Dez anos após a morte de José Saramago, obra do escritor é referência para se pensar o presente

Nesta quinta-feira (18), completa-se uma década sem o único autor da língua portuguesa a ser agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. José Saramago, porém, segue como modelo de lucidez crítica e de engenho literário

Escrito por Dellano Rios , dellano.rios@svm.com.br
Imagem: Arte Lincoln Sousa
Legenda: Em sua obra, José Saramago refletiu sobre a condição humana e olhou para os problemas do instante e do local
Foto: Arte/Lincoln Sousa

Dez anos, exatos, se passaram desde a morte de José Saramago. O tempo não foi suficiente para fazê-lo distante. De lá para cá, três livros inéditos lhe garantiram uma boa média de produção literária. Constantes reimpressões e reedições atestam o interesse público por seus escritos. E que se destaque, até mesmo no Brasil, com tão escassos leitores, de A a Z nas classes que dividem oficial e extraoficialmente a sociedade.

O feito não é pequeno. Português, o escritor é um raro caso entre seus compatriotas contemporâneos realmente lidos por estes lados. Leve-se em conta que sua obra ainda impõe desafios. Destaquem-se a extensão dessa – são mais de 30, quase 40, os livros, e de gêneros diversos – e o estilo singular de sua escrita.

Uma história pessoal ilustra o incômodo da sua prosa: no fim dos anos 1990, quando “Jangada de Pedra” figurou entre os livros exigidos pelo Vestibular da Universidade Federal do Ceará, assustaram os candidatos com a escrita daquele português, com suas muitas vírgulas, a ausência de aspas e travessões e o hábito de fazer longas digressões filosóficas.

Imagem: Dellano Rios
Legenda: Acervo do antropólogo cearense Ismael Pordeus Jr. Ele estava em Portugal há dez anos e reuniu jornais e revistas com a cobertura da morte de José Saramago
Foto: Dellano Rios

A descrição, contudo, falsifica a escrita de Saramago, mais ou menos como quem diz da Monalisa um pedaço de pano coberto de tinta. De fato, é uma escrita original. Por vezes, parece que o escritor embaralhou a ordem das palavras, de forma que soem estranhas as linhas que descrevem coisas absolutamente banais.

É certo também que seus livros, em especial os romances, são carregados de ideias e reflexões, muito além daquela que, em geral, o autor escolheu para servir de referência para sua trama. Mas há nisso tudo, nestes livros estranhos e, inicialmente, difíceis e ameaçadores, algo de sedutor. Como as sereias que convidavam os marinheiros ao irresistível mergulho.

Glória

Não faltam a Saramago leitores, nem admiradores. Em 1998, converteu-se mesmo em uma espécie de herói das letras lusófonas, por ter sido, até então e até hoje, o único autor da língua portuguesa a ser agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. Ao contrário de muitos de seus pares no panteão de agraciados pela Academia Sueca, Saramago é um autor de prosa mais imbricada e abertamente político em suas críticas sociais. A herança dos tempos de marxismo se faz forte até o fim de sua escrita.

As últimas décadas de vida, certamente, foram mais generosas com ele. Era então um autor bem estabelecido, com público interessado em sua produção prolífica; sua obra era laureada; e vivia o amor com Pilar del Río, sua tradutora espanhola. Amor da vida tardio. Disse Saramago sobre ele: “se tivesse morrido aos 63 anos, antes de conhecer Pilar, morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora”. 

José e Pilar
Legenda: Cinco meses após sua morte, estreou “José e Pilar”, documentário de Miguel Gonçalves Mendes, no qual Saramago deixou-se filmar em seu cotidiano
Foto: Reprodução

Foi então quando seus livros, traduzidos mundo afora e religiosamente lançados no Brasil, feito raro para um português, foram amplificados pelo cinema. O brasileiro Fernando Meireles adaptou “Ensaio sobre a cegueira” como “Blindness”, de 2008, com elenco hollywodiano; e, cinco meses após sua morte, estreou “José e Pilar”, documentário de Miguel Gonçalves Mendes, no qual Saramago deixou-se filmar em seu cotidiano.

Imagens: Dellano Rios
Legenda: José Saramago (1922-2010): três livros inéditos lhe garantiram uma boa média de produção literária após o falecimento
Foto: Divulgação

Contra a corrente

José de Sousa Saramago viveu muito, de seu nascimento em 16 de novembro de 1922, na minúscula Azinhaga do Ribatejo (a freguesia conta, hoje, com 1,6 mil pessoas), até sua morte, nas ilhas Canárias. Contava então 87 anos naquele 18 de junho quando, por fim, sucumbiu da enfermidade que há algum tempo sofria. Escreveu bastante também, mesmo que sua trajetória seja atravessada por um hiato de 19 anos sem qualquer publicação. Depois de um romance de pouca repercussão e de outro engavetado, no fim dos anos 1940, o escritor só voltou a publicar em 1966. “Simplesmente, achava que não tinha nada para dizer”, explicou, em seu habitual costume desmistificador.

Saramago era um pensador raro. Sem se distanciar da criação literária, refletia sobre a condição humana, enredada em questões universais ao gênero; e olhava para os problemas do instante e do local. Crítico social contundente, não mitigava a força de seu veredicto. Talvez por isso, havia certo amargor entre ele e seus conterrâneos. 

Ao vê-lo morto, Portugal se reconciliou com o autor. A notícia inundou a imprensa do País, numa instantânea maré de reavaliações que, em regra, reconheciam suas contradições e grandeza. Exatamente como ele, crítico e duramente realista, gostaria.

“É assim a vida, vai dando com uma mão até o dia em que tira tudo com a outra”, escreveu em “Intermitências da morte”, o romance em que o mal irremediável, sem explicação, deixa de acontecer em um país não nomeado. Já dez anos se passaram, desde que a morte tirou tudo de Saramago. Por ora, nós que aqui ficamos, ainda temos sua literatura, intensa e luminosa como um farol, em dias sombrios.

E hoje, o que Saramago escreveria?

O ateu José Saramago não ficaria feliz com suposições de feitos seus no além-túmulo. O comichão do velho clichê move a pergunta: o que Saramago, um crítico social tão atento às mazelas do mundo, falaria sobre este insólito 2020?

Temos o que deixou escrito até aquele fatídico dia, 18 de junho de 2010, quando o autor morreu. Mas, para falar conosco, de tempos de pandemia, alucinações políticas e convulsão social, há o suficiente.

"Ensaio sobre a cegueira", de 1995, parte de uma epidemia que se abate sobre uma cidade. Cegos, os que dela foram acometidos são encerrados num hospital abandonado. O livro é um estudo, pelo viés negativo, sobre a ética, que se pauta na empatia. "Tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso", explicou-se. Visão pessimista, avesso de quem acredita que tudo mudará, para melhor; e alerta para o imperativo da nossa interdependência.

Outro livro que dialoga com o momento, subversivamente, é "Ensaio sobre a lucidez" (2004). Na trama, sem mobilização, 70% da população de um país vota em branco. Governo e classe política empreendem ações para descobrir a raiz do estranho protesto. Os métodos passam por "prisões, interrogatórios, terrorismo de Estado". O descrédito do cidadão se confronta com o autoritarismo escondido sobre vestes democráticas.

Ler esses ensaios de Saramago ajuda a lembrar que o mundo e seus problemas não nasceram ontem.

Para saber mais:

Fundação José Saramago

Sede em Lisboa - Portugal

Site:  https://www.josesaramago.org/

 

Agradecimentos:

Professor e jornalista Gilmar de Carvalho e antropólogo Ismael Pordeus Jr, que nos cedeu seu acervo de jornais e revistas com cobertura da morte de Saramago em Portugal (2010).