Escrupulosidade, o medo excessivo de não ser bom o bastante: entenda conceito e reflexos na rotina

Segundo psicóloga, um dos passos importantes de autocuidado nesse contexto é reconhecer nossa humanidade e, com isso, nossos limites

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Intensa autocobrança e preocupação em atender a expectativas sociais, morais ou religiosas possui atravessamentos culturais e individuais
Foto: Shutterstock

Apesar da pronúncia difícil, o termo escrupulosidade é cada vez mais atual e de fácil identificação. Trata-se do medo excessivo de não ser bom o bastante. Se você também se frustra por sentir que poderia ser mais, render mais e, com isso, alcançar metas muitas vezes impostas por outros, bem-vindo ao clube. Quase todos nós estamos nessa.

A intensa autocobrança e preocupação em atender a expectativas sociais, morais ou religiosas possui atravessamentos culturais e individuais. E geralmente vem acompanhada de características como perfeccionismo, prudência e rigidez excessiva. Resultado: muita insegurança nas atividades realizadas, verificações constantes e angústia demasiada com pormenores, afetando a rotina e gerando reverberações emocionais.

Jornalista e sócio-fundadora da plataforma @contente.vc, Daniela Arrais compartilha diversas experiências nesse contexto. Por muito tempo, a Síndrome da Impostora – como é chamado o sentimento de que você não é bem-sucedido porque merece e que, em algum momento, todos irão descobrir que você não passa de uma fraude – habitou a mente dela. “Eu nem tinha noção de que existia nome pra isso”, confidencia.

Legenda: Por muito tempo, a Síndrome da Impostora negligenciou vivências importantes na trajetória de Daniela Arruda
Foto: Gus Machado

Foi quando se deparou com o livro “A coragem de ser imperfeito”, de Brené Brown – professora e pesquisadora na Universidade de Houston (EUA). Por meio da obra, Daniela viu que não estava sozinha. Há cerca de cinco anos, ela compreendeu o que significava esse comportamento e, na sequência, começou a ressignificá-lo. “Passei a escrever sobre isso, fazer vídeos, entrevistar outras mulheres, e me dei conta de que todas as pessoas que eu conheço – principalmente mulheres – em algum momento também se sentem assim”.

É mais do que achar a grama do vizinho mais verde: está na estrutura da sociedade. Segundo Arrais, “nesse ambiente patriarcal, desenhado por homens e para homens, é como se não tivéssemos o direito de pertencer, de ocupar espaço. Ao entender isso, pensei que não poderia dizer 'não' para um convite que me desafia. Precisava dizer sim, e ir com medo mesmo”. 

Agindo dessa forma, ela acredita estar impulsionando não apenas a si, mas a todas as mulheres que também lidam com essa realidade. “Hoje ainda sinto a Síndrome da Impostora, mas ela não me impede de dizer ‘sim’ para o que pode me dar medo”.

Efeitos da contemporaneidade

Sem dúvida, os dilemas da contemporaneidade marcam a compreensão e o fortalecimento de diferentes questões de saúde mental – fomentando, inclusive, a transformação de aspectos sociais em conteúdos médicos/patológicos. Quem nos situa nesse panorama é a psicóloga Bruna Myrla Ribeiro Freire, especialista em Saúde Mental e Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão. 

De acordo com a estudiosa, é inegável que a lógica competitiva e de intensa produtividade e rapidez da atualidade coloca os indivíduos em acentuado lugar de cobrança por rendimento e sucesso. “Esses atravessamentos sociais podem aparecer como fator agravante de sofrimento psíquico à medida em que promovem uma corrida, em que, na maioria das vezes, é negligenciado o autocuidado, a biografia de cada sujeito e o manejo de suas emoções”.

O medo de não ser bom o suficiente enuncia-se, entre outros aspectos, numa sociedade com parâmetros cada vez mais individualizantes e adoecedores. Desta feita, torna-se impossível dissociar a temática aqui abordada dos debates sobre nosso modo de organização econômico e os enlaces sociais que dele reverberam. 

“O uso do termo escrupulosidade como característica de algumas condições psíquicas descritas em manuais diagnósticos não é atual, devendo o mesmo ser sempre compreendido de modo integrado”, demarca a psicóloga.

Questionada se existem pesquisas na área atestando quais os públicos mais impactados por esse tipo de comportamento – ou se é possível inferirmos que públicos são esses – Bruna explica que a questão envolve pessoas com histórico de baixa autoestima, insegurança ou aspectos de personalidade mais obsessivo-compulsivo.

No entanto, nenhuma inferência é determinante ou totalitária sobre esses públicos. “Essa é uma característica que pode se desenvolver pelos modos como as pessoas lidam com responsabilidades, autocobrança e expectativas”.

Legenda: É inegável que a lógica competitiva e de intensa produtividade e rapidez da atualidade coloca os indivíduos em acentuado lugar de cobrança por rendimento e sucesso
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De todo modo, antes de superar essa condição, é importante entendê-la de forma ampliada e compreensiva, acolhendo-a e entendendo a história de vida de cada pessoa. A psicoterapia pode ser um processo potente de cuidado, na medida em que propõe ser espaço de escuta empática e construção de estratégias de enfrentamento desse contexto. Procurar um profissional de saúde mental para iniciar a prática é fundamental.

Encarar a si

Daniela Arrais reforça esse ponto. Ela enxerga a terapia como algo que todo mundo se beneficiaria em fazer, tendo em vista a oportunidade de olharmos para nós mesmos com mais profundidade. Conforme observa, se a escrupulosidade ou a Síndrome da Impostora estão impedindo você, cronicamente, de realizar atividades, vale uma observação mais atenta.

“Conheço mulheres brilhantes que se sabotam demais, sempre deixando para um futuro distante o momento em que vão fazer o que querem”, exemplifica. “Mas acredito que alguns passos também ajudam. Para mim, primeiro foi conhecer o termo e entender que eu não estava sozinha; depois, falar sobre isso, fazer rodas de conversa com outras mulheres e perceber que, por mais distantes que sejam nossas realidades, a gente se encontra nessa opressão estrutural. Buscar pessoas nas quais você pode mostrar sua vulnerabilidade sem medo também te ajuda a avançar casas. Tudo isso me ajudou bastante. Mas terapia – e, no meu caso, análise – foi primordial”.

A confeiteira Letícia Azevedo, 23, igualmente é acompanhada por um psicólogo semanalmente a fim de lidar melhor com essas e outras questões. Ela tem ansiedade e sente muitas dores no corpo. As causas para esse quadro são claras: estresse, tensão, preocupação. “Sofro internamente com o medo de não ser boa o suficiente, e me sinto pressionada, por mim mesma, a ser sempre muito eficiente para que eu me sinta suficiente”, divide.

Legenda: A psicoterapia pode ser um processo potente de cuidado, na medida em que propõe ser espaço de escuta empática e construção de estratégias de enfrentamento desse contexto
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Na área em que atua, a cearense lida com várias pessoas dotadas de excelentes habilidades, o que explica o comportamento comparativo. A bem da verdade, muito antes de ingressar nesse segmento profissional, Letícia já se sentia mediana. Nunca muito boa: razoável.

Ela já foi chamada para trabalhar em um lugar que, pessoalmente, era visto como impossível. No entanto, havia sido indicada porque lhe consideraram boa para o espaço. A confeiteira não acreditou no convite – “achei, inclusive, que era brincadeira”. Mas aceitou, à época. E pensou que, se enxergam habilidades nela, é porque realmente é competente no que faz. “Só eu não acredito, e isso até hoje exerce força sobre mim. Todos os dias”, diz.

“Nos últimos anos, sinto que temos nos comparado muito com outras pessoas. A competição de ‘melhor vida’ é bastante presente todos os dias na rotina de milhares, como no Instagram. Vemos gente vivendo uma realidade perfeita, fácil, porém não sabemos absolutamente nada do que acontece de fato na vida delas. Então acreditamos naquilo que postam, e essa realidade ajuda, sim, a reforçar a escrupulosidade, pois você percebe que sua vida nunca vai ser boa o suficiente pra ser igual à vida da outra pessoa, que é tão boa”.
Letícia Azevedo
Confeiteira

Dilemas diários

Estudante de Medicina, Letícia Mesquita, 23, é mais uma a contribuir com olhares sobre essa situação. Na faculdade, o medo de não ser boa o suficiente é considerável – sobretudo se comparado com o Ensino Médio, no qual esse sentimento era amenizado para ela. 

“A dificuldade das provas teóricas e práticas da minha graduação testa a resiliência constantemente. Além disso, a comparação entre meus colegas de turma acaba sendo involuntária, e a autocobrança é potencializada”, demarca.

Legenda: Estudante de Medicina, Letícia Mesquita diz, que na faculdade, o medo de não ser boa o suficiente é considerável
Foto: Arquivo pessoal

Na vivência religiosa, os escrúpulos acabam sendo bem mais possíveis – haja vista o risco de julgar todas as coisas como pecado sem medir o real significado delas. A luta constante pela santidade também leva Letícia à cobrança de ser melhor, persistindo nos mesmos erros. A ansiedade pelo medo de não ser boa o bastante é o sintoma que mais percebe em si. 

“São pensamentos repetidos de autocobrança. E, nos picos, não consigo produzir nada”, dimensiona. “A área da Medicina tem uma carga muito grande, são assuntos que tratam de doenças do corpo inteiro, com várias opções de patologias. Então, temos essa ansiedade que nos faz perguntar: ‘Será que, quando me formar, realmente vou conseguir ser um bom profissional?’. Isso sem falar de toda a competição que existe no meio”.

O desafio de ressignificar

Embora com diferentes graus de dificuldade, é possível superar o quadro – ou, pelo menos, conviver de forma pacífica com ele. Um dos passos importantes de autocuidado nesse contexto é, sem dúvida, reconhecer nossa humanidade e, com isso, nossos limites. 

Letícia Azevedo sublinha: “Ressignificar o ‘ser boa o suficiente’ é fazer o seu melhor todos os dias, pensando que você, conscientemente, consegue fazer aquilo. E que aquilo é muito bom, é suficiente. Precisamos nos respeitar, respeitar nossos limites, as diferenças. Aprender a lidar com o fato de que ninguém é melhor que ninguém. E mesmo que alguém seja melhor que eu, ainda assim sou boa o bastante”.

Ao que Letícia Mesquita complementa: “Busco ressignificar vendo que cada pessoa tem um ritmo diferente. E acho que é possível, sim, conviver de forma saudável com isso – desenvolvendo mantras, se concentrando, se voltando sempre para a motivação. É constante a chance de você se culpar e cair na auto comparação, então há sempre que se voltar para o ponto em que você lembra o porquê de estar ali e que está tudo bem”.

No caso de Daniela Arruda, o estalo de como agir melhor nesse aspecto veio com a maternidade, a partir da leitura de uma frase do pediatra inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971). Nela, ele enfatizava a necessidade de ser uma mãe “suficientemente boa”. 

“Esse conceito do ‘suficientemente boa’ apazigua o coração. A gente não precisa ser o tempo inteiro a melhor, a única. Até porque, quando a gente promove esse tipo de discurso, está dando espaço para poucas pessoas chegarem no topo. Acho que a gente se beneficia quando repensamos um pouco nossas expectativas e passamos a olhar não só pra gente, mas pro entorno, para a sociedade. É preciso ter um olhar de acolhimento pro que estamos fazendo - para a nossa jornada, para os nossos pares. E honrar isso, dar valor”.
Daniela Arruda
Jornalista e sócio-fundadora da plataforma @contente.vc

Bruna Myrla Ribeiro, por sua vez, destaca que as expectativas representam planos e metas. Lidar com eles de maneira saudável é compreendê-los como algo que nos impulsiona, mas jamais nos limita ou define. “É necessário encontrarmos, em processo de autoconhecimento, o que é ‘ser bom o suficiente’ para nós mesmos, reconhecendo nossas trajetórias, potencialidades e desafios. Assim, conseguiremos lidar com as lógicas sociais e econômicas impostas a nós de modo mais reflexivo, crítico e, sobretudo, cuidadoso”.

 

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