Da literatura às ancestralidades, livro apresenta coleção de ensaios para depois do fim

Com lançamento nesta quinta-feira (26), obra da escritora Carola Saavedra se vale de apontamentos e provocações sob a ótica de um “mundo desdobrável”

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Primeiro livro de ensaios de Carola Saavedra detém caligrafia que coreografa em meio aos escombros
Foto: Camilla Loreta

Carola Saavedra sente que o fim não é um acontecimento pontual. Longe de estabelecer uma linha de chegada, é, na verdade, algo capaz de se estender no tempo e no espaço. Talvez esse indefinido desfecho das coisas seja inclusive o que a escritora carrega consigo, motivo pelo qual recorda de um aforismo aimará, citado pela intelectual e ativista boliviana Silvia Rivera Cusicanqui: “É preciso olhar em direção ao passado para caminhar pelo presente e o futuro”.

Em “O mundo desdobrável: Ensaios para depois do fim”, esse já englobante espírito da sentença é ampliado a partir da mira de Saavedra em múltiplos horizontes, num pleno exercício de farejamento dos labirintos. O livro, mais novo título assinado pela literata brasileira nascida no Chile, ganha lançamento nesta quinta-feira (26), às 19h30, com transmissão pelo canal do YouTube da Livraria da Travessa.

Dividem o momento com a autora os escritores Itamar Vieira Junior e Tatiana Salem Levy, nomes que Carola admira muito e com quem vem dialogando há algum tempo. “Eu quis trazer para o lançamento essa ideia da conversa que permeia o livro, e assim ver o que surge a partir daí. Estou bem curiosa e animada”, festeja.

Legenda: "Tentei dar ao livro uma estrutura não-linear e de atravessamento, ou seja, que as ideias não se fechassem nas minhas palavras, mas explodissem", situa a escritora
Foto: Camilla Loreta

De fato, a proposta deste que é um dos mais recentes títulos publicados pela Relicário Edições é estabelecer uma longa troca com o público leitor. Apostando no hibridismo de um universo multifacetado – numa sintonia tão densa quanto leve – Carola vai da literatura ao cinema, passando pela pintura e por estudos indígenas, alcançando também a botânica, a ciência e a costura de confissões pessoais. Assuntos que habitam os interesses da escritora nos últimos dez anos. 

“Algo que aparece também na minha ficção, são duas faces da mesma moeda. A espinha dorsal, claro, é a literatura. A pergunta que permeia o livro é: o que pode a literatura num mundo em colapso?”, situa. Sem pretensão de aprofundar cada temática – já que, como destaca, “cada parágrafo daria um livro independente” – aqui o que importa é a partilha interessada em mergulhar no incerto de modo a convocar um olhar mais aprofundado sobre a realidade, fomentando a construção de um caleidoscópio próprio por parte de cada leitor.

“Tentei dar ao livro uma estrutura não-linear e de atravessamento, ou seja, que as ideias não se fechassem nas minhas palavras, mas explodissem, como pequenas centelhas”.
Carola Saavedra
Escritora

Compreensão das angústias

Integrando a coleção Nos.Outras, da Relicário Edições – formada também pelos títulos “Viver entre vírgulas”, de Sylvia Molloy; “Tornar-se Palestina”, de Lina Meruane; e “E por olhar tudo, nada via”, de Margo Glantz –  o livro surgiu a partir de um convite feito por Maíra Nassif, uma das curadoras e coordenadoras editoriais da coleção, junto a Mariana Sanchez.

Carola explica, contudo, que os ensaios presentes na obra já vinham sendo desenvolvidos por ela antes mesmo do chamado recebido, logo no início da pandemia de Covid-19. “O texto sobre o Dom Quixote remete à minha tese de doutorado; o primeiro ensaio, ‘A escrita do fim do mundo’, foi publicado no jornal Rascunho; por sua vez, o texto sobre literatura de mulheres estava bastante adiantado… Enfim, eu vinha fazendo anotações havia tempo”, diz.

Para a escritora, tomar essas linhas dispersas – organizando-as e dando corpo ao livro – foi uma forma de compreender melhor as próprias angústias relacionadas não apenas à pandemia, mas diante de todo um enevoado panorama que, há tempos, já acenava inclemente.

Legenda: Carola explica que os ensaios presentes na obra já vinham sendo desenvolvidos por ela antes mesmo do convite recebido pela Relicário Edições
Foto: Andrea Marques

A maneira como orquestra essa sinfonia de dizeres encontra, na ótica de um mundo desdobrável e, portanto, sustentado pela impossibilidade do enrijecimento, um profundo impulso poético, o que otimiza uma desautomatização do olhar e maior abertura para o cotidiano e as relações, calcada pelo diálogo. 

Repare como, em certo momento, ela proclama: “Como toda a arte que valha, ela não nos oferece respostas, mas nos faz as perguntas que nós mesmos não soubemos (ou não quisemos) formular”.

“Para os mapuche o diálogo é um gênero literário, é o que diz o poeta Elicura Chihuailaf”, contextualiza Carola. “Isso sempre me chamou muito a atenção. O diálogo tem uma estrutura não linear que me interessa muito. Em geral, não temos um roteiro prévio quando conversamos, as ideias vão surgindo a partir da interação com o outro. Vamos sendo atravessados por suas palavras e pelo que é nosso, e volta transfigurado”.

Encarando essa forma de adquirir conhecimento como um bom caminho, Saavedra reforça a importância de um diálogo verdadeiro, no contrafluxo dos onipresentes monólogos, quando as pessoas estão tão desesperadas para falar que só ouvem a si mesmas. “Precisamos pensar juntos, conversar, nos entender, coexistir, porque só assim seremos capazes de encontrar uma saída para esta situação. Pensar outros mundos possíveis é uma tarefa coletiva”.

Caligrafia enquanto coreografia

São pungentes os transbordamentos propostos por Saavedra neste que é seu primeiro livro de ensaios. As linhas apontam sobretudo para perguntas e provocações. Como que diante de nós, em dicção livre, a autora tece impressões como: “Para Kopenawa, nós matamos árvores com o intuito de gravar ali o que nossa memória inepta não é capaz de lembrar”. 

Mais à frente, brada como um urro: “É na literatura que se pode desconstruir o pensamento binário que permeia toda a nossa cultura, o pensamento do isto ou aquilo, se é homem ou mulher, hétero ou homossexual, bom ou mau, sujeito ou objeto, bandido ou mocinho, deus ou o diabo, o céu ou o inferno, a salvação ou o apocalipse. Contra um pensamento que apaga todas as demais possibilidades do espectro e, não só isso, que fossiliza o sujeito num tempo único e devastador”.

Legenda: Com o livro, Saavedra reforça a importância de um diálogo verdadeiro, no contrafluxo dos onipresentes monólogos
Foto: Camilla Loreta

Quando questionada sobre uma sentença presente no texto “A leitora ideal” – na qual afirma que há algo que se infiltra na vida e na ficção, uma voz que nos fala, à nossa revelia –  Saavedra une as inquietações estendidas por todo o livro ao situar onde reside a urgência de uma escuta atenta para que nossas manifestações íntimas possam, de fato, alicerçar novos olhares e presenças acerca de nós mesmos e dos outros.

“Essa pergunta é muito interessante. No fundo você me pergunta como lidar com esse sujeito do inconsciente. Acho que em primeiro lugar, compreendendo e aceitando que há, sim, uma instância que fala em nós à nossa revelia; em segundo lugar, aprender a ler”, considera.

“Não me refiro a ler o alfabeto, mas a interpretar o que as palavras estão nos dizendo, as nossas palavras e as dos outros. Precisamos urgentemente aprender a ler, e não só palavras. Ler uma floresta que morre ou queima, ler os animais, ler o vento e o rio. E também ler a nós mesmos, como queremos viver, para onde vai o nosso desejo. Nesse sentido, a literatura é a grande oportunidade, porque ela nos tira da nossa individualidade e nos joga em direção ao outro, nos tira das nossas certezas e nos joga em direção ao mistério”.
Carola Saavedra
Escritora

Tendo que repensar a própria forma de escrever durante o cenário pandêmico – bem como os assuntos que lhe interessavam e até mesmo suas (im)possibilidades – ela diz que não é fácil lidar com a morte porque a morte não existe, no sentido em que essa instância não pode ser colocada em palavras. O que podemos, segundo Carola, é nos aproximar dela; mas seu núcleo, o real da morte, permanece sempre um enigma. 

Escrever, nesse movimento, é uma maneira de chegar perto dessa incógnita, tentando dar-lhe um corpo, fazer um luto. “E isso nos ajuda a lidar com a angústia. Colocar palavras no medo é uma forma de seguir em frente de forma mais verdadeira, mais corajosa. Resolve tudo? Não. Mas é muito melhor do que não saber. O que não tem palavras adquire a força de um fantasma, e pode nos assombrar uma vida inteira”.

Sob posse de uma caligrafia que coreografa em meio aos escombros, promovendo a todo momento outras dinâmicas com a palavra, Saavedra deve lançar, ainda neste ano, um livro de poemas. Além disso, também interessam a ela as “instalações” que incluem texto, imagem e áudio, como a que foi publicada na revista Pessoa, e os próprios “poemas caminhados”, série na qual vem trabalhando desde o ano passado.

Todas as iniciativas parecem convergir para uma das ideias mais interessantes que “O mundo desdobrável” apresenta: a de permatexto, esse texto em que os diversos gêneros convivem e se retroalimentam, formando, como as plantas, um sistema autossustentável. A dúvida que pode pairar é: pôr a audiência em contato com esse conceito alimenta a necessidade de que nos tornemos uma espécie de permahumanos?

“Seria o ideal, não? Abrir mão da dicotomia ‘humanidade e natureza’ em prol de uma permaexistência, na qual o outro (animais, vegetais, montanhas, rios, pessoas) não fossem vistos como objetos a serem explorados, escravizados, mas como parte de um sistema mais amplo do qual todos fazemos parte e que precisa ser respeitado. Se não formos capazes de coexistir, não seremos capazes de sobreviver neste planeta, e isso exige uma reorganização pessoal e coletiva”, conclui.


Serviço
Lançamento do livro “O mundo desdobrável: Ensaios para depois do fim”, de Carola Saavedra
Nesta quinta-feira (26), às 19h30, no canal do YouTube da Livraria da Travessa, mediante bate-papo entre a autora da obra e os escritores Itamar Vieira Junior e Tatiana Salem Levy


O mundo desdobrável: Ensaios para depois do fim
Carola Saavedra

Relicário Edições
2021, 216 páginas
R$48

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