Aos 90 anos, Raimundo do Queijo é patrimônio vivo do Centro de Fortaleza

O comerciante iniciou venda de queijos na década de 70 e até hoje segue no comando do espaço gastronômico

Escrito por
Ana Beatriz Caldas beatriz.caldas@svm.com.br

Foi quase por acaso que Raimundo Oliveira Araújo, o Raimundo do Queijo, hoje com 90 anos, tornou-se uma figura icônica da capital cearense. Se a loja de mesmo nome na Travessa Crato, no Centro, virou lugar cativo de quem gosta de boa comida e cerveja gelada e um dos pontos mais disputados no pré-Carnaval de Fortaleza, o início da trajetória de Raimundo no empreendedorismo partiu de uma ideia bem mais simples: vender carne para as refeições do dia a dia.

O ponto conhecido como Raimundo do Queijo foi criado em 1978, inicialmente como um frigorífico. A chegada ao Centro foi a segunda empreitada comercial do cearense na Capital após um primeiro ponto de venda de carnes na rua José de Alencar. Natural de Chaval, no extremo norte do Ceará, ele veio para Fortaleza em 1975, com o intuito de prover uma educação melhor para os três filhos, Adriano, Patrícia e Adrísio.

Em família: com Rodrigo (neto), Adriano, Adrísio e Patrícia (filhos)
Legenda: Em família: com Rodrigo (neto), Adriano, Adrísio e Patrícia (filhos)
Foto: Arquivo pessoal

Pouco tempo depois da mudança, instalou o frigorífico no Centro, mas percebeu que o negócio não era mais tão rentável. Decidiu fazer do queijo o novo protagonista da loja pela herança familiar: nascido em uma fazenda, Raimundo foi iniciado logo cedo na lida com os animais e na feitura do laticínio, atividade que aprendeu com a mãe. 

“Vendia leite, engordava boi pra vender, fazia tudo ali”, lembra. Além do trabalho com os pais, Raimundo ainda foi caminhoneiro por alguns anos. O resgate da experiência na fazenda foi responsável por uma nova etapa na carreira de empreendedor. Na Capital, decidiu por seguir no comércio.

Raimundo na loja principal, que gere com a família há mais de 30 anos
Legenda: Raimundo na loja principal, que gere com a família há mais de 30 anos
Foto: Fabiane de Paula

Sendo o queijo coalho um produto mais barato e muito popular, o sucesso da loja foi aumentando. Os fornecedores, conta, sempre foram todos de confiança, com os processos sendo averiguados um a um nas fábricas. Queijo bom, conta, é o que não quebra; por esse método decidia o que seria vendido na loja.

“Por isso é que até hoje eu estou aqui vendendo, porque eu só compro e só vendo o que é bom”, conta Raimundo, sentado na cadeira de balanço de onde observa o movimento diariamente na Travessa Crato. 

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De loja a espaço gastronômico e cultural

Queijo coalho é o principal item vendido, mas há ainda queijo manteiga, curado e quitutes
Legenda: Queijo coalho é o principal item vendido, mas há ainda queijo manteiga, curado e quitutes
Foto: Fabiane de Paula

Com pouco mais de uma década em atividade, os frequentadores assíduos aos fins de semana começaram a insistir que Raimundo vendesse, juntos aos queijos e doces, uma cervejinha para animar o domingo. Assim, aos poucos, a loja se transformou também em bar e espaço cultural – apesar do foco permanecer na venda de laticínios, doces e outras delícias regionais.

“Um bocado de amigo vinha pra cá dia de domingo e mandava comprar bebida. Eu ficava só até meio-dia, eles mandavam comprar bebida e ficavam bebendo aqui. Depois, o pessoal da Vila Romero, aqui próximo, vinha pra cá e falava ‘Raimundo, compra uma geladeira’”, lembra. Para atender os clientes e amigos, quebrou o balcão de cimento onde atendia a clientela e o substituiu por geladeiras com bebidas.

O incremento no cardápio pedia um ambiente animado. Por isso, aos domingos, dia oficial de festa no Raimundo do Queijo, o espaço passou a receber atrações musicais de diferentes gêneros, movimentando o Centro e se tornando importante ponto de lazer na Cidade. 

Espaço já recebeu diversos artistas cearenses
Legenda: Espaço já recebeu diversos artistas cearenses
Foto: Fabiane de Paula

“Todo domingo tem uma coisa diferente: é samba, é forró, é tudo. Aqui já veio muita gente tocar”, comenta Raimundo, orgulhoso. Essa parte fica a cargo da família, já que o empreendedor “não entende” dos processos de contratação. “Eles que conseguem as atrações pra mim”, ri.

Devido ao viés multicultural, em março de 2020, o Raimundo do Queijo foi reconhecido como Patrimônio Turístico de Fortaleza. Sem vaidade, Raimundo atribui esse e outros reconhecimentos públicos que recebeu ao longo dos anos – como o título de Cidadão de Fortaleza e homenagens na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) – ao trabalho cotidiano, feito com dedicação e baseado em produtos de qualidade. 

Reconhece, no entanto, que se tornou querido na comunidade, o que fez a diferença nos negócios e na sua imagem pública. “Arranjei boas amizades. Aqui, dia de domingo tem dez mesas pra cá e seis pra lá, e a gente faz a festa. Tem música, tem tudo”, celebra.

Público fiel mantém prosperidade do negócio

Raimundo do Queijo está localizado na Travessa Crato, no Centro
Legenda: Raimundo do Queijo está localizado na Travessa Crato, no Centro
Foto: Fabiane de Paula

Mesmo ocupando em um dia em que o Centro fica praticamente deserto, quem se aproxima do Raimundo do Queijo pela manhã logo percebe que o ponto tem algo de diferente: é possível parar e apreciar um bom queijo, a cerveja gelada e a música ali, na calçada, mesmo em meio às lojas fechadas. 

“Na semana o comércio é todo aberto, no domingo só fico eu aqui. Era meio esquisito, mas foi melhorando. E nunca teve briga, nunca teve assalto, graças a Deus. Eu estou muito bem aqui”, afirma.

Além do ponto celebrado no Centro, o Raimundo do Queijo também possui uma filial na Aldeota, com revenda dos produtos da loja matriz.

Parte do segredo, conta, é que Fortaleza o abraçou – o que fez com que até famosos percebessem a relevância do espaço. “Tem muita gente aqui, tem muito movimento. Até a Angélica já veio em um aniversário meu aqui”, conta, apontando para a foto tirada com a apresentadora da Globo em 2017. 

Registros com apresentadora estão expostos na loja
Legenda: Registros com apresentadora estão expostos na loja
Foto: Fabiane de Paula

A imagem está pendurada na parede da loja, junto a outras dezenas de memórias fotográficas com familiares, amigos e clientes fiéis – que ilustram bem que o sucesso do espaço consiste, principalmente, na relação de Raimundo com as pessoas que o frequentam. 

“Pra mim, o que ajudou mais são os amigos que a gente conseguiu e que vem pra cá. Um traz  um, o outro traz outro, e aquilo tudo”, conta. “Todo mundo vem pra cá, ninguém convida pra ninguém. Eu no meu aniversário aqui, pelo menos, não convidei – mas veio muita gente, até o prefeito”, brinca.

Raimundo recebe amigos e clientes na loja diariamente
Legenda: Até hoje, Raimundo recebe amigos e clientes na loja diariamente
Foto: Fabiane de Paula

A esperança do futuro do Raimundo do Queijo é ancorada pela certeza de que, apesar das dificuldades ao longo dos anos, o local sempre voltará a prosperar. “O comércio todo é assim mesmo: tem tempo que melhora, depois cai. Mas quando você tá dentro do comércio, você tem que esperar, não é todo tempo que é bom não”, ressalta. 

“É desse jeito, ninguém se desespera não. Aqui, o aluguel só falta botar [a gente] pra fora. Mas eu tenho essa esperança de viver até o fim da minha vida trabalhando aqui. Enquanto der pra eu pagar o aluguel, e meu comércio der, eu vivo aqui dentro, se Deus quiser”, afirma.

Além de queijos e bebidas, espaço vende castanhas e doces regionais
Legenda: Além de queijos e bebidas, espaço vende castanhas e doces regionais
Foto: Fabiane de Paula

Apesar de se manter ativo e estar diariamente no ponto comercial, Raimundo conta que deseja se afastar da gestão do negócio, mas mantê-lo perto de si. “Estou me saindo já, quero que os meninos [filhos] continuem. Já deu para aprender como eu faço”, comenta.

Mas se depender do empreendedor, a cadeira de balanço no canto da loja, que ocupa entre um cliente e outro, permanecerá ali, para que ele possa seguir a rotina que construiu com dedicação. “Vou ficar só sentado aqui olhando, observando”, ri. 

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