Coletânea com textos de mulheres cearenses sobre a pandemia é lançada nesta segunda-feira (1)

"Escritas em pandemia", sob organização de Glória Diógenes, Lara Denise Silva e Alice Dote, traz à superfície provocações e detalhes íntimos das autoras durante este turbulento momento

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Junto aos textos, haverá desenhos em diálogo com os escritos
Foto: Ilustração: Alice Dote

A palavra é força criadora e, como tal, detém o sublime poder de emergir cotidianos, vivências, memórias. É também encontro. Basta observar, por exemplo, o processo de leitura: verbo após verbo, sentença após sentença, o diálogo entre quem lê e quem escreve se estreita, germinando empatia, comunicação. União. 

Neste nebuloso instante de pandemia do novo coronavírus, esse mergulho entre linhas tem movido muitas pessoas – seja na forma de apreciação ou criação –, sedentas por atravessar o difícil contexto de forma com que saiam mais conscientes acerca do outro, do mundo e de si.

É nessa dinâmica que a coletânea “Escritas em pandemia” foi gestada e chega ao público nesta segunda-feira (1), às 20h, com lançamento por meio de transmissão ao vivo no perfil @escritasempandemia, no instagram

Legenda: A possibilidade de um encontro de multiplicidades dá a tônica do trabalho
Foto: Ilustração: Alice Dote

O projeto, de caráter independente, abraça uma interessante particularidade: reúne textos desenvolvidos por mulheres cearenses, e somente elas, num total de 24. Em cada produção, perfazem-se variadas maneiras de tecer a vida mesmo numa época tão atípica, trazendo à superfície provocações e detalhes íntimos.

“A ação surgiu porque eu sempre tive um gosto ativo pela escrita e produção de textos. E, nessa pandemia, passei a escrever bem mais. Acho que do vazio, do vácuo, a palavra surge com uma potência muito grande”, explica a socióloga e pesquisadora Glória Diógenes.

Ela, junto à também socióloga e pesquisadora Lara Denise Silva e à artista visual Alice Dote, são as organizadoras do material, cujas narrativas percorrem diferentes trajetórias sentimentais, geográficas e afetivas de autoras que não necessariamente se conhecem, mas compartilham a urgência do dizer narrado.

“Ao escrever e ler páginas no facebook, percebi que muitas mulheres, assim como eu, estavam escrevendo, e conversei com Alice e Lara para que criássemos um lugar dessa polifonia feminina”, complementa Glória. “Passamos grande parte do mês de maio organizando tudo isso, que chega ao público agora”.

A obra estará numa plataforma digital, com download gratuito. O link será divulgado hoje, no perfil da ação.

Coletividade

Por ser tecida a muitas mãos – mediante convite das organizadoras às participantes – a iniciativa, segundo Lara Denise Silva, tem a ver com a crença na força das coisas feitas em conjunto.

“É assumir um lado diante de uma polarização que nos coloca em disputa. Cada mulher da coletânea tem muita potência nas trajetórias pessoais. Na organização do projeto, pensamos: se a gente somar essas potências? Então, acredito que a relevância está em afirmar as possibilidades que abundam quando mulheres se juntam e resolvem agir”, situa.

Legenda: As ilustrações de Alice Dote para a obra não traduzem os textos, mas estabelecem diálogo com eles

Ela explica que o texto de sua autoria na publicação é um diário destes dias, misturando as sensações que eles têm provocado nela.

“Particularmente, tenho repensado a minha condição feminina de mãe, pesquisadora, escritora amadora e ativista das minhas bandeiras, pois as situações tem sido muito mais latentes. É como se elas ficassem mais evidentes, então me convocam a olhar para elas. Por exemplo: não posso mandar minha filha para a escola e, naquele tempo que ela está lá, concentrar-me nas minhas demandas", diz.

"Ao mesmo tempo, como continuar trabalhando e dando conta de mais afazeres domésticos? Estar na rua, sair, andar de bicicleta, sentar em mesa de bar sempre foram meus escapes. Como cuidar da minha saúde mental se estou impossibilitada de fazer isso?”, questiona.

Da parte de Alice Dote, também responsável por contribuir com a feitura de ilustrações para a coletânea, a impressão é de igual estranheza diante do que tempo em que vivemos. Ela conta que nunca havia desenhado tanto, e não por sobra de tempo ocioso, mas por precisar fazer alguma coisa quando neste panorama.

“O processo de ilustração dessa publicação foi como um mergulho, pois, concentrado em poucos dias, tornou-se não só uma maneira de lidar com isso, mas de deter o olhar em mim e no outro. Afinal, desenhar parece ser também uma maneira de ver e, à medida que os traços seguiam, mostravam-se indícios do que tenho pensado e sentido nesse momento, mesmo sem recurso à palavra”, destaca.

No fim das contas, o texto que assina na obra é um pequeno fragmento sobre os desenhos que a compõem, elaborados sem manter uma relação necessariamente representativa com os textos, mas conversando com eles.

“Falo sobre o processo de ilustração, o material utilizado, as imagens que me inspiraram. Acredito que qualquer certeza, nesse momento, é prepotente. Mas tenho impressão de que, em tempos como esse, as pessoas precisam produzir, arranjar maneiras de expressar sentimentos e de estar-junto (mesmo que inventando novas formas para isso). E a arte sempre foi uma maneira de lidarmos com os meandros da existência”.

Pluralidade

Não há um gênero literário específico seguido pelas escritoras. A intenção foi deixar com que ficassem livres para expressarem as inquietações da forma como achassem mais conveniente. “Foi muito bom ser desse jeito. Acho que isso deixou todas muito à vontade. É, assim, uma escrita autoral”, sublinha Glória Diógenes.

Legenda: Não há um gênero literário específico seguido pelas escritoras; a intenção foi deixar com que ficassem livres quanto a isso
Foto: Ilustração: Alice Dote

Na visão dela, a pandemia tem uma conotação, uma tessitura, de tempo suspenso e nos fez aproximar de nossas falas, narrativas, fantasmas, de muita coisa que se encontrava em estado de latência.

“Então, as escritas que surgem não chegam com a racionalidade do que vem para informar. Aparecem com interrupções, meio margeadas pela falta, a ausência do outro. Essa situação atípica suscita uma criação, vamos dizer assim, um pouco dissociada não só da cronologia, do tempo, mas também dessa racionalidade de que falo”, considera.

“A ‘Escritas em pandemia’, para mim, é um acontecimento, não é uma obra. Essa iniciativa afetou muita gente, criou linhas, teias de emaranhados vitais – que é o que traz Tim Ingold (antropólogo britânico). É como se ela propiciasse um encontro descentralizado, em linhas abertas. Não é o encontro de quem já se encontra, mas um encontro de multiplicidades”, completa.

Nesse movimento, Glória adianta que há um desejo de continuidade para o material, tendo em vista o fôlego da temática central e o desejo de muitas mulheres em somar com a iniciativa. É esperar para ver. Até lá, que ecoem essas inacabadas criações.

Serviço
Lançamento da coletânea “Escritas em pandemia”
Nesta segunda-feira (1), às 20h, por meio de transmissão ao vivo pelo perfil @escritasempandemia, no instagram

> SAIBA MAIS: Confira as autoras presentes na coletânea

Alice Dote, Day Araujo, Ediane Soares, Eleuda de Carvalho, Ethel de Paula, Fran Nascimento, Glória Diógenes, Irlys Barreira, Isadora Gurgel, Isadora Ravena, Ivna Girão, Juba (Lidiane Cordeiro), Lara Denise Silva, Lídia Valesca, Liduína Rocha, Marília Oliveira, Naiana Gomes, Nina Rizzi, Paula Yemanjá, Raisa Christina, Sablina Cavalcante, Sabrina Morais, Silvia Moura e Stella Girão

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