Com 'Planeta Fome', Elza Soares canta as dores de um Brasil adoecido

Unindo gerações de compositores, sonoridades do underground e perspectivas de um País mais justo, cantora se mostra cada vez mais prolífica e amplia o legado como uma das vozes mais importantes da cultura brasileira

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@diariodonordeste.com.br
Legenda: Figurino de Alexandre Linhares remete aos alfinetes usados no show de Ary Barroso, nos anos 1950
Foto: Marcos Hermes

A resposta de Elza Soares à chacota de Ary Barroso (1903-1964) é um dos episódios mais representativos na trajetória desta brasileira. Corria 1953. Viúva (casou obrigada pelo pai aos 13 anos), pobre e tinha seis crianças para cuidar. Já havia perdido um filho para a desnutrição e o recém-nascido carecia de remédios. Naquele instante, participar do programa de calouros do criador de "Aquarela do Brasil" era uma oportunidade de tentar amenizar a iminente tragédia.

Sem roupas para ir até o auditório da Rádio Tupi improvisou saia e blusa pegues da mãe. Enrolou as vestes no corpo que não pesava mais do que 40 quilos e prendeu os panos sobressalentes com uma porção de alfinetes. Foi recebida às gargalhadas pela plateia. Ary perguntou: "De que planeta você veio, minha filha?". Mais risadas. "Vim do mesmo planeta que o senhor", devolveu. Questionada pelo apresentador qual seria o 'planeta' foi ainda mais valente: "Do 'planeta fome', seu Ary".

Recobrar um evento tão doloroso do passado é uma das estratégias de Elza Soares para decodificar e refletir o Brasil de 2019. "Planeta Fome", lançado na última sexta-feira (13) é outra generosa oferenda de uma das artistas vivas mais importantes deste País. O 34º disco da carioca pulsa e devassa as aflições do presente. Da construção do repertório à escolha dos parceiros convidados é um trabalho imerso e influenciado pelas demandas da sociedade atual. Contundente, o papo de Elza é reto.

"'Planeta Fome' é a fome que temos de vida. Fome de saúde, fome de respeito, fome de amor. Este País está precisando, está com tanta fome que eu nem sei, cara. Que até então eu pensava que fome era apenas de comida. Não. Tem muita fome por aí", demarca a voz poderosa e firme em entrevista ao telefone.

Foto: Marcos Hermes

Um ano e poucos meses depois do disco "Deus é Mulher", a cantora aprofunda o desejo de cantar e ser ouvida. Estabelece outro marco na trajetória tão marcada por tragédias e superações. Perto de completar 90 anos (a idade precisa pouco interessa na discussão), pavimenta uma façanha pouco comum a artistas dessa faixa etária. Elza pede passagem. Faminta para ser ainda mais relevante, luz na escuridão. É firme ao estapear a cara de um Brasil inerte e envolto na agressividade. Lançar discos, unir diferentes gerações e levantar o punho contra as injustiças são formas de aplacar essa fome.

A cantora desenvolve as elogiadas escolhas sonoras fincadas desde "Do Cóccix Até O Pescoço" (2002). Racismo, violência e luta por igualdade passaram a gravitar com mais força na mensagem construída pela artista. Rap, pop, rock, samba, eletrônico. Guitarra, percussão e loops. "A Mulher do Fim do Mundo" (2015) foi outro talho severo na mesmice musical solidificada na MPB.

A veterana avalia que o momento na carreira é dos mais saudáveis. Liberdade de gritar e falar é inestimável. Cantar a agonia dos desvalidos e toda uma indignação mostra que os alfinetes ainda estão fincados na roupa, incomodam a carne. Escolheu minuciosamente o repertório de "Planeta Fome". Selecionou os temas e o que fazia sentido nesse tempo de hoje. Gravou 12 faixas, entre inéditas e regravações, incluindo uma composição própria, "Menino". É a primeira vez que grava uma música só sua.

O álbum foi registrado no Estúdio Tambor (Rio de Janeiro) e produzido por Rafael Ramos (Pitty, Los Hermanos, Cachorro Grande). As participações incluem BaianaSystem, Orkestra Rumpilezz, Virginia Rodrigues, BNegão, Pedro Loureiro e Rafael Mike. "Eu gosto de representar estas vozes que não têm vez. Abro um espaço e vamos embora", assevera.

O otimismo por dias melhores é uma mensagem constante nas entrelinhas da entrevista. Amor é um recurso de sobrevivência e lição a ser compartilhada. O banquete de referências e ritmos entregue por Elza em "Planeta Fome" tem a ideia de nos pegar pela mão e nos soprar sabedoria. Ouvir uma mulher negra, idosa, artista e tão consciente das escolhas no presente é um privilégio.

Comportamento geral

"Precisava gritar mais, falar um pouco mais. E a música te dá esse direito, te dá essa liberdade de cantar e viver o que você sente. É isso que me dá orgulho também", reflete acerca dos temas explorados no lançamento. No território das composições "Planeta Fome" risca passado e futuro para desalinhar um Brasil por vezes utópico. Após "Libertação" (Russo Passapusso), o recado de "Menino" é provocativo: "Venha cá, menino. Não faça isso não. Sei que é muito triste não ter casa, não ter pão. Não te leva a nada, destruir o seu irmão. Você representa o futuro da nação", a voz solitária de Elza emociona.

Foto: Marcos Hermes

"Brasis" e "Blá blá blá" são inflamáveis e deságuam na releitura reggae de "Comportamento Geral", de Gonzaguinha (1945-1991). O reencontro com o compositor, de quem Elza gravou "O Gato", em 1972, repete em "Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória". Duas letras cortantes e assustadoramente relevantes para enfrentar a postura bovina do brasileiro no espectro político. Outra pérola nesse sentido é "Não recomendado", impactante cria de Caio Prado.

No conjunto de inéditas, "Não tá mais de graça" (Rafael Mike) dialoga com a letra de "A carne" (Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti) presente em "Do cóccix até o pescoço". Os versos atualizam a urgência pretendida por Elza: "A carne mais barata do mercado não tá mais de graça. Não tem bala perdida, tem seu nome, é bala autografada".

"Planeta Fome" estreia dia 29 de setembro, no Palco Sunset do Rock in Rio. A promessa é de percorrer o País, levar a mensagem. Punk e corajosa, Elza segue insaciável. Da jovem que enfrentou Ary Barroso para a senhora dos Anos 2000 coexiste um altruísmo quase materno. Adverte que o "Planeta" está doente, mas há esperança. "Presta atenção. O Brasil está febril, vamos dar remédio que passa. Esse remédio é na mão do povo. Nas mãos do povo. Se o povo quiser acaba com essa febre logo. Vamos acabar com essa febre antes que vire pneumonia, tá bom minha gente? Beijo. Amo vocês, até breve".

Planeta Fome
Elza Soares
Deck
2019, 12 faixas

Duelo entre mensagem e música

Uma das características mais evidentes de "Planeta Fome" é a mudança dos produtores envolvidos na recente escalada artística protagonizada por Elza Soares. Sai a equipe paulistana guiada por Guilherme Kastrup (sob a direção artística de Romulo Fróes), que desenvolveu os impactantes "A mulher do fim do mundo" (2015) e "Deus é mulher" (2018) e entra em cena Rafael Ramos, figura forte da gravadora Deck.

O desafio de Ramos é costurar a força contida na mensagem da cantora com os arranjos e releituras de canções já estabelecidas na memória do brasileiro. Nesse sentido, "Planeta Fome" soa até mais solar e pop, o que pouco significa ser superficial. Guitarras e arranjos de cordas dividem espaço com batidas que remetem ao soul, rap e afro beat. "Blá, Blá, Blá", por exemplo envereda por samples e acordes da cena hardcore carioca dos anos 1990. A regravação "Comportamento Geral" perde a pegada quase fúnebre da versão original para adentrar um reggae experimental.

Algumas escolhas ficam pelo caminho e soam desinteressantes. É o caso do clima "remixe" usado em "País do Sonho" e a camada de batidas e efeitos desnecessários em "Virei o Jogo". Independentemente do produtor envolvido, a voz de Elza Soares, sozinha, já é um milagre.

Assuntos Relacionados