Marilene Sales, a madrinha do Samba de Fortaleza

Reconhecida nas noites da cidade, sambista exalta a participação das mulheres no samba, pede união da classe e afirma que todo sambista tem que passar um dia pela Mocinha, reduto do samba em Fortaleza

Poesia, inspiração e história, o samba tem disso e muito mais. No dia dedicado a esta expressão genuinamente brasileira, ouvimos a voz de quem se criou nos compassos desse som. Abram alas, quem fala é Marilene Sales, madrinha do samba em Fortaleza.  

Os anos de experiência falam alto e encantam. A conversa é por telefone, pois a Covid-19 anda em alta, ainda bem, positivou com sintomas leves. O entusiasmo da cantora parece afastar qualquer tempo ruim. “Sou uma sambista de muito orgulho", arremata. 

Devota e defensora do “samba raiz”, Marilene reflete sobre a importância da música em sua jornada. É sua família. Uma forma potente de se expressar com o mundo e o alimento da alma. Da criação nas rodas da Praia de Iracema aos palcos da cidade, cantar só trouxe coisa boa. 

Nesse sábado (3), Marilene e as estrelas do Samba Delas celebram a arte no Mercado dos Pinhões. Também participam da festa o grupo DFT, Luiz José e convidados. “Não existe aquele ditado? ‘É melhor amigo na praça do que dinheiro no caixa!’, por conta do samba, fiz amizades imensuráveis, só gente boa e bacana”, conta a sambista que começou aos 17 anos.  

Criada no samba  

O samba corre nas veias desta cearense. A família era de músicos. Lembra do tio e do irmão Rogério, este um pandeirista para ninguém botar defeitos. Nasceu e se criou na Praia de Iracema, ao lado do Bar da Mocinha. 

As primeiras lembranças do Carnaval resgatam imagens carinhosas. Os ensaios e blocos percorrendo ruas da vizinhança como a Dom Joaquim e a Gonçalves Ledo. "Por volta dos 16, 17 começamos a fazer um sambinha lá pela Mocinha. Todo sambista tem que passar pela Mocinha, marcar presença naquele reduto”, faz questão de avisar.  

Iraci de Souza Batista, a Dona Mocinha (1935-2010), é um ícone da cultura e do Carnaval em Fortaleza. À frente do Bar da Mocinha, construiu o patrimônio da casa enquanto celeiro da boemia e das rodas de samba. “Ela se foi, mas deixou o legado do samba tatuando no local”, defende a cantora.  

Assim, Marilene se aproximou do gênero em bares da Capital. Desde então, dedicou-se a cantar em rodas de samba, até mesmo profissionalmente. Ela resgata dois inesquecíveis momentos dessa estrada na música. 

Dona da voz 

Marilene detalha que nos anos 1970, chegou a cantar na TV Ceará. Tinha 16 anos quando foi ao palco do Canal 2 e se apresentou no programa “Show do Mercantil”, comandado pelo grande comunicador Augusto Borges (1932-2021). 

Na ocasião, interpretou sucesso de Alcione, “Não Chore Não (Pra Que Chorar)”. “Pra quê chorar? A vida é mesmo assim, não chore não. Bem melhor cantar. Espante o mal pra bem longe da ilusão”, canta do outro lado da linha.  

Outra oportunidade guardada na lembrança foi o primeiro show realizado em clube com bilheteria, com direito a venda de mesa. O ano é 1996 e o Oásis Clube (que existia na Av. Santos Dumont) foi o local da festa.   

“Contratei um espetáculo de humor para antes do show. Em seguida tivemos um desfile de baianas, todas as fantasias feitas pela Mocinha. Como ela era integrante da escola de samba da União da Ilha do Governador, ela guardava todas. Peguei todas as fantasias, coloquei as amigas para vestir (...) Foi muito lindo”.  

Em 1987, Marilene conheceu o músico Daniel. Ele, conhecido pelo domínio no violão sete cordas. Tornaram-se sócios e companheiros de vida. Tiveram uma filha, Maiara.  “E o samba comendo de esmola, sempre o samba”. A dupla formou o Grupo Nobreza. Gravaram os discos "Porta Retrato"(que reúne sambas de compositores do Ceará e Maranhão), "Grupo Nobreza Ao Vivo" e "Corpo Nu". 

Madrinha do Samba Delas 

“Me intitularam de ‘Madrinha do Samba’, acho que porque eu nunca tive problemas por eu ser mulher. Quando comecei, tínhamos aqui três mulheres no samba. Eu, Fatinha e Eulália Andrade, enumera.  

Três sambistas que desfilavam seus dons pela Mocinha. Daquela primeira geração, explica que só ela se mantém ativa no samba. “Particularmente, posso até falar por elas, nunca tivemos esse problema de por ser mulher não ter chance ou vez, sempre tivemos respeito e fomos respeitadas. “Eu estou no meio. Se não me quiserem, aí é que vou pra cima mesmo.  Foi samba, estou lá”, reafirma.   

O título de madrinha é uma conquista sem igual, avalia. Nesse momento, Marilene destaca a luminosa estrada da sambista e produtora cultural Michele Militão. Inspirada em nomes como Dona Mocinha e Pedrina de Deus (1951-2017), esta realizadora esteve à frente do projeto Samba Delas. 

A iniciativa surgiu em 2017, durante a comemoração do Dia Nacional do Samba. O grupo de samba de roda promove a cena musical de mulheres sambistas de Fortaleza. Divulga e apresenta as profissionais que trabalham com o ritmo. Michele nos deixou precocemente em 2020 e seu trabalho segue mantido por estas artistas.  

O samba não para 

Marilene assume que a inspiração principal é o dito “samba raiz”. Um marco em sua vasta lista de artistas é Beth Carvalho, a madrinha do samba nacional. "Hoje, meu repertório passeia por Cartola, Nelson Cavaquinho, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Leci Brandão, Paulinho da Viola”, segue apontando as preferências. 

Durante a entrevista, a filha manda uma advertência. Ao ver a mãe no telefone, Maiara supôs que ela estivesse marcando algum show. “Todo esse cuidado é pela minha saúde”, descreve a cantora que completa 60 anos em dezembro.    

A quantidade de shows não é como antes, detalha Marilene.  É preciso cuidar da voz. Em vez de um fim de semana inteiro pelos bares da cidade, segue hoje com uma data fixa aos sábados, no Fava's Bar e Petiscos.  

A cantora pede mais união da classe sambista, entende que a gestão municipal deveria se comprometer a criar um espaço na Praia de Iracema, capaz de agregar mais artistas do samba raiz. Nesse sábado, Marilene Sales promete comemorar o samba com a mesma dedicação e fascínio. “Sou uma sambista de muito orgulho", volta a contar orgulhosa.