Escritores cearenses dimensionam legado de Rubem Fonseca

Angela Gutiérrez, Marco Severo e Ana Miranda tecem considerações sobre o talento e herança cultural deixada pelo autor

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Além de obras literárias, Rubem Fonseca escreveu roteiros de filmes, num constante apego com a palavra
Foto: Foto: Zeca Fonseca

Revolucionário das letras e contundente observador da realidade nacional, Rubem Fonseca construiu em torno de si uma densa produção literária. Discreto e dado à reclusão – vide a costumeira recusa a conceder entrevistas – reverberou, no papel, as libertárias ideias que lhe alçaram ao Olimpo da criação ficcional brasileira. Um farto e incomparável legado que, mesmo com a sua morte, nesta quarta-feira (15), permanecerá vivo na literatura do País.

Rubem faleceu em decorrência de um infarto, ocorrido próximo à hora do almoço, no apartamento em que residia, no Leblon. Embora levado imediatamente ao hospital Samaritano, na Capital fluminense, não resistiu. Ele completaria 95 anos em menos de um mês, no dia 11 de maio.

Nascido em Juiz de Fora (MG) em 1925, viveu a maior parte da vida no Rio de Janeiro – e, mesmo recluso, tornou-se um dos personagens da cidade. Não era incomum vê-lo levemente disfarçado em caminhadas matinais, com boné e óculos escuros.

Chamado pelos amigos de Zé Rubem, exerceu várias atividades antes de se dedicar inteiramente à literatura. Formou-se em Direito, passou longo período na carreira policial, e, nos Estados Unidos, cursou Administração e Comunicação.

A estreia na ficção aconteceu nos anos 1960, com a coletânea de contos "Os Prisioneiros". Já ali, o modo de narrar chegou a ser descrito como brutalista. Várias de suas histórias (em especial, os romances) são apresentadas sob a estrutura de uma narrativa policial, com fortes elementos de oralidade.

Também foi um dos maiores contistas do País, ganhando inúmeros e importantes prêmios, dentre eles Jabuti, Goethe e Luís de Camões. A mescla entre fatos históricos e ficção é outra característica da pena de Rubem, além da linguagem crua e sem rodeios.

Entre as principais obras, estão “A Coleira do Cão”, “Lúcia McCartney”, “O Caso Morel”, “Feliz Ano Novo”, “A Grande Arte” e “Agosto”. Também escreveu roteiros para filmes, muitos deles premiados.

Repercussão

Em solo cearense, vários nomes ligados à literatura lamentaram a morte do escritor. Presidente da Academia Cearense de Letras, Angela Gutiérrez destaca que Rubem tinha um espírito crítico aguçado e distinto talento.

“Ele contribuiu de diferentes modos para a literatura brasileira. Sem dúvida, pela renovação e engrandecimento do romance policial, e coragem de não temer assuntos, por mais violentos ou até obscenos que fossem ou parecessem. Na verdade, acredito que, por trás do modo, às vezes, duro de escrever, fervia sua ardente crítica à sociedade, que considerava desigual e injusta”, afirma.

O contista Marco Severo, por sua vez, considera que bebe da fonte do escritor pelo olhar de desassossego e inquietação com o que está ao redor. Segundo ele, “Rubem escrevia sobre a miséria humana, muitas vezes da perspectiva dos desvalidos  – e é triste perceber que, de lá pra cá, a realidade brasileira descrita no conto 'Feliz Ano Novo', um dos que destaco da vasta obra dele, ainda persiste. Esse conto marca, assim, por ser uma cicatriz profunda das nossas mazelas".

E complementa: "Ele chegou na literatura brasileira para remarcar esse espaço de investigação humana através do espaço urbano. E é aí onde ele está e estará situado para sempre. Com sua morte, perdemos o escritor pioneiro na arte da grande literatura que tem por base a crítica social dos tempos contemporâneos, observando os detalhes todos, sem deixar escapar nada. Dos moradores de favelas aos desajustados sociais, até chegar aos ricos e seus privilégios, ninguém ficava de fora de sua obra. Hoje inúmeros escritores fazem isso, inclusive eu, mas não há voz mais autêntica do que a do Rubem, que já faz muita falta. Felizmente, a obra fica e está aí para quem quiser descobri-lo".

Lembranças

Ana Miranda conta ter recebido a notícia do falecimento de Fonseca com muitas lágrimas, “mas com a sensação de que ele não morreu nem vai morrer nunca”. A premiada escritora cearense foi amiga de longa data de Rubem (desde 1974), e disse que, por esses dias mesmo, trocou palavras com ele.

“Quando eu morava no Rio, nós convivemos por mais ou menos 15 anos e nos víamos quase todos os dias. Era uma relação de muita riqueza, e eu aprendi muito, não somente sobre literatura, mas também sobre o que é ser escritor e o que é o mundo, a vida. Ele era uma figura extraordinária”.

Ana – que dedicou ao amigo seu romance “Boca do Inferno” e cita-o como inspiração para o título de “Dias & Dias” – conta que os dois dividiram muitas leituras, viagens e conversas. “Ele me corrigiu muito, em muitas coisas, e me ajudou bastante na minha autoestima, a acreditar em mim mesma, porque ele acreditava em mim. E eu fui muito elevada pelas palavras dele”.

Com voz emocionada, a autora deixa transparecer o sentimento de gratidão por tê-lo conhecido e convivido, de perto, com tão generoso e visionário artista.

“Se herdei algo dele? Uma grande dedicação ao trabalho, um desprezo elegante e simpático pela glória do mundo literário, o prazer de lidar com as palavras”.

Assuntos Relacionados