Di Ferreira provoca outros sentidos do "tempo", em novo EP

Produzidas em meio às reflexões sobre suas raízes e o ritmo da vida, a cantora lança duas composições autorais e duas interpretações nas plataformas digitais

Escrito por Felipe Gurgel , felipe.gurgel@svm.com.br
Legenda: Di Ferreira não planejava gravar o novo trabalho em 2020, mas o confinamento estimulou a produção musical
Foto: Luis Ramon

Uma conversa com a cantora capixaba, radicada no Ceará, Di Ferreira, se desdobra pelos lugares do passado e da filosofia. Atenta a quem foi e a quem é possível ser, no agora, a artista completa 32 anos nesta quinta (28) e lança um novo trabalho, o EP "No tempo do tempo". Além do apelo do repertório de 4 faixas em si, produzido por ela e preenchido por duas composições próprias e duas versões (do medalhão Milton Nascimento e do conterrâneo David Ávila); falar sobre o disco, para Di, suscita uma série de reflexões - o que faz parte da escolha de uma mulher que escolheu conceber o tempo como algo subjetivo.

Um dos sinais desse olhar é que o EP simplesmente "aconteceu", segundo ela. E surgiu de um momento de pausa na carreira musical - ainda antes da pandemia do coronavírus. Com 11 anos de trajetória artística, Di tinha cansado de cantar covers e cumprir todo o circuito de eventos "que envolvem trabalhar nessa vertente do fazer musical", define. Ainda hoje (28), haverá uma live de lançamento do disco, às 20h, pelo canal dela no You Tube

"No tempo do tempo", co-produzido por Pepeu JC e com participação especial do músico Cláudio Mendes, sinaliza também para o caminho das mulheres como "técnicas" do fazer musical. Di lembra como botar a mão no celular e descobrir as possibilidades de um aplicativo, para gravar o disco, foi inspirada ainda pela "mão-de-obra" que ela teve com as lives que produziu durante a quarentena.

"Me fez voltar aos meus 18 anos, quando eu trabalhava numa churrascaria no Conjunto Esperança, o 'Banana Mania', e tinha que montar meu som, tocar, desmontar tudo, entender de cabos, violões, pedais, equalizar... Meu pai me ensinou e eu fazia", recorda, dos tempos que o público ainda não sabia tanto que Dillene era "Di".

Em entrevista ao Diário do Nordeste, Di Ferreira falou da escolha do novo repertório, da filosofia sobre o tempo, da produção do EP, dentre outros estímulos que lhe cercam. "Caminho nesse sentido, de dar tempo ao tempo, ao tempo das coisas e da natureza. Assim foi a construção desse trabalho, que começou quando eu permiti 'não fazer nada'. Tinha desligado meu Instagram, então consegui fluir sem me cobrar tanto por entregar alguma coisa", conta. 

Como foi a escolha desse repertório do EP? 

"Portal da cor" (Milton Nascimento) foi o grande ponto de partida do desabrochar desse trabalho. Até então, eu só tinha cantado coisas bem pontuais do Milton. Até já abri um show dele num aniversário de Fortaleza, mas no repertório mesmo, foram poucos contatos. E isso inclui uma pequena passagem pelo Coral da UFC, há muitos anos, em que trabalhamos um arranjo de 'Encontros e Despedidas'. Na quarentena, lembrando dessa música, em meio aos impactos emocionais devastadores de viver a pandemia, me deparei com a primeira música deste álbum, e era "Portal da cor". Foi arrebatador. Os meus escapes emocionais, nos últimos anos, vêm sendo muito ligados à natureza, às minhas raizes. Sou neta de agricultores, bisavó indigena, minha mãe está sempre com a mão na terra... Senti muito, naqueles meses enclausurada, por não estar em contato com o verde, a terra , o mar, gente.  

Foto: Luis Ramon

Quando ele começa com “bom dia, natureza”, eu estava ouvindo na janela de casa, lembro demais do choro que me veio e, até hoje, não paro de me emocionar com essa música. É uma especie de oração pra mim. As duas músicas de minha autoria, “Suave” e “Revolução do Amor Cósmico”, já existiam há uns anos, mas não estavam gravadas. Elas falam sobre amores em tempos lentos, apreciativos (em Suave); e sobre amor e orgasmos quase como uma viagem no tempo (em Revolução...).

A última, “Um pouco de chão", é uma canção do artista cearense, meu amigo, David Ávila, que me mandou a demo (e me apaixonei e fiz o arranjo). É um hino de vida pra mim. “Fluir com o coração e perceber: quem quer pouco, tudo tem”, soa como algo que eu realmente tenho praticado cada vez mais com minhas relações de consumo, desacelerando e apreciando o que realmente tem valor pra mim. Acredito nas pequenas revoluções e, pra mim, essa é uma delas.

Esse toque de consciência sobre "o tempo" das coisas, era algo pelo qual você já refletia antes da pandemia? Ou esse período aflorou a questão? 

Já refletia sobre o tema, mas, sem dúvida, a pandemia aflorou em níveis extremos. Desde criança, me perguntava “por que tenho que ir pra escola 5 dias e ficar só dois em casa?!” (risos) Hoje essa lógica toda de render durante o tempo comercial e descansar, dois dias na semana, e as coisas se manterem assim, durante a vida, não faz sentido pra mim! Sei que muita gente lida bem, e é feliz, mas realmente não é meu caso. 

Tive a sorte, durante esses 11 anos, de trabalhar na contramão por causa da forma que atuava na música. Os shows se concentravam nos fins de semana, e segunda-feira era meu domingo, trânsito em horas mais tranquilas. Ou seja, eu podia escolher melhor como utilizar meu tempo. Nos últimos 4 anos, eu passei por muitas mudanças de pensamento, imagem, canto, gosto musical. Comecei a ter quase um fascínio pelos ciclos de um modo geral. O ciclo do plantio até a colheita, o das marés, o menstrual. 
 

Além de cantar, você produziu o trabalho. Os instrumentos também foram gravados por ti?

Sim, a maior parte. O EP é uma média de 80% feito e gravado pelo celular (um iphone8), no aplicativo GarageBand. Apesar de limitado, em relação aos programas de música que rodam em computador, o app dá possibilidades de uma boa camada de sobreposição de instrumentos. Então deu pra gravar bastante coisa por ele mesmo, como os sintetizadores, a maioria dos baixos, beats, efeitos, resumindo, a parte mais eletrônica. 

Também toquei violão e trabalhei muitas nuances na voz, colocando efeitos eletrônicos e orgânicos. Fiz uns kazoos (instrumento que modifica um pouco o timbre da voz e dá um som que lembra os metais) de tampa de garrafa e embalagem de esparadrapo. Daí depois que deixei elas semiprontas, senti que queria preencher mais. Foi aí que o Cláudio colocou uma guitarra em Suave, e depois o Pepeu JC fez a co-produção.

Você faz parte de uma cena de mulheres musicistas com trabalho próprio, com a Lorena Nunes, Luiza Nobel... Mas diz que a presença feminina como instrumentista nesse cenário ainda é escassa. É uma percepção sobre o cenário autoral ou você percebe isso de um modo mais amplo na música feita em Fortaleza?

É muito massa ser contemporânea a essa galera toda. Lorena é minha amiga e isso é parte de conversas que já tivemos. Na música, de um modo geral, quanto mais se chega na parte técnica, menos mulheres você encontra. Desde instrumentos, técnica de som, produção musical, mixagem, masterizacao, roadie. São muitos saberes, e nem toda mulher que atue na música precisa entender de tudo isso, mas que seja por opção, e não por falta de representatividade. 

Foto: Luis Ramon

Passei anos sem pegar nisso e agora reaprendi, pela necessidade e que coisa boa, uma mulher poder se virar dessa forma! O que quero deixar muito evidente é que é possível gerar aos poucos essa representatividade em áreas mais técnicas. Tem outras manas em Fortaleza que estão ocupando esses espaços, como a Roberta Kaya, Ayla Lemos, Clarisse Aires, Naiara Lopes, Ilya e mais um bocado. Observá-las alimenta minha autoestima nesse sentido, de me sentir capaz de aprender sobre isso.

A vacinação da covid só começou, mas você já vislumbra algo sobre o show que faria no retorno aos eventos presenciais?

Não consigo imaginar. Na verdade, nem faço ideia se ele vai existir (risos). Ainda me encontro num estado “quarentênico”, meio que se confiando mesmo nesse tempo das coisas. Tenho vontade de gerar conteúdos sobre todo esse processo e conversar com essas manas e pessoas envolvidas no disco também, entender como ocupar os mais diversos lugares na música e no mundo, enquanto mulher. Quero seguir o que venho fazendo! Eu tô meio que confiando e só!

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