Brasileira integra projeto de escritora portuguesa que desenvolve folhetim na quarentena

Intitulada "Bode Inspiratório", iniciativa conta com a participação de 45 escritoras e escritores em isolamento social, dentre eles Nara Vidal, mineira vencedora do Prêmio Oceanos de Literatura 2019

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Nara Vidal, por enquanto, é a única brasileira no projeto; há possibilidade de haver mais

Na pandemia provocada pela Covid-19, não há bodes expiatórios. Um micro-organismo parou o mundo, mostrando ser mais poderoso que as grandes potências juntas. A percepção desse panorama fez a escritora e jornalista portuguesa Ana Margarida de Carvalho criar uma iniciativa, intitulada exatamente "Bode Inspiratório", de modo a ir ao encontro da questão. 

O projeto reúne 45 escritores e escritoras e o mesmo número de artistas plásticos. A ideia é que cada um faça progredir a narrativa que o anterior deixou em suspenso, como num folhetim à moda antiga. No deserto das ruas e avenidas do Velho Mundo, a possibilidade de infinitas criações.

"Pensamos no trocadilho entre os termos, criando um bode inspiratório: inspirar no sentido criativo e também no sentido respiratório, já que é nele, nomeadamente nos pulmões, que a doença incide", conta Ana Margarida, em entrevista ao Verso por e-mail. "Quando se está isolado, é muito bom fazer parte de um projeto coletivo, que é de todos".

Entre os nomes dos participantes, estão importantes vozes da literatura contemporânea, como Afonso Cruz, Inês Pedrosa, Luísa Costa Gomes, além da própria Ana. 

Há também uma brasileira, por enquanto a única, integrando o time: Nara Vidal, mineira radicada em Londres. Ela igualmente representou o Brasil, com exclusividade, no pódio do Prêmio Oceanos de Literatura 2019, com a obra "Sorte", publicada pela editora Moinhos.

Segundo Nara, também em diálogo com nossa equipe por e-mail, "a Ana Margarida de Carvalho pensou no meu nome. Daí, uma amiga, a escritora portuguesa Gabriela Ruivo Trindade, me fez o convite em nome da Ana. Fiquei muito feliz porque já acompanhava o folhetim. Mas, ao aceitar, fiquei preocupada porque me dei conta da lista de autores que participam do projeto. Só tem gente muito talentosa, e aí me bateu um medo. Mas quem não gosta de um desafio?".

Legenda: Ana Margarida de Carvalho é idealizadora da iniciativa e comemora alcance das produções
Foto: Foto: Adriana Morais

Alcance

A idealizadora da ação literária afirma que a iniciativa está tendo uma grande adesão, dentro e fora de Portugal, considerando os meios de comunicação locais e leitores em geral. "Trabalhamos em cima do arame, sem rede, sem revisão e edição, com pouco tempo para reflexão", detalha.

Tanto que o compromisso do grupo é de, diariamente, às 12 horas em ponto (considerando o horário de Portugal), ter um novo capítulo para apresentar aos leitores. As produções podem ser conferidas gratuitamente na internet, por meio das redes sociais, incluindo opção de assistir a vídeos de Edite Queiroz, escutar áudios de Paula Perfeito – numa parceria com o site Entre Vistas – e acompanhar leituras, numa colaboração com a RTPlay, canal nacional de TV online.

Os textos estão disponíveis em português, espanhol e francês. Muito em breve, também em inglês. "Penso que escrever para os outros ajuda a demolir paredes e quebrar este isolamento social ao qual estamos forçados, por razões de segurança. O mesmo se pode dizer em relação a fazer um projeto coletivo, em vez de individual. As ruas estão desertas, as livrarias fechadas, os eventos literários foram cancelados, as exposições adiadas, mas esta é uma maneira de dizer que nós continuamos aqui. É uma forma de resistência cultural", ressalta Ana Margarida de Carvalho.

Escrever em tempos difíceis

Nara Vidal – cujo texto deve sair no fim deste mês – destaca que o mais estimulante da dinâmica é a impossibilidade de fazer previsões quanto aos novos rumos da história e o gênero literário abraçado por quem for escrevê-la.

"Às vezes, autores dão uma guinada total na narrativa, mudando completamente o percurso. Acho isso uma exercício criativo brilhante", situa. "Percebo o projeto do Bode Inspiratório como uma bela ideia: é um trabalho vivo que muda diariamente de acordo com a percepção e sensibilidade particulares de cada escritor em determinado dia. Há textos pessimistas e há textos engraçados. Há dureza, mas existe leveza também. É isso que vai nos ajudar, essa capacidade de viver cada dia de cada vez com suas dores e glórias, tudo registrado por meio de uma narrativa de qualidade".

Quanto à rotina que passou a ter com a quarentena, a autora diz que mudou pouco, se comparada àquela que levava antes da pandemia. Nara descreve-se como uma pessoa bastante quieta, possuindo natural preferência por ficar em casa. Conforme conta, havia fins de semana em que saía apenas para ir à esquina comprar jornal.

"Mas tenho sentido uma saudade miserável do centro de Londres. Saudade de passear por Trafalgar Square, encarar o metrô imundo, ver o Big Ben que segue em reforma, o barulho da cidade, a cadência que ela tem, sempre tão viva. Porém, para apreciar a arte, é preciso fazer algum silêncio e eu já treino isso há muito tempo porque, francamente, nunca me interessei por nada de fato que não fosse literatura, artes plásticas, dança, teatro, cinema, música, História", enumera.

E complementa: "Talvez muita gente descubra um refúgio nas Artes agora que não há muita saída a não ser ver uma série, ler um livro, ouvir um disco. Mas, no meu caso, a Arte já vem me salvando há um tempo e não deixa de ser meu plano de aposentadoria. Quando estiver bem velha, estarei sempre lendo e escrevendo e, espero, sonhando".

Legenda: Além de falar sobre o projeto, Nara Vidal também dá detalhes da rotina na quarentena

Conexões

Quanto à possibilidade de ter outro nome brasileiro participando do Bode Inspiratório, Ana Margarida de Carvalho comenta: "Em princípio, a lista está fechada e Nara Vidal é a única brasileira. Mas há já uma fila de suplentes, escritores que nos manifestaram a vontade de entrar. Então, a qualquer momento, pode acontecer".

Ela ainda traz à superfície detalhes de como observa as conexões entre as literaturas brasileira e portuguesa, sobre que momento estão vivendo e as principais reflexões que evocam. 

"Penso que não existe bilateralidade. Os portugueses manifestam sempre muito mais interesse no que os escritores brasileiros escrevem, na música brasileira etc. O contrário não acontece. Além de Pessoa, Camões ou Saramago, poucos são os escritores contemporâneos conhecidos aí no Brasil. E música portuguesa, então, ainda menos", aponta.

No fim das contas, iniciativas como a do Bode Inspiratório chegam com fôlego suficiente para derrubar muros e ecoar possibilidades, driblando inércias, agigantando histórias.

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