“Tudo que tem princípio, tem fim”, disse a Mestra da Cultura Maria de Lourdes Candido certa vez, ao contemplar uma peça de barro que se desfazia no chão. Na ocasião, ela falava à fotógrafa Patrícia Araujo e às jornalistas Germana Cabral e Cristina Pioner, durante a produção do livro "Mãos que fazem história" (2012), sobre ciclos que se encerram ou, porque não dizer, se transformam, assim como a vida. Ao se despedir deste mundo na madrugada desta quinta-feira (11), a artesã, que retratou diferentes personagens do Nordeste em suas obras, deixa contribuição que, na verdade, não cabe na finitude.
Há um ano, dona Maria de Lourdes lutava bravamente contra um câncer no ovário que a levou neste 11 de março, aos 82 anos recém completados em 11 de fevereiro. A informação foi confirmada por uma de suas filhas, Maria das Dores, que seguiu os passos da mãe na produção dos temas (peças tridimensionais sobre estruturas de barro para parede ou mesa).
“Ela tava em casa, tava doentinha, mas tava se tratando. Passou mal na madrugada, chamamos o Samu, mas infelizmente não deu pra ajudar”, conta a herdeira. Segundo Dorinha, como é carinhosamente chamada por amigos e familiares, a matriarca não estava se alimentando bem nos últimos dias, mas resistia a ir ao hospital, temendo a infecção pela Covid-19.
“Ela não falava, mas a gente sentia que ela tava preparando a gente, de algum jeito, nas atitudes, mas a gente não quer acreditar, né? Ela era muito sábia, muito guerreira, mas já estava desistindo. Vinha bem desanimada, triste, mas parecia que tava vendo a luz no fim do túnel”, conta a filha.
Para cumprir o desejo da mãe, a família deve realizar o enterro no Cemitério Parque Anjo da Guarda, em Juazeiro do Norte. “E vamos continuar o ofício que ela passou para filhos, noras e netos”, reforça Dorinha.
Artesanato familiar
Dona Maria de Lourdes transmitiu seu saber artesanal, inicialmente, para 11 filhos. Seis levaram adiante o ofício: Maria (in memorian), Maria do Socorro, Francisca, Cícera, Maria das Dores e o caçula Elias. Ao marido, José Américo Monteiro, coube comprar o barro e amassá-lo, além de realizar a queima.
Entre as muitas peças que fez, retratando o Nordeste e suas figuras emblemáticas, como Padre Cícero e Lampião, as panelinhas de barro têm um lugar especial, pois marcam a origem dessa produção artesanal com a qual a família moldou a própria trajetória desde o fim da década de 1960.
A jornalista Germana Cabral lembra o privilégio de conviver com dona Maria de Lourdes. Várias foram as vezes em que ela testemunhou a sabedoria da mestra em sua casa, no Centro de Juazeiro.
"A sala de visita abriga um santuário e as peças da família. Eu sempre saía feliz, levando pelo menos uma obra de arte com sua linda assinatura e, sobretudo, com os ensinamentos da matriarca dos Cândido, sobre o barro, e mais ainda sobre a vida", recorda.
"Enquanto empacotava a peça com bastante cuidado, íamos conversando. Eu mais ouvia do que falava. E assim demorava muito mais do que o previsto. Numa das últimas vezes, vi umas miniaturas de utensílios de cozinha de barro em meio aos temas. Perguntei quem era a autora. Ela, com a simplicidade que sempre lhe guiou, me respondeu: 'eu costumo, de vez em quando, fazer essas panelinhas para lembrar da minha origem, comecei a trabalhar com esses brinquedinhos de barro'", lembra a jornalista.
Cristina Pioner, que ao lado de Germana Cabral, contou a história da matriarca da família Cândido no livro "Mãos que fazem história", está certa de que a contribuição de dona Maria não finda.
"Tudo na vida, feito um sopro, desaparece, mas ela não desaparecerá jamais, pois deixa um legado de seguidores do seu oficio. Agora ela vai se encontrar com Maria, sua filha e artista, que partiu antes do combinado. Certamente, nesta nova morada, ao lado de Maria, elas irão moldar uma vida mais iluminada para quem permanece nesta Terra bruta", acredita.
Homenagens
Em nota, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, que a reconheceu como Mestra em 2004, reverenciou a sabedoria da artesã cujas obras integram hoje coleções públicas e particulares no Brasil, Estados Unidos e diversos países da Europa. "Esta guerreira lutou bravamente contra o câncer, nunca deixou de lado a delicadeza que permite encantar e alegrar a vida com cores, sensibilidade e cuidado", diz a homenagem.
A Central de Artesanato do Ceará (Ceart) solidarizou-se com amigos e familiares da Mestra e demonstrou o orgulho de ter contribuído para espalhar pelo mundo a obra de dona Maria de Lourdes.
A curadora Dodora Guimarães, em post no Facebook, também expressou sentimentos à família pela perda.
"Mãe e vó de uma orquestra afinada, M.L.C., como assinava nossa querida Mestra, nos deixa um mundo sensível, amigo e solidário, representado na sua obra construída e partilhada com a família, o mundo da arte e da cultura. Na nuvem de barro multicolorida que ela 'avoou' foi junto a enciclopédia do seu saber ancestral e a alegria que nos faltará hoje. Vamos olhar pra cima, por que certamente uma chuva de flores e sorrisos desaguará sobre a gente, emanada por nossa Mestra mãe e vó Maria de Lourdes Monteiro, nossa eterna M.L.C. Sua chuva colorida nos restituirá a alegria, “mãe”!"
Gerente do Sesc Juazeiro do Norte, Elane Lavor reforçou a grandeza da Mestra. "Dona Maria do Barro, assim a chamava, era super companheira e acolhedora, a serenidade em pessoa, e tem uma história de vida linda e inspiradora. Aqui no Sesc sempre muito parceira, gostava de participar de tudo - Mostra Sesc, exposições, feiras. Ela seria uma das contempladas com o Museu Orgânico Sesc - mas por conta da pandemia - o projeto teve que ser adiado. Hoje, sem dúvida alguma, a cultura chora sua partida", lamenta.