Coletânea de textos literários aborda relação entre maternidade e isolamento social

Publicação das Edições Chão da Feira está disponível de forma gratuita para download; com cearenses no time, obra atravessa diversidade de abordagens para refletir sobre a temática

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: A poeta cearense Mika Andrade é uma das autoras da publicação
Foto: Camila Lima

Mika Andrade é mãe de Danillo, 6, e Clarice, 2. Nos primeiros meses da pandemia de Covid-19 em Fortaleza, era comum ela escutar os lamentos do primogênito, queixoso da súbita ausência dos amigos e parentes ao redor. Afinal, por que, de repente, não podiam mais se ver? A saudade brotou choro em ambos. A falta do mundo deixou a família triste.

Também alterou o cotidiano. Em maio, por exemplo, Mika parou de trabalhar com o esposo na lanchonete mantida por ele para ficar integralmente com os rebentos. Precisou redobrar os cuidados e, de alguma forma, igualmente tornar os dias os mais leves possíveis para a pequena dupla – sobretudo devido à escolha de deixá-los em casa, ainda que com o retorno presencial das aulas.

Muitos dos desafios vivenciados entre mãe e filhos nesse intrincado período são evidenciados no poema “os dias (não) passam sempre iguais”, de autoria de Mika. Nele, a escritora cearense sublinha: “como uma gata que acabou/ de parir suas crias, eu passo/ a língua em vossos olhos/ os dias não passam iguais/ mãe mãe mãe!/ quantos dias faltam?!/ para o quê, menino?/ os dias não passam iguais”.

“Foi uma criação rodeada de tristeza e insegurança”, confessa a poeta que, junto a seis outras mães literatas, integra “7 Mulheres - Maternidade e isolamento social”. A publicação digital é o número 116 da coleção Caderno de Leituras, disponibilizada gratuitamente no site da editora Chão da Feira, casa à frente da empreitada.

Lançada no dia 27 de outubro, a obra tem curadoria de Maria Carolina Fenati, arte da capa de Sylvia Amélia e projeto gráfico de Rita Davis. No miolo, relatos escritos diante de olhos infantis por meio de vários gêneros literários, fazendo da palavra um recurso para as genitoras exteriorizarem as intensidades que o confinamento compulsório potencializou.

Força vital

Mika Andrade conta que foi cansativo refletir e desenvolver algo sobre o isolamento a partir do lugar de mãe, exatamente porque o processo tornou a experiência de clausura ainda mais intensa. “Me manter pensando sobre todas as coisas absurdas que este ano de 2020 trouxe, e continua trazendo, têm devorado a minha força vital”, diz.

Legenda: No poema “os dias (não) passam sempre iguais”, Mika Andrade relata o cotidiano junto aos filhos e reflete sobre questões que a atravessam enquanto mãe
Foto: Camila Lima

Não sem motivo, afirma que seria impossível traduzir todas as sensações para o poema que criou. Logo, colocou nele o que mais lhe atormentava naquele momento de desenho dos versos. Entre os pontos, a reclamação constante de algumas pessoas sobre o tédio de estar isoladas e a melancolia constante do filho. 

“Também a demanda com as tarefas escolares e as reclamações insensíveis para com os professores por parte de alguns responsáveis. Além disso, o cansaço e a dor de ser mãe (não só o meu, mas o de outras mães) e as notícias terríveis sobre as mortes causadas por racismo, principalmente a de Miguel, que mexeu muito comigo”, explica, mencionando o caso do garoto Miguel Otávio, de cinco anos, morto em agosto deste ano ao cair de um prédio de luxo no Recife (PE) quando estava acompanhado da ex-patroa da mãe, a primeira-dama do município de Tamandaré, Sari Gaspar Corte Real.

“A maternidade é um evento que atravessa e transforma a vida da mulher de maneira irreversível. Abordar essa temática a partir do olhar de quem está inserida nela e tem essa experiência é abranger questões sobre rede de apoio; a responsabilidade do cuidado, educação e da socialização da criança; o que o Governo do Estado está fazendo para dar suporte às mães de crianças com deficiência; por que a  paternidade não é tão cobrada quanto a maternidade, entre outras reflexões”, enumera.

Cada uma à sua maneira, as outras mulheres integrantes da publicação caminham por muitas dessas questões levantadas pela poeta. Ana Freitas Reis, Brisa Marques, Fabiana Carneiro, Roberta Ferraz, Ursula Rösel e Nina Rizzi (feito Mika Andrade, também cearense) exploram uma diversidade de ângulos e possibilidades do narrar por meio de uma via una: dar fôlego ao que atravessa a si e à prole.

Diversidade

No posto de curadora da publicação, Maria Carolina Fenati explica que, por meio da vontade de escuta, convidou mulheres de diferentes históricos e escolhas de vida, tendo em comum a paixão pela escrita, para partilharem o testemunho quando neste contexto tão difícil. Segundo ela, é urgente envolver perspectivas sobre um tema silenciado pela maioria da sociedade. 

“É inacreditável que, depois de tantos meses de isolamento, o burburinho das crianças e a experiência de cuidar delas dentro do circuito doméstico sejam quase inaudíveis no espaço público. Assim, convidei muitas mães que admiro – várias delas não encontraram tempo/espaço para escrever, o que eu, também mãe, compreendo em absoluto. Restaram sete, com textos magníficos, e que foram reunidos com um título que traz uma discreta citação a um filme sobre outras mulheres inesquecíveis, o ‘7 Women’, do John Ford”, detalha.

A diversidade de narrativas é sentida ao longe, reflexo da pluralidade do recorte de Carolina. As autoras vêm de diferentes lugares e condições sociais, incluindo mulheres dos centros urbanos e de cidades menores; algumas com mais recursos financeiros e outras com menos; algumas envolvidas em uma dinâmica familiar tradicional, outras mães solos; brancas, negras. Mães.

“Esta variedade de partida aprofunda-se e torna-se mais complexa quando os textos buscam testemunhar a singularidade da experiência da maternidade, este mundo ao mesmo tempo íntimo, comum e tantas vezes tão solitário”, considera a curadora.

Legenda: Curadora dos textos da publicação, Maria Carolina Fenati é mãe de duas crianças e afirma ser urgente debater sobre um assunto tão silenciado pela maioria da sociedade
Foto: Arquivo pessoal

“Não sei se encontraria uma espinha dorsal do trabalho; talvez um bambu, ou seja, um eixo flexível. É a experiência da maternidade que verga a escrita dessas mulheres, é a isso que elas buscam responder, com um olho no mundo, outro nas palavras, e o coração com as crianças”.

Mãe de duas meninas – “muito vivas e fortes”, como descreve – Maria Carolina Fenati situa a casa onde vive com as pequenas como um microcosmo, de paredes rabiscadas e muitos afetos a saltarem por todos os lados. “Há muitos desafios, entre eles o de encontrar um lugar onde eu, como mulher, possa também me realizar. Porque é também disso que se trata a maternidade, quer dizer, o de poder ser uma mulher que cuida de si, ainda que esteja a todo o tempo cuidando também de outras”, contextualiza.

“O relato dessas mulheres me emocionou profundamente porque trata-se da maternidade também como reinvenção de si, o que é radicalizado neste momento de isolamento social. ‘O que fazer quando tudo arde?’ é um título de Lobo Antunes, e é também a sensação de criar crianças, de afirmar a possibilidade de futuro, diante do nosso presente comum. Digo isso e poderia dizer também que estou exausta, que tenho cuidado de crianças e da casa, trabalhado muito e dormido pouco”, completa.

Quanto ao desejo para o trabalho sob sua curadoria, é certeiro: que atinja o coração de mães, para que se sintam acolhidas e acompanhadas, e o dos homens, sejam eles pais ou não, numa tentativa de minar um pouco mais a estrutura social racista e machista na qual estamos entranhados.

“Talvez ninguém queira saber do sofrimento materno para tentar manter uma espécie de mito de origem individual, como se o próprio nascimento não fosse senão um momento de alegria e saúde. Não digo que não haja alegria e saúde – amo ser mãe e nada me trouxe mais realidade e alegria do que isso. Todavia, há sofrimento, solidão, injustiça, e tanto mais que resta silenciado, o que faz com que as mães sejam abandonadas na sua experiência e convidadas a representar os papéis que se espera delas. Ninguém olha para a mãe –  e que não haja dúvidas: enquanto não se olhar para ela, ninguém está olhando também para as crianças”, conclui Maria Carolina.

7 Mulheres - Maternidade e isolamento social
Várias autoras
Curadoria: Maria Carolina Fenati

Edições Chão da Feira
2020, 30 páginas
Download gratuito por meio do site da Editora Chão da Feira

Assuntos Relacionados