Documentário expõe dores e anseios de jovens em preparação para o Enem

O documentário "Atravessa a Vida" foi gravado no período de véspera da realização do Enem em 2018. Porém, o nó na garganta que o filme pode provocar no espectador é estimulado pela tensa situação política e social do Brasil recém-ingresso em 2021. Dirigido por João Jardim ("Lixo Extraordinário", "Janela da Alma"), o longa-metragem estreia nos cinemas na próxima quinta (14). A prova do Enem neste ano acontece três dias depois, após ter sido adiada por conta da pandemia do coronavírus. 

O filme acompanha o processo de preparação de estudantes sergipanos para o Enem, como pretexto para tocar em uma questão ainda mais sensível: as tantas ausências na vida de um jovem de escola pública no País. O documentário é forte e mostra como a juventude luta - para além da própria competição e do imperativo de "ter que" passar no Enem - com diversos preconceitos sobre ser um adolescente carente de direitos básicos. 

Na tela, cerca de mil alunos estudam no Colégio Dr. Milton Dortas, em Simão Dias, cidade de 40 mil habitantes no interior de Sergipe. O desafio da maioria envolve lidar com o excesso de conteúdos cobrados para a prova do Enem e, em paralelo, conseguir ter equilíbrio emocional para almejar um futuro muito incerto, seja pela dificuldade em ingressar em uma faculdade, seja pela própria saudade dos colegas e da vida escolar que chega à reta final. 

Uma das marcas mais fortes do documentário é a maneira como os "olhos" dos estudantes falam por si. Enquanto professores versam sobre conteúdos históricos, políticos, filosóficos, alguns jovens debatem ideias e outros carregam um olhar repleto de sentimentos que precisam vir à tona, mas lhes faltam expressão. 

Todas as dificuldades, que parte do senso comum resolveu estigmatizar como bloqueios próprios da adolescência, aparecem no semblante dos adolescentes do documentário. É um filme em que o silêncio - mais que o discurso - revela vergonha, baixa autoestima, insegurança mas, ao mesmo tempo, ânsia de encontrar um lugar no mundo. 

Tensão

Dois momentos do filme tensionam a presença dos jovens em sala de aula como alguém que está muito além da possibilidade de discutir "friamente" os temas sugeridos pelos professores. O espectador vê o cansaço e a desilusão com a humanidade por parte de alguns adolescentes que opinam a favor da pena de morte. E, em outro momento, fica claro que essa mesma geração não aceita que a depressão que sente seja taxada de "frescura" pela família, ou por quem faça parte de suas rotinas. 

O documentário ainda sinaliza para as dispersões e à desconexão dos jovens com a sala de aula, como um desafio para o trabalho dos professores e diretores pedagógicos - sem que ninguém levante, em algum momento, que o próprio sistema de ensino está equivocado, e não a juventude. 

Alívio

Apesar de reconhecer uma realidade muito tensa (o que já é um trunfo razoável do filme), "Atravessa a Vida" também dá chance às sutilezas e gestos de humanidade que tornam a vida possível. É tocante o depoimento da garota Lívia Costa nesse sentido: ao contar sua história familiar, sem o apoio e o afeto do pai, ela admite como passar no Enem significa, ainda, perder o convívio com as amizades e o carinho compartilhado no dia a dia.

Daniela Silva, a diretora, precisa lidar dos percalços da obra de reforma da escola às angústias de alunos em conflitos com os pais dentro de casa. A educadora reconhece a origem de seus estudantes e alivia a cobrança como uma segunda mãe daqueles jovens. E a própria juventude acolhe professores dedicados à sala de aula, além de expor - com uma lucidez muito bem vinda - suas consciências atentas pela construção de uma sociedade menos autoritária e mais justa para eles e à posteridade.