.

Assim como ela, o amigo Carlos Henrique Lemos, 15 anos, entendeu cedo que a dança poderia ser uma alternativa para amenizar os dias e uma forma de superar a rotina nem sempre fácil para a juventude do bairro. Ele foi um dos meninos que disseram não se sentir seguro, seja quando se demora na rua à noite ou quando frequenta a praça do bairro ou a lanchonete que todo mundo vai.

Carlos Henrique ficou surpreso quando ouviu a canadense Anna Czarina Yso, 25 anos, dizer que a realidade das gangues também afeta os jovens de lá. "A gente veio de um lugar quebrado, com muitas dificuldades. E essa realidade revolta muitos de nós. Isso aconteceu com meu irmão", compartilhou a dançarina. Ela relatou que seu parente se envolveu com drogas e brigas e foi a dança que o motivou a escapar dessa situação. "Depois que conheceu a performance, ele melhorou a autoestima e agora superou o problema", contou.

A história chamou atenção de Carlos Eduardo. "Nem sempre sabemos que a realidade que a gente vive se repete em outros lugares. Eu não sabia que lá também tinham gangues e bairros com altos índices de violência nem que as crianças sentiam falta de apoio familiar. Não imaginava que lá acontecia o que existe na nossa realidade", disse.

A situação compartilhada é uma motivação para ele, porque soube que, assim como no Parque Santa Maria, também há jovens no Canadá que buscam transformar a realidade local. "Percebi que eles tentam fazer o que a gente procura aqui, que é preencher o vazio de dentro das pessoas, mostrando que podemos ajudar uns aos outros", afirmou.

Legenda: A proposta dos dançarinos foi se unir pela arte
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Tanto Samila quanto Carlos Eduardo participam de um comitê de 30 jovens da Associação Santo Dias que se reúnem semanalmente para dançar e também para discutir possíveis soluções para problemas que afetam a comunidade local.

Desses encontros surgiram propostas de campanhas que alcançaram as escolas do entorno. Temas como bullying, racismo e igualdade de gênero já estiveram na pauta. "A gente também trabalha muito a questão da prevenção das violências dentro da escola. Aliás, essa é uma das principais questões que vão definir se as crianças vão se dar bem ou não na escola", completa a coordenadora da entidade, Celmária Simão.

Para ela, a troca estabelecida com os canadenses dá um novo fôlego para os jovens da comunidade, principalmente pela chance de desmistificar o que vem de fora. É essa integração que estabelece pontes entre as duas realidades e inspira soluções para superar vulnerabilidades.

"A cultura integra e eles puderam perceber que a violência existe em todo lugar. O importante é não ficar parado esperando as coisas acontecerem. Assim como os canadenses conseguiram superar isso, eu acredito que a gente também vai conseguir. Pode ser de maneira mais lenta, mas a gente vai conseguir", confia a coordenadora da Associação.

Balé e capoeira 

Assim como os jovens do Parque Santa Maria, a interação do grupo por meio da dança também aconteceu no Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ). Por lá, grupos locais de arte exibiram trechos de apresentações artísticas que passaram por expressões como o balé contemporâneo, o rap e a capoeira. Os canadenses, muito ligados ao movimento do hip hop, também se apresentaram para o público e pediram interação.

Legenda: No Bom Jardim, os canadenses se conectaram com os jovens
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Gutemberg Morais, 20 anos, participou do encontro com a apresentação do espetáculo "A rua é noiz", do Instituto Katiana Pena, que trabalha a formação de bailarinos no bairro. O número sintetiza, pelos passos, a rotina da maioria dos moradores do Grande Bom Jardim.

Para o jovem, foi uma oportunidade de mostrar para os visitantes a região em que vivem fora da ótica do estigma. "Infelizmente, o nosso bairro tem esse olhar estigmatizado, mas aqui existe cultura e arte. Nosso trabalho é justamente mostrar isso e tentar atrair as crianças e os jovens", afirma Gutemberg.

A partir da própria experiência, o bailarino fala da dança como um instrumento de transformação de horizontes.

A dança transforma. Tem o poder de pegar um jovem sem sonhos e perspectivas e mostrar que ele tem condição de ser um artista

A narrativa encontra rima com a vida do canadense Nathan Tiangson, 25 anos. "Lá no meu país, eu participo de um grupo de dança com muitos jovens e a gente se certifica que eles, estando no estúdio, vão se distanciar da violência e dos exemplos negativos. Eu vi isso aqui. Tem muitos grupos que se esforçam para estar juntos e, assim, criam esse senso de união", diz o dançarino. Ele enxerga a dança como um instrumento para extravasar os sentimentos e buscar alternativas mais pacíficas.

Foi isso que os jovens, do Ceará e do Canadá, exercitaram durante os encontros do festival. A troca entre as culturas, alcançou a arte, superou os passos e encontrou a esperança.