Autores cearenses situam o valor da escrita durante a quarentena

Ao detalhar processos criativos na pandemia, elas e eles enfatizam a importância do registro em palavras num momento tão nebuloso

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Da esquerda para a direita, Marcos Paulo Campos, Vanessa Passos, Ma Njanu, Mika Andrade e Edvaldo Ramos falam sobre processos criativos

Centenária em dezembro deste ano, Clarice Lispector (1920-1977) certa vez indagou, na crônica intitulada “Ainda sem resposta” – publicada no Jornal do Brasil, em junho de 1968 – o que havia se tornado importante para ela durante a vida. Em pronta resposta, afirmou a si mesma: “O que quer que seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar”.

A possibilidade do registro em palavras, assim, não é apenas mero passatempo, como pode pensar quem não encara frontalmente o ofício. Escrever, se já era forma de sobrevivência, agora ganha um tom a mais de necessidade, tendo em vista ser exercício de mergulho em si como maneira de driblar o nebuloso panorama provocado pela pandemia do novo coronavírus.

Nesse movimento, o Verso conversou com cinco cearenses, veteranos e iniciantes na arte da escrita, para que pudessem sublinhar a relevância de se debruçar em palavras num momento atípico feito este, destacando as rotinas criativas que seguem, bem como qual conteúdo pauta as linhas sob sua assinatura. 

Da parte de Ma Njanu, por exemplo, os hábitos de desenvolvimento narrativo no papel reduziram bastante devido ao impacto suscitado por todo o difícil contexto. Contudo, a escritora, poeta e educadora popular continua criando poemas e pequenas cartas.

“Os diálogos com parentes e amigues à distância têm ressignificado minha escrita poética. Me vejo enviando versos subliminares entre conversas ou chamadas de vídeos, na esperança de que cheguem como uma espécie concreta de abraço”, detalha. 

Criada no Grande Bom Jardim, em Fortaleza, ela tem mais de uma década de estrada literária e considera a periferia como o local onde realiza a maior parte do ofício de educadora. Não à toa, idealizou e constrói o Clube de Leitoras e a Pretarau - Sarau das Pretas, coletiva de poetas e artistas negras, na qual integra e é produtora cultural. 

Legenda: Capa da zine "na boca do dragão da américa latina", de Ma Njanu

Toda essa bagagem traduz-se no mais novo trabalho de Ma, gestado durante a quarentena e lançado no dia 17 de abril por meio de live no instagram @euliricamarginal: a zine “na boca do dragão da américa latina”.

Nela, a escritora busca romper os silenciamentos e interdições vivenciados por mulheres negras e amefricanas – numa referência à intelectual mineira Lélia González (1935-1994) – e potencializa o espaço da autopublicação.

“A zine fala sobretudo a respeito dos diversos processos afetivos e terríveis de descolonização que, como diz Rômulo Silva, começa aqui dentro de nós. Trata de dizer que uma reinvenção é possível, e eu não disse do quê. Sinto que é cada leitore que irá responder isso. Ou não, né? Atribuir uma função pra poesia é esperar um barco que já afundou, independe principalmente de quem a escreveu”, situa.

“na boca do dragão da américa latina” está disponível na plataforma Issuu, com acesso gratuito para leitura e download, e também em áudio, no Spotify e outras plataformas digitais.

Legenda: Caderno com escritos de Ma Njanu: processos criativos em meio a tempos difíceis

Presença

Quem igualmente lançou novo material na quarentena foi a poeta Mika Andrade. A partir da feitura de “devoção”, zine de poemas eróticos, ela acredita que conseguiu estreitar mais ainda os laços e afetos no confinamento e deseja passar isso ao público.

“Pensei muito se deveria fazer essa publicação agora, mas por que não? Os poemas têm um teor erótico, mas também falam sobre presença ou a falta dela. Então, a zine tem o intuito de agradecer e celebrar pela existência de quem amamos”, explica.

Legenda: Capa de "devoção", zine de Mika Andrade com poemas eróticos

Mika também comenta que alguns poemas escritos sob sua pena neste instante refletem especificamente o cenário atual, tendo, inclusive, participado de uma e-zine organizada pela também poeta Isabella Mariano, intitulada “Poemas para acalmar corações isolados”.

“A literatura é política e no momento em que estamos ela se faz mais necessária, mais urgente. Além da pandemia, tem a situação política do país, o desgoverno em todos os setores. Escrever é um ato de rebeldia, um enfrentamento ao caos”.

Por produzir na seara independente de publicação, a poeta necessita de apoio. Quem puder colaborar financeiramente com um valor simbólico pelo PicPay @mikaelly.andrade4 ou transferência bancária, bem como compartilhar a iniciativa, Mika agradece.

“Agora, os editores e autores independentes estão optando pelo e-book como forma de dar continuidade ao mercado. Sinceramente, não sei dizer como vai estar no futuro”, complementa. 

Mesmo em meio a tantas indefinições feito essa, a escritora, professora, mediadora de leitura e Doutoranda em Literatura, Vanessa Passos, igualmente segue o fluxo da criação literária.

Abalada nos primeiros dias de pandemia devido ao caos político e social que se instaurou no País devido à doença, ela começou a desenvolver alguns textos curtos, entre crônicas e microcontos. Mas foi o desenvolvimento de um romance, iniciado apenas como exercício de escrita criativa, que a capturou por completo.

Legenda: A escritora Vanessa Passos desenvolveu um romance durante a quarentena, assim como textos curtos
Foto: Foto: Paulo Henrique Passos

“Como estava em casa com o trabalho no formato home office, decidi colocar em prática a rotina de escrever um capítulo por dia, fizesse chuva ou sol. Cheguei a escrever dois ou até três diariamente no começo, mas depois, à medida que fui me aproximando do fim da história, foi ficando mais difícil criar as cenas e dar destino às personagens”, detalha.

Em 8 de maio, às 10 da manhã, ela finalizou a primeira versão da narrativa, sobre três mulheres de gerações diferentes da mesma família. Agora, vem muito trabalho pela frente, já que a história está praticamente toda manuscrita e são necessárias várias revisões.

Para Vanessa – que também é idealizadora do projeto literário “Pintura das Palavras”, com foco em conteúdos sobre o leitura e escrita – o momento é de não parar.

Não à toa, além do romance, ela lançou e está disponibilizando gratuitamente, por tempo limitado, o e-book “100 exercícios de escrita para desbloquear e começar a escrever”.

“Eu realmente acredito que esse é um ato de resistência, de romper com o silêncio, como diz a escritora Chimamanda Ngozi Adichie. Poder experimentar escrever um outro tipo de texto que não escrevia foi muito prazeroso. Eu vibrava a cada nova frase”, comemora.

Possibilidades

Mesmo para os que ainda não possuem maior estrada na literatura, a arte de registrar palavras também tem sido um alento e necessidade. É o caso de Edvaldo Ramos.

Atualmente mantendo o canal “Biziborne”, no Youtube – em que desenvolve vídeos experimentais como alternativa de escrita e tenta aliar essa maneira com desenho e pintura no perfil @biziborne, no instagram – ele também está trabalhando num romance há alguns meses

Legenda: Edvaldo Ramos alia escrita com desenho e pintura no perfil no instagram

“A quarentena me permitiu ampliar o tempo de escrita e metas diárias. Trouxe também alguns problemas, pois o isolamento afeta demais a criatividade e o ânimo para as rotinas. É preciso estar constantemente alimentando sua capacidade de focar no objetivo de concluir a história com o mesmo cuidado”, observa.

“Experimentar coisas novas paralelamente à escrita do romance tem ajudado, como escrever outros gêneros como conto e poesia, por exemplo. Desenhar e manter meu diário também é importante.”

Com o hábito de escrever desde a adolescência, Edvaldo confessa que tem aproveitado a realidade de distanciamento social para aprender e exercitar mais a escrita e, na medida do possível, manter contato com pessoas que também realizam a prática.

Segundo ele, “mesmo quem não teve uma experiência anterior nessa área pode agora enxergar nela um meio de descoberta interior e uma forma diferente de contato com o exterior. E essa produção paradoxalmente coletiva e solitária com certeza será muito relevante na forma de pensarmos as relações no futuro”.

Confira, abaixo, produção de Edvaldo Ramos para o canal que mantém no YouTube:

A opinião estabelece sintonia com o sociólogo, professor universitário e escritor Marcos Paulo Campos. Para ele, o cotidiano interrompido e problemático das limitações à circulação social oferece muitas cenas e ícones para a imaginação.

“Neste momento, o texto ao qual mais me dedico se desdobra a partir de uma situação que vivi em um supermercado no mês de abril após o decreto estadual”.

Marcos ainda não havia tido quase nenhuma experiência em escrita literária anteriormente. Todos os textos outrora publicados por ele são de natureza acadêmica e, particularmente, sociológica.

Legenda: O sociólogo, professor universitário e escritor Marcos Paulo Campos em exercício de narração literária

A inclinação para o ofício com vertente narrativa veio durante a leitura de “A Suavidade do Vento”, de Cristóvão Tezza, e encontrou eco nos encontros do Clube de Leitura e Escrita Literária, coordenado por Vanessa Passos na Livraria Lamarca.

“Como iniciante, sei pouco sobre o mercado editorial. Espero que ele renasça mais uma vez. Percebo certo modelo de mercado (megalivrarias) em franco enfraquecimento, mas não acredito que a sociedade prescinda do ato de ler e da busca por boas histórias”, percebe.

“A escrita é salvífica. Em um momento em que tudo parece destruidor, construir um texto pode ser um bom caminho para não sucumbir ao peso desse tempo histórico”.

Serviço
- Zine "na boca do dragão da américa latina", de Ma Njanu
Disponível gratuitamente na plataforma Issuu, e, em áudio, no Spotify e outras plataformas digitais
- Zine "devoção", de Mika Andrade
Diretamente com a poeta, no perfil dela no instagram. Colaboração pelo PicPay @mikaelly.andrade4
- E-book "100 exercícios de escrita criativa para você desbloquear e começar a escrever", de Vanessa Passos
Disponível por tempo limitado neste link

> SAIBA MAIS: Crescentes produções

Para além das produções citadas, há outras desenvolvidas nesta quarentena que validam a potência da criação literária cearense. Algumas delas são a revista Coletiva, da Livro Livre Curió - Biblioteca Comunitária, disponibilizada para compra em formato digital; o e-book “Eu desvalorizei as paredes”, com poemas e textos em prosa poética de 12 autores locais; disponibilização de zines no site da Aliás Editora, voltada apenas para obras escritas por mulheres; e a convocatória de recebimento de textos para a coletânea “Fissura”, organizada pela artista visual Raisa Christina e a Editora nadifúndio, sobre desilusões amorosas.

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