Se antes da pandemia os festivais de música brasileiros eram, em sua maioria, realizados em capitais – principalmente no Sudeste –, a retomada econômica solidificou e descentralizou o formato. Em 2023, o Brasil teve um aumento de 54% no número de festivais em relação ao ano passado, conforme levantamento do Mapa dos Festivais, plataforma criada em 2019 para catalogar informações sobre as iniciativas.
Segundo Juliana Castro, responsável pelo relacionamento estratégico do Mapa e da Bananas Music, até o fim de 2022 muitas empresas ainda estavam concluindo propostas de 2020, comercializadas antes da pandemia, mas em 2023 “é tudo novo”. “Quem tinha que pagar, já pagou. Agora a gente está realmente vendo uma movimentação do mercado que não só consolida festivais que já existiam, mas aumenta o tamanho deles, a capacidade, o número de dias, além do surgimento de novos festivais”, destaca.
Até agora, a plataforma contabilizou mais de 260 festivais em todo o Brasil neste ano, mas o número pode chegar a pelo menos 300 até dezembro. Desses, pelo menos 42 festivais ocorrem pela primeira vez em 2023, um reflexo das possibilidades criadas para marcas que desejam somar aos eventos – afinal, ainda que o foco da maioria deles seja a arte, é fato que o mercado de marketing tem sido cada vez mais uma presença ativa nos line-ups.
Os dados são mapeados por uma equipe de sete pessoas, mas os produtores de eventos também podem cadastrar suas iniciativas no portal. “A gente evoluiu da ideia de ser um buscador para ser um lugar que concentra fãs de festivais altamente engajados, produzindo conteúdo para essa comunidade e fomentando o turismo de festivais no Brasil, que já é uma realidade”, afirma Juliana. O engajamento do público, aliás, também é uma demanda reprimida da crise. Depois dos anos difíceis causados pela pandemia de Covid-19, “as pessoas tendem a querer estar juntas, ter uma experiência de comunidade”, lembra Juliana.
Mas será que a tendência seguirá forte e viável nos próximos anos? Segundo a especialista, essa é uma pergunta que ainda não tem resposta. “Temos discutido como esse ecossistema vai se manter em equilíbrio de forma que todo mundo tenha uma boa experiência, não só os produtores, mas também o público. A minha visão é que, em algum momento, as pessoas vão ter que começar a escolher – isso vai dar aos festivais a oportunidade de fidelizar e aprimorar o perfil do seu público”.
A história dos festivais brasileiros
Um dos principais nomes que vêm à mente quando falamos em festivais é o de Woodstock, evento que ocorreu em 1969, em Bethel, uma pequena cidade do estado de Nova York (EUA), e mudou para sempre a história da música. Mas se lá fora o movimento da contracultura questionava os valores imperialistas e se posicionava contra a guerra, o Brasil tinha seus próprios motivos para usar a arte como arma de combate – e, com isso, criou sua própria definição de festival.
Por aqui, os festivais de Música Popular Brasileira (MPB) começaram a ocorrer nos anos 60, quando críticas à ditadura militar se faziam presentes com frequência nas músicas e apresentações. Os Festivais da Canção, realizados por emissoras como TV Excelsior e, posteriormente, TV Record, reuniram trabalhos originais de artistas que começavam a despontar, a exemplo de Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, Elis Regina, Paulinho da Viola, Geraldo Vandré, Maria Bethânia e muitos outros.
No Ceará, segundo Mona Gadelha, cantora, compositora e coordenadora do Laboratório de Música da Escola Porto Iracema das Artes, o movimento de festivais surgiu na década de 70. A artista cita como pioneiros o Primeiro Concerto de Rock (1974), realizado na antiga Escola Técnica Federal do Ceará (hoje Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará - IFCE) e a Massafeira Livre (1979), movimento cultural que reuniu mais de 400 artistas de diversas linguagens no Theatro José de Alencar (TJA), em Fortaleza.
“Eu participei do Primeiro Concerto aos 14 anos, uma menina, nem sabia o que estava fazendo ali”, brinca a cantora. Ainda nos anos 70, ocorreu o festival Costa do Sol (1977), na Praia da Tabuba. “Ali começou essa tendência de se realizar festivais em sítios, fazendas, seguindo o sonho de Woodstock”, explica Mona. Quando questionada sobre o novo formato de festivais, a artista afirma que a ideia de aglutinar, reunir e divulgar trabalhos que vão além do mainstream ainda é a prioridade de diversos festivais, especialmente os “que têm temáticas diferentes, voltados para gêneros musicais diferentes”.
Relevância e dificuldades da indústria cultural
Os festivais são essenciais para movimentar o cenário cultural nacional, acredita Mona Gadelha. “Eles são um produto da indústria criativa muito importante, porque movimentam a produção, a comunicação. O público adora, as pessoas viajam, se programam para isso. É importante especialmente para o artista que está em seus primeiros trabalhos, consolidando seu público, ter visibilidade tanto nos meios de comunicação quanto na ampliação desse público”.
No entanto, ressalta a artista, é preciso que sejam pensadas estratégias que possibilitem a existência não só dos grandes festivais, ligados a agências e ao mercado publicitário, mas também de festivais de menor porte, realizados por pequenas produtoras. Para ela, os festivais estão em um movimento crescente e têm contado com maior apoio público em 2023, com o retorno do Ministério da Cultura (Minc) e a retomada dos editais de música da Fundação Nacional de Artes (Funarte), mas “é muito importante saber se as produtoras de médio porte encaram isso, repensar as dificuldades”.
Outros aspectos relevantes são fazer com que “os festivais sejam mais acessíveis, em termos de valores” e extinguir o conceito de “artista local”.
A cantora e compositora ressalta que não basta chamar artistas diversos; é preciso que a tratativa seja de igual para igual, oferecendo bons horários e bons cachês. “Nós já chegamos numa maturidade musical de produção artística que não temos mais que ser tratados como o lado B, algo de menor importância, porque quem faz a cena da Cidade são os artistas que estão aqui trabalhando”.
Artistas que mais tocam em festivais
A principal característica dos festivais hoje é a reunião de diversos artistas e, muitas vezes, de gêneros musicais variados, em um só espaço. No pós-crise, o formato facilita a logística, já que, muitas vezes, o custo para trazer nomes de maior evidência no cenário musical é muito alto para produtoras de pequeno porte. Dessa forma, artistas de todo o País têm conseguido mostrar seus trabalhos a públicos de diversos estados, muitas vezes ocupando line-ups nas cinco regiões brasileiras.
O Diário do Nordeste fez um levantamento de 50 festivais que ocorreram ou ainda irão ocorrer neste ano, em 18 estados e no Distrito Federal, e mapeou os cinco artistas que mais aparecem na programação desses eventos. Confira o ranking:
1. Marina Sena
A cantora mineira, que assina os álbuns De Primeira (2021) e Vício Inerente (2023), é considerada um dos nomes mais procurados por organizadores de festivais, devido ao seu estrondoso sucesso no novo cenário do pop nacional. No ano passado, o Mapa dos Festivais apontou que Marina esteve em 15 festivais. Neste ano, ela estará em pelo menos 14 festivais até o fim do ano – um deles foi o Zepelim, realizado em Fortaleza no último mês de agosto.
2. BaianaSystem
O grupo, que mistura a potência da guitarra baiana e a batida do sound system jamaicano, é sempre destaque nos festivais pelas músicas animadas e os shows cheios de energia e mensagens políticas relevantes. Dos 50 festivais mapeados, o Baiana se apresentará em pelo menos 13 – dois deles com o show OlodumBaiana, parceria recente com a veterana Olodum. Na Capital, a banda também se apresentou recentemente no Zepelim.
3. Gilsons
Formado por José Gil, filho de Gilberto Gil, e por Francisco e João, netos do artista, o trio Gilsons têm realizado diversos shows pelo País com suas canções e chamam atenção pela popularidade - em entrevista ao g1, os artistas contaram que se surpreenderam ao perceber que o som da banda faz sucesso com pessoas de todas as idades, dos adolescentes aos mais velhos. Neste ano, há 11 shows do trio marcados em festivais. Em Fortaleza, o último também foi no Zepelim.
4. Tasha & Tracie
A dupla de rap formada pelas gêmeas Tasha e Tracie Okereke começou fazendo sucesso na moda, com a criação do blog Expensive $hit, que trazia conhecimento de moda e cultura para jovens de periferia. Em 2020, resolveram investir no talento musical e, desde então, o duo é um dos nomes mais proeminentes do hip hop nacional. Atualmente, as gêmeas ocupam os line-ups de 10 festivais brasileiros em 2023. Também se apresentaram, recentemente, no Zepelim.
5. Liniker
Depois de se lançar musicalmente com a banda Liniker e os Caramelows, a cantora, compositora e atriz Liniker, conhecida pela potência vocal e pelas canções poéticas que misturam R&B, MPB e soul, decidiu seguir carreira solo, presenteando os fãs com o álbum Índigo Borboleta Anil (2021), que lhe rendeu um prêmio no Grammy Latino. Neste ano, ela figura em dez festivais, sendo um deles resultado de uma parceria com o trio Gilsons. Já em show solo, ela desembarca em terras cearenses no próximo dia 10 de novembro, no Dragão do Mar.
Além de nomes já consagrados da nova música popular brasileira como os cinco acima, veteranos como Ney Matogrosso, Alceu Valença, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor também se destacam nos line-ups. Artistas cearenses como Mateus Fazeno Rock, Getúlio Abelha e Don L também ganharam destaque nos novos festivais.
Nomes repetidos?
Apesar do visível destaque de alguns artistas nesses eventos, para Juliana Castro, o argumento de que muitos line-ups têm sido repetitivos na curadoria não encontra fundamento, já que muitos desses eventos ocorrem em estados e até regiões distintas do País.
“São públicos diferentes, realidades diferentes. E a curadoria também tem esse papel: se um artista ganhou essa ‘etiqueta’ de que está se repetindo, mas nesse line-up tem outros artistas em ascensão, isso é uma coisa boa pro artista que está começando a carreira”, lembra a especialista. “E aquilo pode dizer muita coisa, inclusive que o artista está fazendo muito sucesso”, brinca.