'É como se eu pudesse tê-la de novo por 3 minutos': músicas eternizam a presença de quem já se foi

Ouvir uma canção pode trazer à memória pessoas e momentos significativos

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: A cantora Aparecida Silvino recorda a presença da irmã, Izaíra Silvino, e do pai, Coronel Silvino, por meio da música
Foto: Thiago Gadelha

Poucas coisas estão tão marcadas em minha memória como o instante em que meu avô se transformou em canção. Na missa de sétimo dia dele, no já longínquo 2012, o presidente da celebração cantou aquela que se tornaria uma insígnia do meu querido velho Eliseu. “Naquela mesa tá faltando ele/ E a saudade dele tá doendo em mim”. 

Lembro do arrepio emocionado. Descansando no eterno, vovô portanto continua aqui, em voz e beleza de Nelson Gonçalves (1919-1998), toda vez que entoamos o canto nos momentos em que a falta é maior: “Agora resta uma mesa na sala/ E hoje ninguém mais fala do seu bandolim”.

De semelhante maneira, não foram poucas as vezes em que Fabiana Nascimento, 36, viu a mãe costurar até tarde acompanhada de uma música. Dona Lúcia chorava enquanto pedalava a máquina, as lágrimas caindo no compasso do som, o copo de café ao lado. Se a cena era recorrente na tristeza, também ganhava novas texturas na alegria. 

Ela era toda vibração ao ouvir melodias interpretadas por Clara Nunes (1942-1983), Luiz Gonzaga (1912-1989) e pela banda Scorpions. Dos forrós antigos aos bregas, do samba à MPB, tudo a comovia. Era coisa de mística, matéria musical.

Legenda: Fabiana Nascimento com a mãe, dona Lúcia: amor vivenciado por entre conversas e muitas músicas
Foto: Arquivo pessoal

Não à toa, quando a filha hoje liga o rádio ou reproduz uma dessas composições no celular, é a mãe quem está ao lado como sempre foi: alento e presença. Para Fabiana, dona Lúcia não partiu. “É como se eu pudesse tê-la de novo por aqueles três, cinco minutos da música e, para mim, isso é uma coisa muito grande”, situa a estudante cearense.

Dos trechos que carrega no semblante e fazem conexão direta com a ente querida, alguns se destacam pela força com que dona Lúcia os cantava. “O mar serenou quando ela pisou na areia/ Quem samba na beira do mar é sereia”, da já citada Clara Nunes, é um exemplo. “Tens a beleza da rosa/ Uma das flores mais formosas/ Tú és a flor do meu lindo jardim/ E eu a quero só para mim”, de José Ribeiro, também.

Legenda: Vários CDs ficaram como herança de dona Lúcia; as canções da cantora e compositora Clara Nunes (1942-1983) eram algumas das favoritas dela
Foto: Kid Júnior

“A gente escutava uma música e ela dizia que lembrava de algo. Foi nesse processo que nos tornamos melhores amigas. A figura da mãe é a daquela pessoa que é responsável por você, mas tinha outro alguém para além da minha mãe que eu amava tanto quanto. Era a mulher que se tornou minha amiga, e que me contava suas histórias de amor, sonhos, relacionamentos, problemas familiares, frustrações e erros, tudo por meio da música – enquanto ela costurava e eu estudava. Ali eu descobri um mundo que era também a minha mãe”, detalha Fabiana.

Legenda: Quando a mãe chorava junto à máquina de costura, radinho ao pé do ouvido, Fabiana Nascimento acredita que ela estava acarinhando o espírito
Foto: Kid Júnior

“Você veio pra ficar”

A estudante universitária integra uma linhagem de mulheres que encontraram, na dinâmica musical, um modo de reagir à vida e torná-la mais vida ainda. Aconteceu com dona Lúcia, e também com as tias, avós e bisavós de Fabiana, tornando-a igualmente parte desse time juntamente à irmã. Na época em que a fotografia era artigo de luxo, foram as canções as responsáveis por consolidar a presença dessas muitas mulheres no cotidiano, bem como um sem-fim de lembranças inescapáveis.

“Tem coisas que as fotografias não conseguiram registrar, mas a música conseguiu, uma vez que minha mãe lembrava de tudo o que não estava nas imagens. Acho que a magia da música é que ela, assim como a água, escorre. Se uma pedra se coloca no meio do caminho de uma memória, a canção cria outro caminho no entorno dessa pedra e continua a correr, encontra jeito. A música faz isso com as nossas memórias: ela encontra maneira de chegar”.
Fabiana Nascimento
Estudante universitária

Dona Lúcia, assim, vive de uma forma muito íntima na filha porque escutar aquilo que ela escutava é feito ter nas mãos um coração pulsante. Não está só na lembrança, mas também no corpo. “Músicas fazem parte dos nossos gestos, da nossa corporalidade. Não é só lembrar do momento em que aconteceu algo e, por meio de uma foto, saber como ela estava naquele dia. A música cria, dá cor”, dimensiona. 

Legenda: "A música faz isso com as nossas memórias: ela encontra maneira de chegar”: afirma Fabiana Nascimento ao olhar para o retrato da mãe
Foto: Kid Júnior

Também cura. Quando a mãe chorava junto à máquina de costura, por exemplo, radinho ao pé do ouvido, Fabiana acredita que ela estava acarinhando o espírito, tratando as feridas como se utilizasse na alma ervas medicinais. “O corpo nunca morre para a música. E foram as canções que conseguiram me conectar, ter esse outro olhar, encontrar com a minha mãe nesse lugar específico. É muito forte o que sinto e como eu a sinto hoje em mim por meio das canções. Ela não morreu; permanece viva, e essa é uma sensação muito boa. É como se eu conseguisse olhar nos olhos dela e ver ela sorrir de novo”.

“Deixemos de coisas, cuidemos da vida”

Certo é que todas as nossas pessoas deixam rastros musicais. Às vezes, são a própria música. Izaíra Silvino era assim. Falecida no último dia 14 de agosto, a maestrina – ex-regente do coral da Universidade Federal do Ceará (UFC) – é lembrada pela irmã entre toadas, cantilenas e cantigas. Aparecida Silvino elege duas canções como as que mais representam a alma de Izaíra. Aquelas que, delicadamente, a trazem para mais perto.

“A primeira delas é ‘Na hora do almoço’, do Belchior, que eu aprendi na minha infância com a Izaíra cantando, ela e os meus irmãos. Eles diziam, na época, que a irmã mais nova citada na canção, a ‘negra cabeleira’, era eu – o que, mais tarde, Belchior me confirmou quando ele gravou comigo, no meu primeiro disco”, recorda a cantora. 

Legenda: Izaíra (à esquerda) e Aparecida Silvino: irmãs unidas pela música e pelas boas lembranças junto a elas
Foto: Arquivo pessoal

A segunda canção já é mais próxima da despedida de Izaíra. É a música "Natureza do amor", composição de Pingo de Fortaleza e Henrique Beltrão, a qual Aparecida gravou num dos discos de Pingo. "Ela gostava muito dessa música – inclusive pediu para o Davi Silvino, filho dela, fazer um arranjo, e eles cantavam no coral. No velório dela, entendi que a letra representa exatamente ela: ‘Eu vim só pra ser do bem, só pra ser do amor, para ser da luz’”.

Legenda: “Cada vez que a gente canta, é como se tivéssemos vibrando a memória daquela pessoa dentro de nós", considera Aparecida Silvino
Foto: Thiago Gadelha

“Cada vez que a gente canta, é como se tivéssemos vibrando a memória daquela pessoa dentro de nós. O ser humano precisa entender, sentir e realizar a ideia de que nós somos seres espirituais vivendo uma experiência na matéria. O espírito é eterno, e a música faz com que essa eternidade chegue para nós não mais como a dor da separação, mas como a certeza de que está todo mundo vivo e interligado para sempre. Amém”.
Aparecida Silvino
Cantora

“A coisa mais bonita que me aconteceu”

Trilhando a mesma estrada dessas saudosas paisagens, também está Victor Iury, 26. Filho de Sônia Rejane – professora cuja idade seria hoje de 56 anos – ele traz à memória sobretudo as canções da dupla Bruno & Marrone. Músicas como “Bijuteria”, “Dormi na praça”, “Dama de Vermelho” e “Boate azul” eram algumas das mais queridas pela mãe.

“Esses cantores me trazem essa lembrança dela porque aqui em casa tínhamos uma verdadeira fã da dupla, daquelas de ter a discografia, de tentar ir a todo show, de limpar a casa ouvindo nas alturas com uma taça de vinho ao lado. De ter pôster colado dentro do guarda-roupa”, descreve. “Não tem jeito: onde quer que eu escute essas músicas, passa um filme da minha vida junto com minha mãe”.

Legenda: Sônia Rejane e o filho, Victor Iury: paixão por Bruno & Marrone foi geradora de muitos momentos e memórias
Foto: Arquivo pessoal

Em outro momento – este não tão agradável – outra canção que faz Victor lembrar de dona Sônia é “A tempestade vai passar”, de Padre Reginaldo Manzotti. Segundo ele, a peça musical foi reproduzida diariamente durante os três últimos anos de vida dela. “Eu sentia que era a música que ajudava ela a ter esperança e força para enfrentar o tratamento do câncer”, emociona-se.

O jovem confessa tentar não ouvir a canção, uma vez que, onde quer que ela toque, há um arrepio insatisfeito, incontrolável. Por outro lado, ainda que Bruno & Marrone não esteja na playlist do cotidiano, ele quase sempre os escuta quando está com amigos e amigas – seja na mesa do bar, na casa de alguém, confraternizando e, embora raramente, quando está limpando a casa, um costume que julga ter adquirido com a mãe. 

Legenda: "Ela foi a melhor mãe que eu poderia ter tido", afirma Victor Iury ao falar sobre dona Sônia Rejane
Foto: Arquivo pessoal

“Sabe aquela hora do rolê que já tá todo mundo um pouco alto querendo sofrer e toca Bruno & Marrone? Para as outras pessoas, é aquilo que a gente chama  de ‘ruedeira’, de sofrer por paixão. Para mim, não: é  uma hora que tudo se mistura porque sentir a falta dela é inevitável”, conta Victor, destacando os seguintes versos: “Tô numa ligação urbana, tem mais gente pra ligar” e “Eu tô louco pra te amar/ Vem correndo me encontrar/Alô, amor”, cantados por sua mamãe de forma alta, desafinada e totalmente apaixonada.

“Ao mesmo tempo, vêm também vários momentos que me trazem alegria, imagens específicas – como as pessoas nos confundindo com um casal porque só andávamos de mãos dadas; o exato lugar do pôster da dupla nas portas do meio do guarda-roupa; todas as vezes que eu e minha irmã, crianças ainda, chegávamos em casa depois de horas brincando na rua e tudo estava um brinco, com a mamãe sentada no chão cansada ao lado de uma taça de vinho e com o DVD deles no último volume”.
Victor Iury
Filho de Sônia Rejane

Apesar da saudade, ele sublinha que essas memórias são todas em tom de agradecimento. Fazem-lhe recordar a mulher que ficou viúva ainda muito jovem e fez de tudo para criar a filha e o filho da melhor forma possível. “Ela foi a melhor mãe que eu poderia ter tido. E, dependendo do lugar e com quem eu esteja, se tiver espaço pra contar essas histórias eu conto, e nunca num tom pesado”.

“Músicas deixam essas pessoas e lembranças vivas. Uma vez ouvi que uma pessoa só morre quando a última pessoa que conhece ela morre. Pra mim, a música exerce esse papel, manter vivas as memórias. Às vezes elas podem não ser tão boas, mas são importantes – nem que seja pra aprender”.

Qual a canção-pessoa que você vai colocar para tocar hoje?

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