Cria da favela e filho das Quadras, Preto Zezé lança novo livro sobre vivências pessoais e coletivas

Empresário e ativista cearense conta a história de si e de muitos em “Preto Zezé - Da Quadras para o mundo”, enfocando em temáticas como invisibilidade, protagonismo e luta

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@verdesmares.com.br
Legenda: Após "Selva de Pedra: A Fortaleza Noiada" (2014), Preto Zezé retorna com vivências
Foto: Foto: Natinho Rodrigues

Se as salas de aula do Colégio Estadual Joaquim Albano, no bairro Dionísio Torres, falassem, recordariam do abismo. Entre preparar o trabalho para apresentar à turma e efetivamente mostrar o conteúdo, uma cratera se abria no chão. Os olhos dos colegas como que se tornavam dedos em riste, e tudo remetia a constrangimento. Pavor. "Era doloroso", Preto Zezé lembra bem. "As pessoas até hoje não acreditam quando eu conto isso".

De fato, é difícil imaginar que alguém com fala tão articulada e presença indisfarçável - pelo tamanho, voz e altivez - pudesse se retrair diante de um público. Mas ainda era infância para Zezé. Os tempos eram de descobertas e paulatina desconstrução, fatores que, anos depois, mudariam completamente o panorama do homem, hoje segura referência na luta pela busca de igualdade e visibilidade para comunidades pobres de Fortaleza, do Brasil e do mundo.

Uma trajetória de permanente avanço e luta que, a partir desta quarta-feira (3), marca presença no papel de forma a deixar entrever temáticas urgentes nas pautas de todo dia, a exemplo de desigualdade social, racismo, memória, entre tantas outras. O mosaico, plural e extenso, é evidenciado nas páginas de "Preto Zezé - Das Quadras para o mundo", com lançamento às 18h, na Livraria Cultura. Na ocasião, um bate-papo entre convidados e plateia aumentarão o raio de alcance do livro, definido pelo próprio autor como uma obra de vivências.

"Quando estava escrevendo o material, percebi algo: era impossível ter uma coisa que era apenas o Zezé. Na verdade, a escolha pelo título foi exatamente porque não é só de mim que falo", explica.

"Ao relatar sobre a Comunidade das Quadras, na Aldeota, de onde vim, lembro das atividades que fazíamos para dar visibilidade positiva para o nosso lugar, para sair em outros cadernos de jornal que não fosse o policial; ou de toda uma reflexão sobre a dinâmica da cidade a partir daquilo que vivíamos ali. Poder fazer esse diálogo e trânsito entre diferentes mundos dentro das próprias e muitas Fortalezas, é muito legal".

Com a obra em mãos - prefaceada por Celso Athayde, CEO do empreendimento Favela Holding - fica explícito o desbravar inquieto do protagonista. "Das Quadras para o mundo", enquanto um conto sobre experiências interpessoais, mune-se de instrumentos para isso: são fotografias de arquivo e relatos narrados em primeira pessoa, demarcando vitórias, dificuldades e percursos.

Veredas

O fio da meada para iniciar o itinerário no livro segue o fluxo natural da vida: a partir da mãe. Dona Fátima, na obra, é sinalizada como "nosso ponto de partida". É por meio do contexto que a trouxe à Capital, após sair do interior cearense, que ficamos sabendo, pela ótica de um Zezé ainda jovem, da necessidade de se afirmar enquanto gente num cenário que encobre e oprime.

"Dona Fátima, que aprendia nos ensinando e ensinava aprendendo, passou por momentos complicados. Uma verdadeira prova de fogo da qual ela conseguiu sair vencedora e nos mostrar por que, por mais tempo que passe, seremos suas eternas crianças, guiadas por sua sabedoria de vida, seu doutorado em sobrevivência", escreve.

Daí para ele se autodefinir como "cria da favela, filho das Quadras" foram passos. Crescia em voraz atenção ao entorno. E o autor compreende isso ao recontar, com riqueza de detalhes, processos como a formação das antigas lideranças da comunidade; o período das pichações, gangues e bailes funk; e do próprio surgimento da Central Única das Favelas (Cufa), entidade que, em instância global, tem sede em Nova York e da qual hoje ele é presidente internacional, levando-o a estar na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), nos EUA, para debater sobre o tema.

"A obra acabou sendo a sistematização de uma porrada de coisas que a gente vive, mas que nunca paramos para pensar e registrar", destaca, a exemplo do processo pelo qual passou para chegar ao nome que hoje exibe. "A Cufa tem como objetivo o fim das favelas. Mas até que elas não acabem, nós vamos trabalhar exaustivamente para que se tornem lugares melhores para se viver. Quando começa a se pautar positivamente esses locais em outras praças, o próprio pessoal que vive nelas diz, 'ah, eu quero ser chamado assim também'. Como preto, como gente da favela".

Legenda: Preto Zezé: cria da favela, filho das Quadras
Foto: Foto: Natinho Rodrigues

E completa: "É algo pedagógico. Na medida que você começa um movimento, de trazer o debate para o próprio nome, de maneira que possamos nos entender, conversar e desconstruir estereótipos, daqui a pouco começaremos a falar 'preto' como nome próprio, e não mais como cor. Quando chegarmos a esse momento, acho que conseguimos dar um grande passo".

Inspiração

Muitas dessas questões culminaram na atuação política de Zezé ("não tinha como viver com a cidade virada de costas para nós", justifica), cujo diálogo com o poder público sempre primou pela busca de novos horizontes para a população em situação de vulnerabilidade. Para ele, inclusive, o momento para lançar o material não poderia ser outro. Em tempos de tentativa de silenciamento e sufoco, sair da inércia é imperativo.

"Acho que é muito necessário nesse período no Brasil uma agenda da sociedade. Não algo de um partido, parlamentar ou Governo, mas que tenha o perfil das pessoas. Independentemente da gestão, há que se pautar essa agenda; do contrário, vamos perder de vista o fato de que a mudança tem que partir de nós", avalia.

Não sem motivo, acredita que o livro, além de traçar histórias, também pode conferir um bem-vindo fôlego de inspiração a tantos e tantas em situações-limite. "É importante sobretudo lançar onde vou fazer agora, na Livraria Cultura, localizada em um dos cruzamentos mais ricos da cidade, onde as pessoas que decidem a vida de Fortaleza vão lá comprar seus livros, passar a tarde, tomar um café. Desta vez, vai ter o livro de alguém do outro lado da cidade entre as outras obras, cara. Isso é um primeiro elemento, trazer outro olhar sobre o território de alguém que vem de longe dali".

O segundo culmina em eco: reacende fagulha para que iniciemos movimento de combate à ordinária raiz em que o Brasil e Fortaleza foram erguidos, sedimentada na desigualdade. "Não tem como a cidade dar certo sem resolver o problema do Bom Jardim, Messejana, Canindezinho, Siqueira. Não tem como admitirmos que, aqui, tenhamos bairros com indicadores de desenvolvimento humano feito os da Suécia e, quatro ruas abaixo, de países mais pobres da África".

Ao recontar seus passos, Preto Zezé parte, então, dos abismos que sempre o acompanharam para construir pontes. Teias maciças com vistas a driblar frestas. Alcançar a vista principal.

Serviço
Lançamento do livro “Preto Zezé - Das Quadras para o mundo”, seguido de bate-papo e sessão de autógrafos
Nesta quarta-feira (3), às 18h, na Livraria Cultura (Avenida Dom Luís, 1010, Aldeota). Gratuito e aberto ao público. Contato: (85) 4008-0800

Preto Zezé - das Quadras para o mundo 
Preto Zezé 
Cene Editora 
2019, 192 páginas 
R$ 39,90

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