BBB: como as estratégias de jogo mudaram ao longo das edições e o que isso diz sobre a sociedade

Ligadas ao Marketing e à Comunicação, pesquisadoras refletem sobre aspectos responsáveis por dar novos rumos à atração que reestreia na próxima segunda-feira (17)

A partir da próxima segunda-feira (17), o país vai mudar. Longe de parecer exagero, é o tipo de afirmação condizente com o impacto causado pelo Big Brother Brasil a cada edição. Serão novos participantes, polêmicas, romances, um novelo de emoções tão recorrente quanto imprevisível. Ao longo de 22 anos, o reality show soube alterar como poucos as estratégias de jogo – esbanjando longevidade e se tornando ainda mais atuante no debate social.

Especialista em Marketing Digital e estudiosa da comunicação humana, Munira Rocha destaca que, mesmo para quem não acompanha o programa, é impossível passar imune a ele. Vários pontos explicam essa questão. Ela parte do princípio de que a Globo não dá ponto sem nó. “A importância de salientar isso vem para embasar o quanto o programa e a percepção de marketing e possibilidades de ganho monetário evoluíram ao longo desses 22 anos”, diz.

Os avanços tecnológicos e a consequente adesão da emissora a esse movimento também são apontados como fatores decisivos para a penetração sem precedentes do BBB. Para ela, o marketing começa dessa forma, compreendendo as necessidades do consumidor, inclusive as que ele ainda não sabe que têm – algo que a Globo percebeu e executou.

“O Boninho também virou um grande influenciador, ou você acha que os spoilers que ele solta, os vídeos com a família e afins, não é tudo pensado para construir uma persona? O BBB está em todos os locais, tudo o que os participantes fazem ou falam vira assunto”. Foi nesse momento, conforme ela percebe, que o reality encarou as redes sociais dos participantes como ferramenta de venda. 

“Reza a lenda que, neste ano, o programa poderá oferecer aos patrocinadores publiposts nas redes dos participantes, sem falar nas decorações e ativações de marcas que viraram, na verdade, cenários instagramáveis e conteúdo digital. Não consigo nem entender o BBB e as redes sociais sendo coisas distintas, um retroalimenta o outro”.
Munira Rocha
Especialista em Marketing Digital e estudiosa da comunicação humana

Perfil dos participantes: o que mudou?

A escolha de colocar influenciadores digitais na casa – realidade bastante diferente dos primeiros anos da atração, quando apenas anônimos ingressavam – igualmente obedece a uma lógica de mercado. Segundo Munira, isso certamente está alinhado à alta capacidade de alavancar cifras ainda maiores para o programa e transformar tudo em “Trend Topic”. Algo curioso, uma vez que os influenciadores têm milhões de seguidores, movimentam valores milionários, mas muitos deles não são reconhecidos pelo grande público. 

“A internet é feita de bolhas e a forma mais fácil de rompê-las ainda é com a TV aberta. Também é preciso entender que o BBB retrata a sociedade, por isso tudo o que vivemos estará lá, inclusive nossas militâncias. A pressão psicológica escancara quem somos, e nossas falas machistas, homofóbicas, racistas e xenofóbicas uma hora escapam”.

Não que as pessoas assumam apenas maus comportamentos. Mas o problema estrutural fica claro quando as câmeras captam a cantora Karol Conká, por exemplo, falando que é educada por ser de Curitiba, ao passo que a advogada Juliette Freire não seria porque é paraibana. Ou o caso de racismo sofrido pelo professor João Luiz na última edição do reality.

“Há 20 anos, o Brasil se mobilizaria em função de um discurso que poderia ter sido dito por qualquer um de nós?”, reflete Munira. “O melhor disso é dar voz a militâncias que são mal vistas e ir educando o brasileiro a perceber que nossa sociedade está mudando e que, segundo Darwin, precisamos nos adaptar a isso ou estaremos fora”.

Não à toa, ela também considera que a diversidade de pessoas, classes sociais, histórias, gêneros e, principalmente, opiniões, é um fator decisivo para que um participante seja selecionado hoje. O BBB precisa de audiência, e as desavenças alimentam nosso interesse. “É possível também notar uma mudança quanto aos perfis ganhadores. Há alguns anos, fazer casal era importante para a permanência; hoje, nem sempre a relação é bem vista”.

“A meu ver, isso é reflexo dos valores que a sociedade vem buscando em influenciadores. Tratamos os participantes assim porque, afinal, eles não saem mais de lá como meros ex-BBBs, mas com milhões de seguidores e possibilidade de dinheiro no bolso. É justamente por isso que o programa não precisa se preocupar com a perda de relevância. Enquanto ele for trampolim, jamais um influenciador terá receio em participar dessa ‘colab’ de conteúdo”.  
Munira Rocha
Especialista em Marketing Digital e estudiosa da comunicação humana

Projeção e identificação

Professora de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da Universidade de São Paulo, Naiana Rodrigues aprofunda outros aspectos sobre a temática. Para falar da longevidade do programa e das várias estratégias de inovação arquitetadas por ele, a estudiosa recorre aos parâmetros essenciais do reality show enquanto gênero televisivo.

O embasamento se esgueira nos conceitos do professor e pesquisador François Jost. De acordo com o francês, a televisão estabelece três modos de relacionamento com a realidade, sendo um deles o mundo lúdico dos realities – que se valem de elementos tanto da realidade quanto da ficção no formato de jogo, com estratégias e competições guiando os participantes.

“Esse elemento do lúdico, da disputa, é uma característica do sistema capitalista. Por conta desse atributo de um sistema maior, desse modo de produção específico, a dinâmica de gameficação se espalha para outras esferas da sociedade”, avalia Naiana, referenciando que a prática se ramifica para o Jornalismo, para o trabalho guiado por plataformas digitais (Uber, IFood etc), entre outras áreas.

O fato de o reality show misturar realidade e ficção também faz com que esse tipo de programa consiga recorrer a elementos essenciais da relação do ser humano com a realidade, sobretudo aqueles ligados à projeção e à identificação. “Você se projeta e se identifica com aqueles sujeitos confinados. Isso era muito mais forte nos primeiros realities, principalmente o Big Brother – que surge com o diferencial de selecionar sujeitos da vida cotidiana. Assim, alimentava-se no imaginário popular a ideia de ‘e se eu fosse para a casa do BBB?’”, ilustra.

Atualmente, contudo, nós já perdemos a ingenuidade em relação aos sujeitos escolhidos para participar da competição. Não são pessoas comuns, da vida cotidiana, mas aquelas com algum elemento extraordinário. Nessa perspectiva, além de destacar a ênfase cada vez maior que o programa passou a dar a jogos de discórdia – sobretudo nas duas últimas edições – Naiana ainda sublinha um outro elemento proeminente.

De acordo com ela, o reality já foi mais diverso no que toca à classe social dos participantes, uma vez que, nos primeiros anos, muitos que entravam na casa realmente vinham de contextos humildes, ordinários. “A Cida, por exemplo, foi uma das vencedoras do BBB e ela era uma babá. Logo, era alguém que realmente vinha de uma classe popular, que também não estava dentro de um padrão de beleza”, dimensiona.

“Agora, o programa traz mais sujeitos não tão ordinários assim – ele quer fazer crer que são ordinários, mas eles não são tanto. Há uma predominância de pessoas da classe média ali, então consequentemente haverá mais sujeitos brancos. E os negros que aparecem também são dessa classe média, têm escolaridade, como a Thelminha, que era médica; o Babu e o Lucas Penteado, que eram atores; e a própria Karol Conká, que já era muito famosa”.
Naiana Rodrigues
Professora e pesquisadora

Repercussão social

Ou seja, apesar do tempo e das várias mudanças, a atração ainda segue determinados padrões de comportamento – as pessoas escolhidas geralmente possuem personalidades bastante opostas, favorecendo polemizações – e um padrão corporal. Sobre este último ponto, Naiana recorda apenas de Babu como a única pessoa gorda a estar no programa recentemente.

Desta feita, a compreensão da estudiosa é de que o programa teria a ganhar mais – e nós, enquanto público, também – se ao menos tentasse construir uma amostra de sujeitos mais diversa, pelo menos no que tange a classes sociais (sujeitos de extratos realmente diferentes) e fora dos padrões de corpo e de beleza predominantes ou socialmente aceitos.

“Por exemplo, cadê as influenciadoras gordas? Há, por exemplo, uma leva de influenciadoras gordas que militam pela causa, contra a gordofobia. Podia até ser alguma pessoa do movimento Body Positive – algo de caráter mais individualista, com o qual eu não concordo – mas que tem influenciadoras de aceitação do corpo. Isso, para mim, realmente seria uma grande inovação para o programa. Mas é um assunto ainda tabu para a atração colocar em jogo, e que incomodaria muita gente – a indústria principalmente, os patrocinadores”.

Sob outro aspecto, ela enxerga como estratégia levar para a casa indivíduos que sejam porta-vozes de temas com repercussão social – embora considere essa dinâmica algo recente no reality. “Antes ele não se dispunha a isso, a pautar ou assumir temáticas como racismo, feminismo ou homofobia. Isso eu credito à sociedade, e não ao programa. A sociedade vem passando por profundas transformações, em que esses assuntos estão muito pulsantes. Era inevitável que eles adentrassem a casa”.

“A permanência do estatuto social, do modo como ele está, é favorável ao capitalismo sempre. E as mudanças são bem-vindas quando o sistema consegue controlar essas mudanças. Logo, o programa não se propõe a ter uma verve de transformação social ou de pedagogia, de um ensinamento sobre temas que podem conduzir as pessoas a mudar de comportamento. Não. O programa não quer mudar comportamentos, ele quer ter lucro, audiência. Assim, ele mostra o que existe – racismo, preconceito de gênero, transfobia, entre várias outras questões – a partir de sujeitos múltiplos e diversos na sociedade”.

Também refletindo sobre os altíssimos níveis de participação do público nas mais recentes edições, Naiana diz que a pandemia de Covid-19 exerce um papel muito relevante na expressividade desse fenômeno midiático. As redes sociais tornaram-se ponto de sociabilidade e discussão, favorecendo conexões. 

Aliados às questões sociais que começaram a circundar e a aparecer no programa, esses elementos promoveram um engajamento empático de muitos sujeitos, responsáveis por construir verdadeiras torcidas organizadas por determinados participantes.

“O programa mobilizou paixões em um momento no qual estávamos muito à flor da pele. São interações que, nesse período de pandemia, canalizaram muitas emoções, servindo mesmo como válvula de escape diante de todas as angústias que a gente vinha vivenciando. Se isso é bom ou ruim, depois a gente avalia. Ainda estamos nesse período muito incerto”.

Estudos sobre o programa

Jornalista, mestre em Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisadora de Cultura da Participação, Lígia Sales realizou diversos estudos tendo como base a dinâmica do BBB. As pesquisas envolvem análise qualitativa e social do que acontece dentro do programa. 

Em um desses levantamentos, por exemplo – acompanhado pela estudiosa ao orientar o TCC de um aluno – foi esmiuçado o percurso narrativo do Storytelling e da Jornada do Herói protagonizados pela vencedora da edição do ano passado, Juliette Freire. 

“Nessa pesquisa, analisamos como as atitudes da participante, bem como a maneira com que o programa editou e mostrou uma certa narrativa, foi capaz de construir a imagem de Juliette e torná-la campeã por meio de um apelo narrativo emocional”, comenta Lígia.

Ela situa também que a quantidade de marcas disputando um lugar ao sol no programa mostra o quanto o apelo midiático é forte e traz resultados financeiros concretos. Para se ter uma ideia, em dezembro a Globo já tinha R$600 milhões em cotas negociadas no BBB.  São muitas marcas apostando grandes quantias em pessoas anônimas, que tendem a ter enorme poder de credibilidade. 

Ao mesmo tempo, rumando para outras esferas de análise, Lígia percebe que as regras, tipos de jogos e situações propostas para os participantes e para o público mudaram de acordo com as transformações culturais e sociais. Ou seja: por mais que a estrutura fundamental do programa seja despertar a curiosidade do público para o experimento social imposto pelo jogo, muitos outros detalhes foram modificados. 

“Algumas competições eram levadas ao limite da exaustão há 15 anos. Houve até um caso de uma participante que chegou a desmaiar durante uma prova de resistência e ninguém da produção a socorreu – como se aquilo fizesse parte e tivesse que ser aceito por quem decidiu participar do programa. Hoje, esse tipo de situação já não seria concebível para as pessoas, e boa parte disso se deve à disseminação das redes sociais digitais e o poder anônimo do público, que rapidamente consegue julgar situações e indivíduos”.

A “cara” do BBB nos próximos anos

Por fim, as pesquisadoras projetam o que ainda pode acontecer no reality no que tange às estratégias de marketing e de comunicação. É possível prever a “cara” do Big Brother Brasil nos próximos anos? 

Munira Rocha é enfática: “Acho que o programa vai tentar manter a fórmula de bolo por algum tempo, com ajustes onde viram que poderiam ser ajustados. Em 2020, a Manu Gavassi deixou uma série de conteúdos gravados mostrando todo o poder criativo dela como artista; em 2021, mesmo tendo sido proibido, os participantes tentaram copiar”, avalia.

“Acredito que nunca mais teremos outra Juliette, mas o fato de ela ter conquistado tantos seguidores definitivamente é motivo para modificações nos contratos dos participantes, tendo seus perfis como extensão publicitária do programa. O que eu realmente espero é que o programa entenda que pode ser canal de pautas relevantes, fora um entretenimento bobo e leve como 2022 pede que tenhamos”,  completa.

Lígia Sales aposta na adaptação: “Acredito que ele vai continuar se adaptando ao que o consumidor busca: satisfação cada vez mais imediata e interativa. Quanto mais houver a possibilidade desse indivíduo interferir e se sentir co autor da história narrativa do programa, maior o envolvimento emocional e maior o consumo. Boninho parece estar atento a isso”.

Por sua vez, Naiana Rodrigues confessa ficar receosa para tentar prever algo. Segundo ela, na Academia a futurologia é um terreno pouco apreciado. É possível, contudo, apontar algumas tendências. A integração cada vez mais dinâmica entre TV e plataformas de redes sociais é um ponto. Dada a mobilização do público, talvez o programa tenha que criar outras estratégias para interagir com a audiência de outra forma que não apenas votando.

Algo que também se pode esperar é o engajamento dos participantes, capazes de ir além da participação em outros programas globais. Organizar produções televisivas, talvez de menor porte, que comportem os indivíduos mais bem avaliados pelo público, surge como uma das saídas. É algo que Naiana referencia como “spin-offs”, ou seja, narrativas secundárias do próprio reality, a exemplo de micro-realities ou mesmo documentários – estes últimos, inclusive, já estão sendo uma grande aposta da emissora.

Por último, embora não menos importante, um investimento cada vez maior na real pluralidade de participantes na casa, estes habitando diferentes contextos sociais, raças, corpos, orientações sexuais e toda a riqueza de expressões humanas. “Que isso seja revertido, que a gente tenha mais diversidade nesse aspecto”, conclui a pesquisadora.