Coluna Ana Miranda: "Sereia no copo d'água", um texto sobre Nina Rizzi e as mulheres junto à poeta

Publicados nesse domingo (29), escritos dimensionam ofício de Nina junto a outras mulheres, durante laboratório de escrita criativa no Piauí

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(Atualizado às 09:40, em 30 de Setembro de 2019)

Esta imagem fabulosa, de uma sereia num copo d'água, é o nome de um livro de Nina Rizzi. Além de uma moça de selvagem beleza, Nina é uma poeta inquietante, translúcida, convulsiva, noturna, convertida em pássaro. Ela acha a poesia feminina, ela nem diz o poema, mas: a poema. E tem livros de poesia bonitos como seus cabelos e seus olhos: tambores para n'zinga, A Duração do Deserto, geografia dos ossos, quando vieres ver um banzo cor de fogo...

Gosto dessa rebeldia de gênero, e de dizer a Sol, o Lua, a homem, a sonho, o alma, a menino, o janela, o flor, usar a palavra como questão. Mas tudo no mundo é um pouco feminino e um pouco masculino. Algumas línguas, como o inglês e o holandês, mesmo ignoram o gênero. Nina trata disso, de certa forma, em seus poemas.

Legenda: Escritora Ana Miranda é colunista do Diário do Nordeste
Foto: Foto: Theo van de Sande.

Ontem recebi dela uma daquelas cartas de antigamente, que eram demoradas, cerimoniosas, bem explicadas. Nina escreve sempre cartas longas e manda junto alguma coisa, como um pedaço de sabão usado. E eu me lembrei das cartas que escrevia quando menina, quando adolescente, e mandava junto uma folha seca ou uma flor colhida no chão, caída dos galhos do flamboyant que eu tinha plantado ao lado da nossa casa e agora nem existe mais, cortaram. Mandava um selo, uma semente alada, um ingresso de cinema, um desenho... Não são só as palavras que falam.

Nina conta que está no Piauí, depois de quase dez horas de viagem num ônibus gelado, sob o sol escaldante das estradas. E de noite, quase sem luz, debaixo de um lençol e quieta para não acordar os viajantes, ela ia lendo um livro que se chama Mar, um livro talvez esquisito, talvez grandioso, sortilégio. E ela sentia como se estivesse molhando os pés, diz a carta; nadava até o fundo, depois ia se afogando de mar, a intuir um caos posterior. A ler e reler as odes marítimas de um mar que não é realmente mar. Lia de trás para frente, de frente para trás, relia as páginas preferidas, e sentia medo de voltar para a areia do mundo verdadeiro. Estava pronta para a boca da morte. Lindíssima carta.

Legenda: Nina Rizzi é uma das mais importantes vozes da poesia no Ceará
Foto: Foto: JL Rosa

Ali no Piauí ela está se encontrando com 19 mulheres que querem escrever poemas. Devem ser belas essas mulheres. Cheias de dores, de alegrias, de graça. Quase todas se chamariam, imagino, Maria. Quase todas maduras, rugas pequenas em torno dos lábios, no canto dos olhos, como as minhas. Um coração como o meu, de mulher doce a quem me inclino. Mulheres que moram em lugares afastados, e sem intimidade com os livros. Elas falam de coisas do mundo das mulheres, leem palavras escritas por mulheres. Nina chama isso de "roda de bruxaria" e fica se perguntando, quem são elas? Por que vieram? O que têm para dizer? O que vão escrever? E, mais forte: o que elas vão transformar dentro da alma de Nina?

Decerto elas são a própria poesia. Decerto elas não leram muitos livros, mas podem nos ensinar a ler o mundo. Como os pescadores que saem nas jangadas e nunca leram um livro, uns nem sabem ler palavras, mas sobrevivem porque sabem ler o céu, as estrelas,

As correntes, as profundezas do mar, sabem ler os ventos e as distâncias. Elas devem saber ler as nuvens, as chuvas, os sabores, os sentimentos, os sonhos. Sabem ler tudo. E agora vão escrever as poemas de suas vidas.

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