Em 2011, um episódio traumático atravessou o caminho de um jovem cearense. Vítima de um assalto, Marcelo Vieira lembra que chegou a ter revólver apontado para a cabeça. Conseguiu escapar do susto, mas a experiência dolorosa o marcaria profundamente.
Os meses passaram. Revidar com mais violência, nem pensar. Chegou, por um breve instante, pensar em sair do Brasil e tocar outra vida. Ficar longe dos amigos, parentes e da Terra Natal pouco ajudaria efetivamente. Gradualmente a esperança passou a ocupar o lugar da raiva e tristeza. Vieira tinha um plano.
"Em vez de ir embora, decidi trazer um pouquinho de bom do que existe lá fora para tentar mudar as pessoas daqui”. O projeto de resgatar bons sentimentos foi sendo lapidado com os anos. Em 2018, pediu as contas na empresa e investiu no próprio negócio. Nascia a Imagine Açaí.
O nome escolhido antecipava as características do empreendimento.Afinal, era necessário construir um lugar de encontro e generosidade. "Costumo dizer que ela parece uma loja de açaí, mas, no fundo, não é. Nosso objetivo é resgatar o senso de humanidade nas pessoas".
Hoje, localizada na Praia de Iracema, a Imagine Açaí troca descontos na conta por abraços e gentileza dos clientes. Fomos até a casa que vem se destacando no comércio local por incentivar arte, leitura, sustentabilidade e atendimento especializado.
Fruto do encontro
Algumas pessoas chegam a perguntar se "Imagine" seria referência ao sucesso pacifista de John Lennon (1940-1980). Em bom português, o espaço usa esse nome como farol de suas atividades. Ali é possível ir além, projetar outro contexto de vida. Repensar atitudes e promover otimismo.
A Vila de Casas onde a Imagine se localiza remonta ao passado de Fortaleza. Bem ao lado, quem destoa deste cenário é o Edifício São Pedro que segue de portas cerradas e às escuras. É início de noite. Brisa leve para uma terça-feira de agosto. No Imagine, a data é sinônimo de casa cheia.
Próximo das 19h, minutos antes do evento começar, o vai e vem de clientes no salão é intenso. Uma grande atração fará parte da "Terça Cultural" da Imagine. Diferentes gerações se reúnem para uma noite de homenagem ao eterno Rei do Baião. No palco, as presenças de Paulo Wanderley (pesquisador da vida e obra de Luiz Gonzaga), Chambinho Do Acordeon, Nonato Lima e Pedro Breculê.
Também conhecido como "juçara", 'assai" ou "açai-do-para", é um fruto que cresce nas palmeiras da região amazônica na América do Sul. Similar a uma uva de cor roxa, é chamado cientificamente de Euterpe oleracea. E lá vai o açaí brasileiro ganhar outras propriedades além de sabor e vitaminas.
"O açaí é uma ferramenta para atrair o público. Logicamente, o produto viabiliza o negócio, porque é um negócio, é uma empresa que precisa faturar. Uma vez o cliente aqui dentro, atraído pelo açaí, tentamos estimulá-lo de diversas formas a tentar resgatar a essência de humanidade em cada um deles", descreve Marcelo Vieira.
Noite agitada
Os espaços disponibilizados permitem diferentes vivências no mesmo local. Na área dedicada aos potes reaproveitados com sementes, dois meninos se divertem com as ferramentas de jardinagem. Em outra ocasião, vó e neta pesquisam as obras que constam na árvore de livros.
Não carece de cadastro, pagamento ou trazer livro para pegar um. Se quiser, pode pegar e levar para casa. Escolhe o livro, bota debaixo do braço que é seu. “A única coisa que pedimos é, leia e quando terminar de ler, passe adiante”, orienta Marcelo.
Em frente ao palco, uma turminha exigente quer garantir o lugar na plateia. Cerca de seis crianças se espalham pelo chão. As luzes, o som na caixa amplificadora, os instrumentos musicais sendo afinados. É notável como todo aquele agito consegue fascinar e prender o olhar dos pequenos.
Gerente de um hotel vizinho ao empreendimento do açaí, Raquel Pinheiro avalia que a proposta da Imagine atrai consumidores que tem tudo a ver também com a cidade. "Um público que vem pela cultura, que vem muito em família né?", compartilha.
Segundo a entrevistada, é uma forma também de conectar artesanato, cultura e comércio. “Então, só está agregando ao bairro e a todo mundo da região", avalia Raquel Pinheiro.
Me abrace
Demister e Daniela estão de férias em Fortaleza com Lucas e Miguel. O primeiro com seis e o outro com quase dois. Então, já dá para ter uma ideia da energia da dupla. Após brincarem por diferentes locais da casa, os irmãos aproveitam para saborear o açaí. “Nós vamos aqui todo dia”, enumera a mãe.
A família mora em Sevilha, cidade que figura entre os destinos turísticos mais procurados da Espanha. O sabor do fruto brasileiro é aprovado pelos quatro. Espanhol, Demister se considera um fã. Daniela até imagina abrir um negócio de açaí quando retornar a Europa. “Os meninos gostam de vir pra cá. O contato com arte. Sem falar que o açaí é forte”, descreve.
Como funciona a dinâmica de valores na Imagine? Simples. Se o cliente abraçar qualquer pessoa na hora que chegar no caixa, automaticamente esse abraço paga parte do açaí. A casa também aceita palavras de gentileza como parte do pagamento da água.
Um "oi, tudo bem?" já vale. A cada cumprimento os descontos podem aumentar. Outro destaque é o pote usado para consumo do quitute. A embalagem é biodegradável. Quando o cliente termina de comer, a Imagine oferece gratuitamente terra adubada, semente, pá, regador e o ajuda a plantar no potinho.
O som de Luiz Gonzaga pode ser escutado nos quatro cantos. Crianças, idosos e fãs da energia do açaí cantam os sucessos de Seu Lua. Chegou a hora de provar a especialidade do lugar. Açaí escolhido e na hora de pagar um abraço na pessoa vizinho da fila. Não é que funcionou?
Terça Cultural
A loja de açaí reúne artistas nas noites de terça-feira para uma programação cultural gratuita e diversa. Além da homenagem a Luiz Gonzaga, que acompanhamos, a casa reaberta em julho na Praia de Iracema já reverenciou a obra de Belchior com show de Marcos Lessa, promovendo também outros artistas. A programação é divulgada nas redes sociais.