Em ‘Spencer’, calvário da princesa Diana também é nosso

Longa se vale de acontecimentos reais para traçar retrato angustiante em tom de fábula

“Falem que viram um fantasma”, orienta a princesa Diana em uma das cenas de “Spencer”, na qual policiais a encontram num campo escuro. É talvez a sentença exata para compreendermos a proposta do longa dirigido pelo chileno Pablo Larraín – em cartaz nos cinemas brasileiros desde a última quinta-feira (27).

Anunciado nos primeiros segundos de exibição como “fábula de uma tragédia real”, o filme apresenta o calvário vivenciado por Lady Di durante o último Natal em que esteve casada com príncipe Charles. Instalada na Queen's Sandringham – casa de campo da Família Real britânica – a personagem atravessa momentos sufocantes em busca de qualquer ponto de iluminação no terreno movediço de costumes e aparências. Um espírito vagando.

Essa espiral de desconforto e inadequação é assumida até o fim pela película. Com a elegância característica, Larraín orquestra uma série de elementos responsáveis por fazer com que a audiência não apenas testemunhe a dor da protagonista, mas efetivamente a experimente com ela. Somos Diana se perdendo na estrada rumo à casa, renegando os vestidos milimetricamente etiquetados, as normas e convenções todas.

Somos também quando desobedecemos no íntimo das coisas, em sutis formas de dizer “não”. A forte amizade com uma criada, os constantes atrasos nos rituais diários e o olhar de despedida – como se sempre estivesse presente, mas ausente – hipnotizam a ponto de ofertar algo próximo a uma catarse reversa. “Spencer”, enfim, não é obra de grandes acontecimentos. Na densidade da atmosfera em colapso, lentas doses de angústia.

Nesse sentido, o roteiro de Steven Knight, a fotografia de Claire Mathon (“Retrato de uma jovem em chamas”) e a trilha sonora de Jonny Greenwood (“Ataque dos cães”) traduzem a sensação de asfixia pela qual passa a Princesa do Povo – ora com toques de ternura, ora de horror. Reparem em como há algo de delicado, mas também aterrorizante, na forma como a diegese é construída. Estamos num baile indigesto no qual o conto de fadas desmorona a cada segundo.

Performance entre extremos

Coube a Kristen Stewart compartimentar todas essas unidades numa performance que caminhasse entre extremos, carregando o pesar  de uma alma à procura de beleza e liberdade. Aclamada desde a primeira exibição do longa, na 78ª edição do Festival de Veneza, a atriz faz jus ao barulho, entregando a mais comovente atuação da carreira até aqui.

Ainda que, em um primeiro instante, a emulação do sotaque britânico (Stewart é americana) soe forçada ou sussurrada demais, logo fica claro o porquê da escalação da artista para o papel. Kristen reconstitui uma Diana vulnerável, mas destemida, noturna e solar. Alguém ao mesmo tempo transparente e impenetrável – atributos de alguns dos personagens vivenciados pela atriz, embora nenhum nesse nível de complexidade.

Beneficiada pela câmera colada aos próprios movimentos, ela logo magnetiza o público, que compra todas as estranhices do filme com satisfação. É fascinante ver a interação da intérprete com os atores mirins – representando os príncipes William e Harry –, bem como com a sempre primorosa Sally Hawkins. Os trejeitos de Diana estão lá, mas de forma muito própria, em consonância com a ideia do longa: imaginar o que teria acontecido, as entrelinhas do que não foi mostrado. O imaginado.

Ao término da sessão onde assisti ao filme, alguém comentou: “Será que isso aconteceu mesmo?” – dúvida suficiente para atestar a força dessa obra-sobrenome. E quem poderá dizer o que foi real ou fantasiado? Imaginemos junto.